Durante as horas de perdição tive
a coragem de não compor nem organizar. E sobretudo a de não prever. Até então
eu não tivera a coragem de me deixar guiar pelo que não conheço e em direção ao
que não conheço: minhas previsões condicionavam de antemão o que eu veria. Não
eram as antevisões da visão: já tinham o tamanho de meus cuidados. Minhas
previsões me fechavam o mundo. (p. 21)
(...)
Abri um pouco a porta estreita do
guarda-roupa, e o escuro de dentro escapou-se como um bafo. Tentei abri-lo um
pouco mais, porém a porta ficava impedida pelo pé da cama, onde esbarrava.
Dentro da brecha da porta, pus o quanto cabia de meu rosto. E, como o escuro de
dentro me espiasse, ficamos um instante nos espiando sem nos vermos. Eu nada
via, só conseguia sentir o cheiro quente e seco como o de uma galinha viva.
Empurrando, porém, a cama para mais perto da janela, consegui abrir a porta uns
centímetros a mais.
Então, antes de entender, meu
coração embranqueceu como cabelos embranquecem. (p. 49-50)
(...)
- Porque, vê, eu sabia que estava
entrando na bruta e crua glória da natureza. Seduzida, eu no entanto lutava
como podia contra as areias movediças que me sorviam: e cada movimento que eu
fazia para “não, não!”, cada movimento mais me empurrava sem remédio; não ter
forças para lutar era o meu único perdão. (p. 68)
(...)
(...)
A barata é um ser feio e
brilhante. A barata é pelo avesso. Não, não, ela mesma não tem lado direito nem
avesso: ela é aquilo. O que nela é exposto é o que em mim eu escondo: de meu
lado a ser exposto fiz o meu avesso ignorado. (p. 81)
(...)
Eu começava a sentir que meu
passo mal-assombrado seria irremediável, e que eu estava pouco a pouco
abandonando a minha salvação humana. Sentia que o meu de dentro, apesar de
matéria fofa e branca, tinha no entanto força de rebentar meu rosto de prata e
beleza, adeus beleza do mundo. Beleza que me é agora remota e que não quero
mais – estou sem poder mais querer a beleza – talvez nunca a tivesse querido
mesmo, mas era tão bom! (p. 87)
(...)
O neutro é inexplicável e vivo,
procura me entender: assim como o protoplasma e o sêmen e a proteína são de um
neutro vivo. E eu estava toda nova, como uma recém-iniciada. Era como se antes
eu estivesse estado com o paladar viciado por sal e açúcar, e com a alma
viciada por alegrias e dores – e nunca tivesse sentido o gosto primeiro. E
agora sentia o gosto do nada. Velozmente eu me desviciava, e o gosto era novo
como o do leite materno que só tem gosto para boca de criança. Com o
desmoronamento de minha civilização e de minha humanidade – o que me era um
sofrimento de grande saudade – com a perda da humanidade, eu passava
orgiacamente a sentir o gosto da identidade das coisas.
(...)
Meu amor, é assim como o mais
insípido néctar – é como o ar que em si mesmo não tem cheiro. Até então meus
sentidos viciados estavam mudos para o gosto das coisas. Mas a minha mais
arcaica e demoníaca das sedes me havia levado subterraneamente a desmoronar
todas as construções. A sede pecaminosa me guiava – e agora eu sei que sentir o
gosto desse quase nada é a alegria secreta dos deuses. É um nada que é o Deus –
e que não tem gosto. (p. 107)
(...)
O que ainda me assustava era que
até mesmo o horror impunível ia ser generosamente reabsorvido pelo abismo do
tempo interminável, pelo abismo das alturas intermináveis, pelo profundo abismo
do Deus: absorvido pelo seio de uma indiferença. (p. 125)
(...)
A barata e eu somos infernalmente
livres porque a nossa matéria viva é maior que nós, somos infernalmente livres
porque minha própria vida é tão pouco cabível dentro de meu corpo que não
consigo usá-la. Minha vida é mais usada pela terra do que por mim, sou tão
maior do que aquilo que eu chamava de “eu” que, somente tendo a vida do mundo,
eu me teria. (p. 126)
(...)
Eu estava em pleno seio de uma
indiferença que é quieta e alerta. E no seio de um indiferente amor, de um indiferente
sono acordado, de uma dor indiferente. De um Deus que, se eu amava, não
compreendia o que Ele queria de mim. Sei, Ele queria que eu fosse o seu igual,
e que a Ele me igualasse por um amor de que eu não era capaz.
Por um amor tão grande que seria
de um pessoal tão indiferente – como se eu não fosse uma pessoa. Ele queria que
eu fosse com Ele o mundo. Ele queria minha divindade humana, e isso tivera que
começar por um despojamento inicial do humano construído.
E eu dera o primeiro passo: pois pelo menos eu já sabia que ser um humano é uma sensibilização, um orgasmo da natureza. E que, só por uma anomalia da natureza, é que, em vez de sermos o Deus, assim como os outros seres O são, em vez de O sermos, nós queríamos vê-Lo, se fôssemos tão grandes quanto Ele. Uma barata é maior que eu porque sua vida se entrega tanto a Ele que ela vem do infinito e passa para o infinito sem perceber, ela nunca se descontinua. (p. 130)
(...)
A curiosidade me expulsara do aconchego – e eu encontrava o Deus indiferente que é todo bom porque não é ruim nem bom, eu estava no seio de uma matéria que é a explosão indiferente de si mesma. (p. 131)
(...)
O que é Deus estava mais no
barulho neutro das folhas ao vento que na minha antiga prece humana.
A menos que eu pudesse fazer a
prece verdadeira, e que aos outros e a mim mesma pareceria a cabala de uma
magia negra, um murmúrio neutro.
Esse murmúrio, sem nenhum sentido
humano, seria a minha identidade tocando na identidade das coisas. Sei que, em
relação ao humano, essa prece neutra seria uma monstruosidade. Mas em relação
ao que é Deus, seria: ser. (p. 136)
(...)
Estar vivo é uma grossa
indiferença irradiante. Estar vivo é inatingível pela mais fina sensibilidade.
Estar vivo é inumano – a meditação mais profunda é aquela tão vazia que um
sorriso se exala como de uma matéria. E ainda mais delicada serei, e como
estado mais permanente. Estou falando da morte? estou falando de depois da
morte? Não sei. Sinto que “não humano” é uma grande realidade, e que isso não
significa “desumano”, pelo contrário: o não humano é o centro irradiante de um
amor neutro em ondas hertzianas. (p. 175)
(...)
Enfim, enfim quebrara-se
realmente o meu invólucro, e sem limite eu era. Por não ser, eu era. Até o fim
daquilo que eu não era, eu era. O que não sou eu, eu sou. Tudo estará em mim,
se eu não for; pois “eu” é apenas um dos espasmos instantâneos do mundo. Minha
vida não tem sentido apenas humano, é muito maior – é tão maior que, em relação
ao humano, não tem sentido. Da organização geral que era maior que eu, eu só
havia até então percebido os fragmentos. (p. 182)
Clarice Lispector, A paixão segundo G.H. (1964). 14ª ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1990
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