quinta-feira, 1 de setembro de 2011

O Lustre (III)

[A morte de Virgínia]:

Num esforço em que o peito parecia suportar um viscoso peso, com um mal-estar inexcedível, atravessou pálida a rua e o carro dobrou a esquina, ela recuou um passo, o carro hesitou, ela avançou e o carro veio em luz, ela o percebeu com um choque de calor sobre o corpo e uma queda sem dor enquanto o coração olhava surpreso para nenhum lugar e um grito de homem vinha de alguma direção - era velozmente o mesmo dia há três anos quando estacara para a frente impedindo-se por um triz de pisar num gatinho rígido e morto e o coração retrocedera enquanto, com os olhos por um instante profundamente cerrados de asco, todo o seu corpo dizia para dentro de si mesmo num escuro e cavo momento, bem no oco sonoro de uma igreja silenciosa: arrh! em funda náusea vivificadora, o coração retrocedendo branco e sólido numa queda seca, arrh! E como pensasse escura em Vicente viu Adriano, Vicente, Miguel, Daniel - Daniel, Daniel! numa corrida clara e vertiginosa pelas ruas da cidade como um vento de cabelos soltos, entrou um instante na Granja, balançou-se rápido, rápido na cadeira e com absoluta estranheza olhou-se branca e de olhos escuros num espelho - longos corredores formavam-se no seu interior, longos corredores cansados, difíceis e escuros, portas sucessivas cerravam-se sem ruído com espanto e cuidado enquanto um momento de cólera de Daniel era pensado por ela e os instantes claramente se sucediam - ela e Daniel mastigaram o fim da fruta que escorria pelo queixo e olhavam-se de olhos brilhantes e inteligentes, quase um gostando do que o outro comia, fazia frio, o nariz vermelho e penoso no pátio da Granja; ela dirigiu um estremecimento a Daniel. Ela que nunca perdera tempo - confuso, surdo, rápido, claro, dissonante, o ruído que vem da orquestra afinando-se e se afinando para o concerto e um movimento de bem-estar procurando conforto, o coração insólito. O que sucedia era tão simples que ela não sabia donde entender. Na gelada penumbra corredores negros, estreitos, vazios e úmidos, uma substância dormente e silenciosa: e de súbito! de súbito! de súbito! a borboleta branca volitando nos corredores sombrios, perdendo-se no fim da escuridão. Ela desejava obscuramente interromper-se, ela desejava obscuramente interromper-se. A rua fumegava fria e sonolenta, seu próprio coração surpreendia-se, a cabeça pesada de graça atordoante - enquanto as ruas de Brejo Alto se encaminhavam velozes e vacilantes no seu cheiro de maçã, serragem, importação e exportação, aquela falta do mar. E de súbito arrebatada pelo próprio espírito. Era um momento extremamente íntimo e estranho - ela reconhecia tudo isto, quantas vezes, quantas vezes o ensaiara sem saber; e agora, extraordinariamente quieta, purificada das próprias fontes de energia, entregando mesmo as possibilidades futuras - ah, não ter então reconhecido aquela espécie de gesto, quase uma posição do pensamento, a cabeça inclinada para um lado, assim, assim... não lhe ter dado importância então... como se assustaria se o tivesse compreendido - mas agora não estava assustada, o impulso era inferior à qualidade mais secreta do ser, na gelada penumbra nascendo uma nova exatidão; não! não! não era uma sensação decadente! mas desejando obscuramente, obscuramente interromper-se, a dificuldade, a dificuldade que vinha do céu, que vinha. O primeiro acontecimento real, o único fato que serviria de começo à sua vida, livre como jogar um cálice de cristal pela janela, o movimento irresistível que não se poderia mais conter. Também procurara ensaiar quando buscava perceber o cheiro nas construções, ensaiara o cheiro na meia penumbra, cal, madeira, ferro frio, poeira assentada espreitando --- como pudera esquecer: sim ---, --- O campo vazio de ervas ao vento sem ela, inteiramente sem ela, sem nenhuma sensação, só o vento, a irrealidade se aproximando em cores iridescentes, em velocidade alta, leve, penetrante. Névoas se esgarçando e descobrindo formas firmes, um som mudo rebentando da intimidade adivinhada das coisas, o silêncio comprimindo partículas de terra em escuridão e negras formigas lentas e altas caminhando sobre grossos grãos de terra, o vento correndo alto adiante, um cubo límpido pairando no ar e a luz correndo paralela a todos os pontos, era presente, assim fora, assim seria, e o vento, o vento, ela que fora tão constante.

Clarice Lispector, O Lustre (1946). 9ª ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1995. p.319-321.

[Os gênios não conquistaram seu avanço sobre os demais somente na encarnação em que se evidenciaram. Foi trabalho de muito tempo].

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