Tudo o que é forma de vida procuro afastar. Tento isolar-me para encontrar a vida em si mesma. No entanto apoiei-me demais no jogo que distrai e consola e quando dele me afasto, encontro-me bruscamente sem amparo. No momento em que fecho a porta atrás de mim, instantaneamente me desprendo das coisas. Tudo o que foi distancia-se de mim, mergulhando surdamente nas minhas águas longínquas. Ouço-a, a queda. Alegre e plana espero por mim mesma, espero que lentamente me eleve e surja verdadeira diante de meus olhos. Em vez de me obter com a fuga, vejo-me desamparada, solitária, jogada num cubículo sem dimensões, onde a luz e a sombra são fantasmas quietos. No meu interior encontro o silêncio procurado. Mas dele fico tão perdida de qualquer lembrança de algum ser humano e de mim mesma, que transformo essa impressão em certeza de solidão física. Se desse um grito - imagino já sem lucidez - minha voz receberia o eco igual e indiferente das paredes da terra. Sem viver coisas eu não encontrarei a vida, pois? Mas, mesmo assim, na solitude branca e ilimitada onde caio, ainda estou presa entre montanhas fechadas. Presa, presa. Onde está a imaginação? Ando sobre trilhos invisíveis. Prisão, liberdade. São essas as palavras que me ocorrem. No entanto não são as verdadeiras, únicas e insubstituíveis, sinto-o. Liberdade é pouco. O que desejo ainda não tem nome. - Sou pois um brinquedo a quem dão corda e que terminada esta não encontrará vida própria, mais profunda. Procurar tranquilamente admitir que talvez só a encontre se for buscar nas fontes pequenas. Ou senão morrerei de sede. Talvez não tenha sido feita para as águas puras e largas, mas para as pequenas e de fácil acesso. E talvez meu desejo de outra fonte, essa ânsia que me dá ao rosto um ar de quem caça para se alimentar, talvez essa ânsia seja uma ideia - e nada mais. Porém - os raros instantes que às vezes consigo de suficiência, de vida cega, de alegria tão intensa e tão serena como o canto de um órgão - esses instantes não provam que sou capaz de satisfazer minha busca e que esta é sede de todo o meu ser e não apenas uma ideia? Além do mais, a ideia é a verdade! grito-me. São raros os instantes. Quando ontem, na aula, repentinamente pensei, quase sem antecedentes, quase sem ligação com as coisas: o movimento explica a forma. A clara noção do perfeito, a liberdade súbita que senti... Naquele dia, na fazenda de titio, quando caí no rio. Antes estava fechada, opaca. Mas, quando me levantei, foi como se tivesse nascido da água. Saí molhada, a roupa colada à pele, os cabelos brilhantes, soltos. Qualquer coisa agitava-se em mim e era certamente meu corpo apenas. Mas num doce milagre tudo se torna transparente e isso certamente era minha alma também. Nesse instante eu estava verdadeiramente no meu interior e havia silêncio. Só que, meu silêncio, compreendi, era um pedaço do silêncio do campo. E eu não me sentia desamparada. O cavalo de onde eu caíra, esperava-me junto ao rio. Montei-o e voei pelas encostas que a sombra já invadia e refrescava. Freei as rédeas, passei a mão pelo pescoço latejante e quente do animal. Continuei a passo lento, escutando dentro de mim a felicidade, alta e pura como um céu de verão. Alisei meus braços, onde ainda escorria a água. Sentia o cavalo vivo perto de mim, uma continuação do meu corpo. Ambos respirávamos palpitantes e novos. Uma cor maciamente sombria deitara-se sobre as campinas mornas no último sol e a brisa leve voava devagar. É preciso que eu não esqueça, pensei, que fui feliz, que estou sendo feliz mais do que se pode ser. Mas esqueci, sempre esqueci.
Eu estava sentada na Catedral, numa espera distraída e vaga. Respirava opressa o perfume roxo e frio das imagens. E, subitamente, antes que pudesse compreender o que se passava, como um cataclisma, o órgão invisível desabrochou em sons cheios, trêmulos e puros. Sem melodia, quase sem música, quase apenas vibração. As paredes compridas e as altas abóbadas da igreja recebiam as notas e devolviam-nas sonoras, nuas, intensas. Elas traspassavam-me, entrecruzavam-se dentro de mim, enchiam meus nervos de estremecimentos, meu cérebro de sons. Eu não pensava pensamentos, porém música. Insensivelmente, sob o peso do cântico, escorreguei do banco, ajoelhei-me sem rezar, aniquilada. O órgão emudeceu com a mesma subitaneidade com que iniciara, como uma inspiração. Continuei respirando baixinho, o corpo vibrando ainda aos últimos sons que restavam no ar num zumbido quente e translúcido. E era tão perfeito o momento que eu nada temia nem agradecia e não caí na ideia de Deus. Quero morrer agora, gritava alguma coisa dentro de mim liberta, mais do que sofrendo. Qualquer instante que sucedesse àquele seria mais baixo e vazio. Queria subir e só a morte como um fim me daria o auge sem a queda. As pessoas se levantavam ao meu redor, movimentavam-se. Ergui-me, caminhei para a saída, frágil e pálida.
Clarice Lispector, Perto do coração selvagem (1944). Rio de Janeiro: Rocco, 1998, pp. 69-72
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