Chamou-me a atenção o diálogo travado à porta de uma casa de brinquedos. A dama de azul, majestosa e autoritária, discutia com o vendedor obsequioso, que já dava mostras de impaciência. Passando de um para outro, ora nas mãos profissionais do vendedor, ora nas mãos finas e cheias de anéis da abastada freguesa, uma bonequinha preta de olho arregalado, e com uma cestinha de bananas na cabeça, parecia alheia à discussão:
- É muito cara.
- Foi remarcada, madame. A senhora não encontrará uma boneca destas por menos de cem cruzeiros... Mas se a senhora quiser temos outras bonecas mais baratas. Qual é o seu orçamento, madame?
A dama de azul franziu ligeiramente os sobrolhos.
- É para uma menina pobre. A filha da empregada.
Ela não podia, evidentemente, marcar em cem cruzeiros o limite de "seu orçamento" como queria o desajeitado vendedor; assim, dizendo que era para uma menina pobre, explicava-se melhor. Não era para ela; para filha dela, para sobrinha dela, para alguma criança de sua espécie, dela; de sua qualidade, de sua classe, de sua condição: era para a filha da criada.
O vendedor compreendeu logo que o problema se deslocava para um novo sistema de micro-unidades. Ninguém, evidentemente, mede em quilômetros o diâmetro de um glóbulo de sangue, nem mede em milímetros a distância de Sírius. Há o mícron para o glóbulo e o ano-luz para os astros. Tudo tem suas dimensões, suas escalas adequadas, neste harmonioso universo.
Enquanto o novo sistema de unidades se estabelecia entre o vendedor e a majestosa senhora, eu olhava na vitrina um urso de astracã que comigo jogava o sério com seus olhos parados de contas azuis.
- Urso, amigo urso, diga-me, por favor, onde é que esconderam o menino Jesus?
O menino Jesus estava na esquina de Assembléia com Quitanda, no colo de uma mendiga. Ninguém desconfiava. As pessoas que passavam (Merry, merry Christmas) não viam o menino Jesus instalado no seu nicho de miséria. E tinham razão. O menino Jesus escondia-se no pobre. Amarelado, encardido, manchado, dir-se-ia que a mendiga o tirara de uma lata de despejo.
Quando eu passei, ele tentava pegar a chupeta caída nos trapos sujos da mãe. Levava-a à boca, sem jeito, metendo os dedinhos nos lábios, de onde corria uma saliva clara e inocente. A mãe, de braço estendido, pedia uma esmola pelo amor de Deus. Seria mãe de verdade? Dizem que se alugam crianças para mendigar. A mendiga é falsa. A criança é falsa. A mãe é falsa. E dessa falsidade todo o mundo desconfia.
A chupeta caía de novo e perdia-se no seio miserável. Nesse momento, quando eu já me afastava, o menino olhou para mim. Seus olhos pousaram em meus olhos. Sim, lá dos abismos de sua inocência seus olhos subiram. E o menino sorriu. Para mim!
Gustavo Corção, Lições de Abismo. Rio de Janeiro: Agir, 1958, p. 183.
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