sexta-feira, 26 de agosto de 2011

O Lustre (II)

O pensamento de fazer café sacudiu-a de novo com mais vigor, Deus meu, isso seria renascer, tomar café límpido, negro, quente, perfumado café - mundo, mundo, dizia seu corpo sorrindo mudamente de dor. Com certa timidez observava como estava sozinha. Poderia chorar de alegria, sim, porque tomando café teria forças para tudo. (p. 200-201)

(...)

Lembrava-se constantemente da viagem, lembrava-se da avó, surpreendida de pensar tanto nela. Confusamente, porque a morte lhe parecia um ato de vida, a morte na velhice era um fresco fruto extemporâneo e um súbito revivescimento. Para ela quase só agora a avó começava a existir. Revia seus olhos fixos e úmidos, suas pálpebras piscando numa indecência impotente, aquela pele castanha de fazenda amarrotada, tão maior que seu corpo duro, cego, infantil. Imaginou-a sabida e fúnebre dizer: enquanto existi comi bastante. Como era velha, pesada e morta aquela avó magra que se lembrava subitamente de morrer. (p. 220-221).

Clarice Lispector, O Lustre (1946). 9ª ed., Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1995.

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