Eu, que estou contando esta história, sou irmã Teodora, religiosa da ordem de são Columbano. Escrevo no convento, deduzindo coisas de velhos documentos, de conversas ouvidas no parlatório e de alguns raros testemunhos de gente que por lá andou. Nós, freiras, temos poucas ocasiões de conversar com soldados: e, assim, o que não sei, trato de imaginar; caso contrário, como faria? E nem tudo da história está claro para mim. Vocês vão me desculpar: somos moças do interior, ainda que nobres, tendo vivido sempre em retiro, em castelos perdidos e depois em conventos; excetuando-se funções religiosas, tríduos, novenas, trabalhos de lavoura, debulha de cereais, vindimas, açoitamento de servos, incestos, incêndios, enforcamentos, invasões de exércitos, saques, estupros, pestilências, não vimos nada. O que pode saber do mundo uma pobre freira? Portanto, prossigo penosamente esta história que comecei a narrar como penitência. Agora Deus sabe como farei para contar-lhes a batalha, eu que das guerras, Deus nos livre, sempre fiquei afastada e, exceto aqueles quatro ou cinco embates em campo aberto que tiveram lugar na planície embaixo de nosso castelo e que, meninas, acompanhávamos das ameias, entre caldeirões de piche fervente (quantos mortos ficavam apodrecendo depois pelos prados e os encontrávamos ao brincar, no verão seguinte, sob uma nuvem de zangões!), sobre batalhas, dizia, não sei nada. (...). (p. 32)
Sob minha cela fica a cozinha do convento. Enquanto escrevo ouço o barulho dos pratos de cobre e estanho: as freiras ajudantes de cozinha estão enxaguando as louças de nosso magro refeitório. A abadessa deu-me uma tarefa diferente da que atribuiu a elas: escrever esta história, mas todos os trabalhos do convento, destinados que são a um único fim - a saúde da alma -, é como se fosse tudo uma coisa só. Ontem escrevia sobre a batalha e no ruído da louça na pia acreditava estar ouvindo o bater de lanças contra escudos e couraças, o ressoar de elmos atingidos por grandes espadas; do pátio chegavam até mim os golpes do tear das irmãs tecedoras e me parecia uma batida de cascos de cavalos a galope: e, assim, aquilo que minhas orelhas ouviam meus olhos entreabertos transformavam em visões e meus lábios silenciosos em palavras e palavras e a pena se lançava pela folha branca, correndo atrás delas. (p. 44)
Italo Calvino, O cavaleiro inexistente. São Paulo: Cia das Letras, 2005.