Alguém mais anda procurando Agilulfo: é Gurdulu, que, todas
as vezes que descobre uma panela vazia ou um cano de chaminé ou uma tina, para
e exclama:
- Senhor patrão! Comande, senhor patrão!
Sentado num gramado à beira de uma estrada, fazia um longo
discurso no gargalo de um frasco quando uma voz o interpelou:
- O que procura aí dentro, Gurdulu?
Era Torrismundo que, celebradas solenemente as núpcias com
Sofrônia, na presença de Carlos Magno, cavalgava com a esposa e um rico séquito
pela Curvaldia, da qual fora armado conde pelo imperador.
- Procuro meu patrão – diz Gurdulu.
- Dentro daquele frasco?
- Meu patrão é alguém que não existe; assim, pode não estar
tanto num frasco quanto numa armadura.
- Mas o seu patrão dissolveu-se no ar!
- Então, sou o escudeiro do ar?
- Se me seguir, será meu escudeiro.
Chegaram à Curvaldia. Não se reconhecia mais a região. Em
lugar das aldeias haviam surgido cidades com palácios de pedra, e moinhos, e
canais.
- Voltei, boa gente, para ficar com vocês...
- Viva! Bravo! Viva ele! Viva a esposa dele!
- Esperem para manifestar sua felicidade com a notícia que
tenho para dar-lhes: o imperador Carlos Magno, a cujo nome sagrado doravante
vocês se inclinarão, investiu-me do título de conde da Curvaldia!
- Ah... Mas... Carlos Magno...? Fala a sério...
- Não entendem? Agora têm um conde! Vou defendê-los de novo
contra as prepotências dos cavaleiros do Graal!
- Oh, há bastante tempo já expulsamos aquela gente da
Curvaldia! Veja, nós obedecemos durante tanto tempo... Mas agora percebemos que
se pode viver bem sem dever nada a cavaleiros nem a condes... Cultivamos a
terra, construímos oficinas para artesãos, moinhos, tratamos de fazer respeitar
nossas leis, defender nossas fronteiras, enfim, vamos em frente, não temos do
que nos lamentar. É um jovem generoso e não esquecemos o que fez por nós...
Gostaríamos que ficasse aqui... mas de igual para igual...
- De igual para igual? Não me querem como conde? Mas é uma
ordem do imperador, não entendem? É impossível que se recusem!
- É, sempre se diz assim: impossível... Mesmo livrar-se
daqueles do Graal parecia ser impossível... E então só tínhamos podadeiras e
forcados... Não queremos mal a ninguém, senhorzinho, especialmente a quem nos
salvou... É um jovem valoroso, tem prática de tantas coisas que nós não
sabemos... Se morar aqui, de igual para igual, sem praticar prepotências, quem
sabe não acaba se tornando o primeiro entre nós...
- Torrismundo, estou cansada de tantas travessias – disse Sofrônia
erguendo o véu. – Esta gente tem uma expressão ponderada e cortês e a cidade me
parece mais bonita e mais bem abastecida do que tantas outras... Por que não
procuramos chegar a um acordo?
- E nosso séquito?
- Todos poderiam ser cidadão da Curvaldia – responderam os
moradores -, e terão conforme o que produzirem.
- Terei de considerar igual a mim este escudeiro, Gurdulu,
que nem sabe se existe ou não?
- Até ele aprenderá... Nem nós sabíamos que estávamos no
mundo... Também a existir se aprende...
Italo Calvino, O cavaleiro inexistente. São Paulo: Cia das Letras, 2005, pp. 111-113
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