segunda-feira, 28 de maio de 2012

O cavaleiro inexistente (II)


Eu, que estou contando esta história, sou irmã Teodora, religiosa da ordem de são Columbano. Escrevo no convento, deduzindo coisas de velhos documentos, de conversas ouvidas no parlatório e de alguns raros testemunhos de gente que por lá andou. Nós, freiras, temos poucas ocasiões de conversar com soldados: e, assim, o que não sei, trato de imaginar; caso contrário, como faria? E nem tudo da história está claro para mim. Vocês vão me desculpar: somos moças do interior, ainda que nobres, tendo vivido sempre em retiro, em castelos perdidos e depois em conventos; excetuando-se funções religiosas, tríduos, novenas, trabalhos de lavoura, debulha de cereais, vindimas, açoitamento de servos, incestos, incêndios, enforcamentos, invasões de exércitos, saques, estupros, pestilências, não vimos nada. O que pode saber do mundo uma pobre freira? Portanto, prossigo penosamente esta história que comecei a narrar como penitência. Agora Deus sabe como farei para contar-lhes a batalha, eu que das guerras, Deus nos livre, sempre fiquei afastada e, exceto aqueles quatro ou cinco embates em campo aberto que tiveram lugar na planície embaixo de nosso castelo e que, meninas, acompanhávamos das ameias, entre caldeirões de piche fervente (quantos mortos ficavam apodrecendo depois pelos prados e os encontrávamos ao brincar, no verão seguinte, sob uma nuvem de zangões!), sobre batalhas, dizia, não sei nada. (...). (p. 32)



Sob minha cela fica a cozinha do convento. Enquanto escrevo ouço o barulho dos pratos de cobre e estanho: as freiras ajudantes de cozinha estão enxaguando as louças de nosso magro refeitório. A abadessa deu-me uma tarefa diferente da que atribuiu a elas: escrever esta história, mas todos os trabalhos do convento, destinados que são a um único fim - a saúde da alma -, é como se fosse tudo uma coisa só. Ontem escrevia sobre a batalha e no ruído da louça na pia acreditava estar ouvindo o bater de lanças contra escudos e couraças, o ressoar de elmos atingidos por grandes espadas; do pátio chegavam até mim os golpes do tear das irmãs tecedoras e me parecia uma batida de cascos de cavalos a galope: e, assim, aquilo que minhas orelhas ouviam meus olhos entreabertos transformavam em visões e meus lábios silenciosos em palavras e palavras e a pena se lançava pela folha branca, correndo atrás delas. (p. 44)

Italo Calvino, O cavaleiro inexistente. São Paulo: Cia das Letras, 2005.

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