sábado, 20 de agosto de 2011

O Lustre

- Virgínia, todos os dias você vendo café com leite gosta de café com leite. Vendo pai você respeita pai. Arranhando a perna você sente dor na perna, já compreendeu o que eu quero dizer? Você é vulgar e estúpida. - Sim, por Deus que ela o era - Pois a Sociedade das Sombras deve aperfeiçoar seus membros e manda que você vire tudo ao contrário. A Sociedade das Sombras sabe que você é vulgar porque você não pensa, como se diz, com profundeza, porque você só sabe seguir o que lhe ensinaram, está entendendo? A Sociedade das Sombras manda que amanhã você entre no porão, sente-se e pense muito, muito para saber o que é de você mesma e o que é que lhe ensinaram. Amanhã você não deve se preocupar com a família nem com o mundo! A Sociedade das Sombras falou. (p. 67)

Ela secretamente exultava: ao contrário do que Daniel imaginara, ela amava o porão e nunca o temera. Calou-se no entanto porque se o confessasse o local para pensar profundamente seria transferido. Tremia à idéia de que Daniel pudesse mandá-la pensar no meio do mato ao anoitecer. Não ter uma tarefa difícil para o dia seguinte era como receber férias. Daniel perscrutou-a um pouco surpreendido nessa noite, vendo-a alegre conversar quase sozinha na mesa do jantar e receber sem tristeza uma bofetada do pai. Fora da clareira porém eles não podiam falar sobre a Sociedade das Sombras e ela assim estava livre, observando quase maliciosa e feliz a inquietação de Daniel. (p. 68)

Na manhã seguinte, como não devia preocupar-se com a família, fez com que a família não se preocupasse com ela. Assim não evitou o hábito de tomar café com todos e de responder às perguntas. Obediente a Daniel, no entanto, ela cerrava o coração sem raiva e sem glória, como num trabalho sincero, escondendo-o intacto em zona escura e quieta. Era preciso não se misturar, nada mover ao seu redor com o pensamento para não ser imperceptivelmente movida. Distraída adivinhava: pensando profundamente ia saber o que era dela com água misturada à água do rio e o que não era, como pedras misturadas à água do rio. Ah, compreendia tanto. Suspirava de alegria e de certa incompreensão. Um dia talvez não comparecesse junto ao respeito dos pais, junto ao prazer de passear, ao gosto do café, ao pensamento de gostar de azul, à dor de ferir a perna. Embora isso jamais a tivesse preocupado. Caminhou para o porão lentamente, empurrou sua grade e mergulhou no cheiro frio de penumbra onde timidamente viviam bacias, poeiras e móveis velhos. Sentou-se perto das roupas negras de um luto antigo. O bafo dos baús arquejava, um cheiro de cemitério subia das lajes do chão. Sentou-se e esperou. Apertava a intervalos o grosso vestido contra o peito. Os pássaros lá fora cantavam mas isso era o silêncio. Para pensar profundamente alguém devia não se lembrar de nada em particular. Purificou-se de lembranças, quedou-se atenta. Como para ela era sempre fácil nada desejar, manteve-se parada sem mesmo sentir as sombras negras do porão. Foi-se distanciando como numa viagem. Aos poucos ia conseguindo um pensamento sem palavras, um céu cinzento e vasto, sem volume nem consistência, sem superfície, profundidade ou altura. Às vezes, como ligeiras nuvens soltas do fundo, o céu era atravessado pela vaga consciência da experiência e do mundo fora de si mesmo. O temor de desobedecer a Daniel - um temor que não era pensamento nem o perturbava - assaltava-a e também uma curiosidade de prosseguir sem interrupções, que a fazia mover-se acima de seus próprios conhecimentos. Sem esforço, sem alegria - como para não se deter em nenhum sentimento definido - ela afastava a percepção e ficava novamente puro o céu. Estaria pensando profundamente? indagava ela uma consciência à parte. (p. 68-69)

(...)

Agora tornava-se claro: era verdadeiro! tudo existia tão livre que ela poderia mesmo inverter a ordem de seus sentimentos, não ter medo da morte, temer a vida, desejar a fome, odiar as coisas felizes, rir-se da tranquilidade... Sim, bastaria um pequeno toque e numa coragem leve e fácil galgaria a inércia e reinventaria a vida instante por instante. Instante por instante! tremiam nela pensamentos de vidro e sol. Eu posso renovar tudo com um gesto, sentia bravamente, úmida como uma coisa nascendo, mas confusamente sabia que esse pensamento era mais alto que a sua realização e nada fazia, perplexa e serena, nenhum gesto. (p. 72-73)

Clarice Lispector, O Lustre (1946). 9ª ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1995.

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