A violeta é introvertida e sua introspecção é profunda. Dizem que se esconde por modéstia. Não é. Esconde-se para captar o próprio segredo. Seu quase-não-perfume é glória abafada mas exige da gente que o busque. Não grita nunca o seu perfume. Violeta diz levezas que não se podem dizer. (p.63)
(...)
Sinto-me então como se eu fosse um tigre com flecha mortal cravada na carne e que estivesse rondando devagar as pessoas medrosas para descobrir quem teria coragem de aproximar-se e tirar-lhe a dor. E então há a pessoa que sabe que tigre ferido é apenas tão perigoso como criança. E aproximando-se da fera, sem medo de tocá-la, arranca a flecha fincada.
E o tigre? Não se pode agradecer. Então eu dou umas voltas vagarosas em frente à pessoa e hesito. Lambo uma das patas e depois, como não é a palavra que tem então importância, afasto-me silenciosamente. (p.91)
O que sou neste instante? Sou uma máquina de escrever fazendo ecoar as teclas secas na úmida e escura madrugada. Há muito já não sou gente. Quiseram que eu fosse um objeto. Sou um objeto. Que cria outros objetos e a máquina cria a nós todos. Ela exige. O mecanicismo exige e exige a minha vida. Mas eu não obedeço totalmente: se tenho que ser um objeto, que seja um objeto que grita. Há uma coisa dentro de mim que dói. Ah como dói e como grita pedindo socorro. Mas faltam lágrimas na máquina que sou. Sou um objeto sem destino. Sou um objeto nas mãos de quem? tal é o meu destino humano. O que me salva é grito. Eu protesto em nome do que está dentro do objeto atrás do atrás do pensamento-sentimento. Sou um objeto urgente. (p.91-2)
(...)
Ah viver é tão desconfortável. Tudo aperta: o corpo exige, o espírito não pára, viver parece ter sono e não poder dormir - viver é incômodo. Não se pode andar nu nem de corpo nem de espírito. (p.100)
Clarice Lispector, Água Viva (1973). 11ª ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1990
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