A solidão é uma tragada (crônica de Rogério Pereira):
Gosto da solidão. Não bebo. Não fumo. Agora, por azar, descubro que estou muito perto da morte. Parei de fumar e beber por motivos distintos. O cigarro consumia-me as últimas golfadas de ar ao arriscar risíveis dribles nos campinhos de pelada. A bebida cozinhava-me as vísceras e sapecava-me o pouco juízo. Não fumo há 15 anos. Não bebo há 115 meses e 14 dias. No entanto, a abstinência etílica e de tragadas longas e saborosas não me possibilitará algumas horas a mais de vida. Estou com os dias contados. Maldição. Há uma saída, mas reluto em tomar um caminho que me parece assustador. Talvez a companhia da escuridão, a exalar o adocicado aroma dos crisântemos, seja uma alternativa mais honrosa e menos traumática.
Gosto da solidão. Não bebo. Não fumo. Agora, por azar, descubro que estou muito perto da morte. Parei de fumar e beber por motivos distintos. O cigarro consumia-me as últimas golfadas de ar ao arriscar risíveis dribles nos campinhos de pelada. A bebida cozinhava-me as vísceras e sapecava-me o pouco juízo. Não fumo há 15 anos. Não bebo há 115 meses e 14 dias. No entanto, a abstinência etílica e de tragadas longas e saborosas não me possibilitará algumas horas a mais de vida. Estou com os dias contados. Maldição. Há uma saída, mas reluto em tomar um caminho que me parece assustador. Talvez a companhia da escuridão, a exalar o adocicado aroma dos crisântemos, seja uma alternativa mais honrosa e menos traumática.
Tenho poucos, pouquíssimos amigos. Minha vida social está envolta de poucas palavras, nenhuma festa e demonstrações tímidas de carinho. Alguns dizem que sou misantropo. Longe disso. Apenas abomino a aglomeração de afetos e manifestações exasperantes de amor coletivo. Não sirvo para sindicalista, piqueteiro ou swinger. Agora, se eu quiser viver mais alguns segundos do que o previsto (quanto?), terei de rever toda a minha vida. Pelo menos é isso que me alerta um dos poucos amigos. Abro o e-mail e leio a matéria enviada, cujo título causa-me certo incômodo: “Não ter amigos é tão perigoso quanto fumar ou beber em excesso”. Penso de imediato: não é comigo. Tenho amigos. Poucos, é verdade. Muito poucos. Pouquíssimos. Caramba! Logo abaixo do título, uma informação infiltra-se pelo meu abdome, aloja-se em alguma parte do corpo, uma parte desconhecida, e espeta-me as costelas: “Estudos revelam que pessoas com menos relações sociais morrem até 50% antes das que convivem mais”. A frase, confusa e mal escrita, tenta me alertar para a necessidade de aumentar minhas relações sociais. O que isso significa?
A reportagem começa de maneira amedrontadora: “Não ter amigos pode ser tão perigoso para a saúde como fumar ou consumir álcool em excesso, diz um estudo de cientistas americanos publicado no site da revista PLoS Medicine”. A coisa parece séria. Especialistas da Universidade Brigham Young, em Utah, e do Departamento de Epidemiologia da Universidade da Carolina do Norte, nos Estados Unidos, analisaram como o isolamento excessivo pode afetar a saúde. E provam em números. A morte é um número. Os pesquisadores recorreram a 148 estudos prévios com dados sobre a mortalidade de indivíduos em função de suas relações sociais, diz o texto.
Eu, com certeza, revestido de uma carcaça falsamente normal, devo me encaixar em algum exemplo analisado. Ao todo, foram acompanhadas quase 309 mil pessoas por cerca de 7 anos e meio. Convenhamos: pesquisador americano tem tempo à beça. Aí, chegaram à fatídica (pelos menos para mim) conclusão de que “as pessoas com mais relações sociais têm 50% mais chances de sobrevivência do que quem se relaciona menos com outros”. Mas quem seriam estes outros? Humanos? Vale animal? Pônei, cachorro, cobra ou minhoca? As relações homem-animal são válidas para a longevidade? Pouco importa. Nunca tive animal de estimação. Tampouco minha iniciação sexual ocorreu com as galinhas que ciscavam no terreiro da vizinha.
Nada me traz esperança. O estudo mostra que “a importância de ter uma boa rede de amigos e boas relações familiares é comparável a deixar de fumar e supera muitos fatores de risco como a obesidade e a inatividade física”. Mas o que é uma boa rede de amigos? Quantidade? Não serve uma rede de três ou quatro? Com quantos amigos se faz uma rede? De relações familiares, melhor não falar. Há um abismo entre as convenções assustadoras, alimentadas por ruidosos almoços aos domingos, regados a sorrisos, abraços e lágrimas, e aquilo que considero uma família.
Mas do que morrem os solitários, os misantropos, os reclusos, os tímidos, os estranhos? Infarto, câncer, tédio ou suicídio? O estudo, ao que parece, não indica as principais causas. Isso não importa. O que importa é que você, sujeito recluso, de poucos amigos, vai pra cova com mais rapidez. Não adianta largar o cigarro e a bebida. Não adianta corridinhas no parque, pedaladas na esteira. Abdominais diários não te salvarão. Não se matricule na melhor academia. A não ser que tenha o objetivo de fazer amigos. Não contrate um personal trainer. Não. Contrate um personal stylist. Ou contrate ambos. E se matricule na melhor academia. Melhore sua aparência. Compre roupas bacanas. Borrife um perfume importado nas ancas do pescoço, no peito, na virilha, sei lá. E vá à luta. Busque amigos. Seja simpático. Faça um clareamento dentário. Deixe os molares, os incisivos brilhando. Corte o cabelo. Faça as unhas. Decore boas frases de efeito. Leia um livro do Augusto Cury e outro do Machado de Assis. Pareça inteligente. E descolado. Tente impressionar muitas pessoas. Seja querido. Seja querida. Seja bacana. Não faça cara feia. Não fique deprimido, nem nostálgico, nem melancólico. Um botox aqui, um silicone ali. Alegria, sempre. Afinal, é a sua vida, a sua longa vida, que está em jogo. Entre no Facebook, no Twitter, no Orkut, em tudo. Aumente a sua rede. Pesque peixes gigantes. Grandes amigos. Amigos para sempre. Amigos instantâneos feito miojo. Faça as pazes com mãe, pai, irmãos, cunhados, tios, tias, cachorro, papagaio. Muita maionese e coca-cola no domingo. Só não vale aquele arrotinho camuflado na coxa do frango assado. Em paz com a família toda. Vamos lá. Bola pra frente. Xô, caixão. Pra lá, crisântemos. A vida é bela. Eu mereço uma vida longa. Você também. Uma vida feliz, com muitos e muitos anos de vida.
Mas não esqueça: não exagere na bebida, abandone o cigarro, pratique esportes, faça check-up periódico (coração, seios e próstata, principalmente), não abuse dos doces, do sal, das drogas, do glúten, não engorde, não se estresse, não tenha um trabalho deprimente, faça yoga (se possível), pilates (se possível), respire ar puro, evite o excesso de café, coma só produtos orgânicos, beije na boca (parece que ativa dezenas de músculos), brinque com os filhos, não discuta com o vizinho, sorria bastante, faça sexo com muita frequência, tome vitaminas, hidrate o corpo, proteja a pele do sol, evite se afogar no mar, olhe para os dois lados da rua ao atravessá-la, pegue avião somente quando inevitável, não fale com estranhos, proteja-se de bala perdida, não dê mole para sequestradores, evite os pedófilos, tenha momentos de lazer, reze para que um piano não caia na sua cabeça, reze para Deus e similares, não coma pastel de rodoviária, não tome café em aeroportos, torça para não se deparar com um cão raivoso, evite encontrar torcedores adversários na saída do estádio… Acredite na sorte.
E, se possível, tenha alguns minutos de solidão.
Fonte: A solidão é uma tragada, de Rogério Pereira (crônica publicada no site vidabreve.com, reproduzida aqui na íntegra)
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