Fiel a seu modo de escrita paroxístico, chegará ao final do relato de seu apocalipse em Big Sur em dez dias, em Orlando, em outubro de 1961. Em nenhum momento se permitirá fazer papel bonito. Restituirá sem artifícios aqueles dias sem alegria exaltados por bebidas ordinárias, pelo abuso de tokay, um vinho açucarado, a bebida assassina dos pobres, naqueles dias anunciadores da separação dos "irmãos de sangue": Neal e ele, nos dias de miséria sexual e esterelidade. É o livro da coragem e da autenticidade (de uma rara autenticidade) de Kerouac, o não-herói. O fato de não sair engrandecido o faz grande, justamente. Ele descreve sua sordidez, seus embates medíocres, sua dependência. A descrição do delirium é de uma exatidão clínica notável, sob um fundo de memória que sabemos ser fenomenal e de um lirismo contido. Não se esqueceu de nada, não faltou sequer um detalhe. Precisou de um ano de decantação.
Quando sai o livro, em setembro de 1962, a crítica é, paradoxalmente, como sublinha Gerald Nicosia, menos rude, talvez porque diga sem rodeios, tanto a Saturday Review quanto o New York Times, que o beatnik Kerouac, como era de se esperar, terminou enlouquecendo. (p. 209).
(...)
Com Big Sur terminado no outono de 1961, Kerouac pensa nessa ocasião ter concluído sua obra. Aproxima-se dos quarenta anos e não terá mais do que dois livros em preparação - a última parte de Desolation Angels foi escrita no verão precedente na Cidade do México -, Vanity of Duluoz, que acabamos de citar, e Pic, que ele completará pouco antes de morrer. Por hora, ele entra numa longa fase de esterelidade e de relativa sobrevida de aproximadamente dez anos. Será para ele como o percurso em uma terra de desolação, com todos os estigmas de retirada do mundo doloroso, marcado de invectivas, de mal-entendidos, de encolhimento do espaço social e da comunicação. Kerouac estará cada vez mais sozinho, acentuando o vazio à sua volta e o desgosto do isolamento, tentando desajeitadamente remediá-los. Todos os traços de sua personalidade, que ele chama de paranóica, e de seu "comportamento esquizo", segundo sua expressão, que o tornam insuportável agravam-se somados ao alcoolismo inveterado e debilitante. Então ele vitupera, acusa, se insurge, interpela ou tenta infelizes e lacrimosas efusões. Progressivamente, vai se desligando de todos os elos históricos e passa a gravitar em uma solidão total na qual é um injustiçado, uma vítima eletiva. Está imerso na incompreensão de um mundo que o elouquece. (p. 234-235)
Kerouac, de Yves Buin. Porto Alegre: L&PM, 2007.
2 comentários:
Parabéns pelo blog! Uma oficina de inspiração para os que através da palavra buscam o verdadeiro sentido da vida.
Sou fã e já li praticamente tudo de Jack Kerouac. Fazendo uma pesquisa sobre Kerouac em busca de textos ainda inéditos para mim, cheguei ao seu blog.
Se quiser fazer uma visita ao meu espaço virtual, verá que disponibilizo o livro On The Road.
http://nikolassinopoulos.blogspot.com
Essa parte da vida pós on the road me faz pensar bastante. chego até certa raiva dele por conta do que parece ter acontecido. mas também acho bravo o fato dele mesmo ter se auto-desmistificado. Satory in Paris foi um livro que não consegui acabar de ler de tanto que me deixou pra baixo... enfim! Let it Beatnik - http://jackerouac.com
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