Deixara para trás, pendurados em invisíveis cabides, os meus títulos exteriores. Que me importava a mim, nessa expedição decisiva, ser professor da Faculdade de Filosofia, padrão O? Que me importava toda a série de pequenas conquistas e de grandes malogros que fazem a fisionomia exterior de minha vida? Sou brasileiro, eleitor, vacinado, autor de um trabalho sobre as integrais de Bessel, membro do clube de Engenharia, proprietário, meio poeta, e agora canceroso. Todos esses predicados juntos não dão um sujeito. Cercam-no, penduram-se nele, ou melhor, realizam-se nele. Mas o sujeito oculto, o sujeito que se procura, e que às vezes inventaria suas exterioridades com um olhar melancólico de velho fidalgo meio desmemoriado, que percorresse de uma sacada do solar os seus domínios invadidos pela erva e desfigurados pelo abandono - onde está ele, esse sujeito? Machuquei ontem o meu dedo. Mas o meu dedo, com todas as suas ligações vivas, parece-me distante, exterior, como um pau-de-cerca derrubado, que o triste dono deste solar arruinado calcula como e quando consertará.
Recuando, descendo cada vez mais fundo, abrindo caminho entre as disparatadas coisas exteriores, pergunto em voz alta: "Onde está a sala do trono no castelo encantado de mim mesmo?". De escuridão em escuridão, de silêncio em silêncio, atravesso com medo os meus recessos. (p.212-213).
Gustavo Corção, Lições de abismo. 15ª ed., Rio de Janeiro: Agir, 2004. (1ª ed.: 1950).
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