domingo, 30 de janeiro de 2011

O emblema vermelho da coragem

O jovem deu-se conta de uma notável mudança no comportamento de seu companheiro desde os tempos do acampamento à beira do rio. Ele já não parecia estar a todo momento medindo sua bravura. Não mais se enfurecia com pequenas palavras que lhe espetassem a autoestima. Já não era um jovem praça gritalhão. Envolto numa perfeita segurança, demonstrava agora uma fé serena em seus propósitos e habilidades. Essa firmeza interior lhe permitia, naturalmente, ficar indiferente às pequenas alfinetadas que os outros lhe dirigiam.

O jovem refletia. Estava acostumado a pensar no companheiro como em um meninote espalhafatoso, dono de uma audácia advinda da inexperiência, impulsivo, teimoso, ciumento e cheio de uma coragem de latão. Um bebê cambaleante acostumado a marchar com autoridade em seu próprio jardim. O jovem se perguntava de onde teria surgido esse novo olhar, em que momento o colega fizera a grande descoberta de que muita gente se recusaria a se submeter a ele. Agora, aparentemente, o outro tinha chegado ao pico da sabedoria, onde se via como algo muito pequeno. E o jovem percebeu que dali em diante, e para sempre, seria mais fácil viver pelas cercanias do amigo. [p.142-3]

(...)

Lembrou-se do modo como alguns tinham corrido da batalha. Recordando suas expressões contorcidas de terror, sentiu desprezo. Era evidente que se tinham portado de modo muito mais espaventado e frenético do que o absolutamente necessário. Eram frágeis mortais. Quanto a ele, soubera fugir com dignidade e discrição. [p.148]

(...)

Após esse incidente, passando em revista as cenas de batalha que presenciara, sentia-se perfeitamente apto a voltar para casa e aquecer corações com suas histórias de guerra. Via-se numa sala em tons cálidos, contando casos para uma plateia atenta. Teria lauréis para mostrar. Eram insignificantes, talvez, mas num lugarejo em que as glórias eram raridade, era bem possível que brilhassem. [p.149]

Stephen Crane, O emblema vermelho da coragem. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2010.

quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

Stephen Crane

Stephen Crane (1871-1900) foi uma supernova no firmamento literário americano da década de 1890, irrompendo no cenário e brilhando com energia intensa durante vários anos até a morte prematura. No entanto, foi tão prolífico durante sua breve carreira, que a edição standard de sua obra completa contém nada menos que dez grossos volumes de ficção, poesia e jornalismo. Como outros autores de contos realistas, Crane foi treinado no jornalismo. Mas, em seus melhores escritos, transpôs o realismo para chegar à ironia, à paródia e ao impressionismo. Era tanto aprendiz quanto pioneiro, aprendendo seu ofício ao mesmo tempo que alterava o curso da história da literatura americana. Quem sabe quanto ainda teria realizado se não fosse colhido pela morte?

Fragmento da Introdução de Gary Scharnhorst ao livro O emblema vermelho da coragem (The red badge of courage), de Stephen Crane, publicado em 1895. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2010, p. 15.

terça-feira, 25 de janeiro de 2011

A vida como ela é

Durante dez anos, de 1951 a 1961, Nel­son Rodrigues escreveu sua coluna A vida como ela é… para o jornal Última Hora, de Samuel Wainer. Seis dias por sema­na, chovesse ou fizesse sol. A chuva podia ser como “a do quinto ato do Rigoletto” e o sol, daqueles “de derreter catedrais”, se­gundo ele. Todo dia, com uma paciência chinesa e uma imaginação demoníaca, Nelson escrevia uma história diferente. E quase sempre sobre o mesmo assunto: adultério. Desse tema tão simples e tão eterno, ele extraiu quase 2 mil histórias. Os ficcionistas que fingem se levar a sé­rio precisam de toda uma aura de misté­rio para criar. Nelson dispensava esse mis­tério. Chegava cedinho à redação, acendia um cigarro e, na frente dos colegas, entre miríades de cafezinhos, escrevia A vida como ela é… As histórias saíam de casos que lhe contavam, da sua própria obser­vação dos subúrbios cariocas ou das cabe­ludas paixões de que ele ouvira falar em criança. Mas principalmente da sua me­ditação sobre o casamento, o amor e o desejo.

segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

As Aventuras da Virtude

(...) a república nascida da derrota dos jacobinos era, do ponto de vista político, um regime anêmico e dividido. Na ausência dos grandes homens que haviam criado o extraordinário movimento de ideias do século XVIII e que tinham contribuído para a convergência dos ideais ilumistas da filosofia de Rousseau, das lições da Revolução Americana e das energias liberadas pela Revolução na França, sobrou um país dividido, com um Exército poderoso e uma classe política incapaz. A república do ano III já nasceu condenada ao fracasso. Em que pesem a generosidade e a lucidez de Madame de Staël, e até mesmo de Benjamin Constant, faltavam ao regime republicano a força dos ideais e a determinação das instituições. A forma sonhada por muitos estava lá, mas vazia dos conteúdos que haviam sido atribuídos a ela nos sonhos e projetos de tantos homens e mulheres ao longo das décadas anteriores. Naquelas circunstâncias, era uma república impossível, fadada a perecer sob o peso da história que havia presidido seu nascimento. Mas o fracasso republicano, o fechamento do longo e frutuoso período de constituição do republicanismo francês, foi também o momento inaugural de uma herança que até hoje é um dos pilares da cultura democrática e republicana da modernidade. Pouco importa se o século XIX será uma longa luta pela consolidação de muitos dos ideais formulados ao longo do século XVIII. O nascimento de uma matriz republicana francesa foi a criação de uma nova forma de ver e fazer política, a qual será decisiva para os caminhos e aventuras que marcaram as nações que, a partir de então, se confrontaram com o sonho e as dificuldades de se construir um regime baseado na liberdade, na igualdade e na fraternidade.

Newton Bignotto, As Aventuras da Virtude: As ideias republicanas na França do século XVIII. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 366-7.

quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

Littérature: pourquoi écrit-on?

On écrit, en général, parce qu'on a beaucoup lu. Et cela peut devenir une raison de vivre. "Écrire a tourné à l'habitude, pour ne pas dire à la manie", avoue Roger Grenier. "Une manie dans laquelle je m'enfonce chaque jour davantage, de sorte qu'à présent, je suis incapable de goûter aucune autre activité, aucune autre distraction." Ce démon-là a été exprimé avant lui par plus d'un auteur, mais avec des inflexions différentes. Écrire pour combattre la solitude (Montaigne), pour se défendre des offenses de la vie (Pavese) ou apaiser une angoisse (Nerval). Écrire pour être aimé (Barthes) ou pour revivre par la plume des plaisirs désormais interdits (Casanova). Écrire parce qu'on "n'est bon qu'à ça" (Beckett) et d'ailleurs "que faire d'autre ?" (Sartre). Écrire pour laisser une trace, "mériter une petite immortalité" (Scott Fitzgerald). Albertine Sarrazin déclarait même que sa principale motivation était que des gens, à l'avenir, lisent ses livres. Mais "qui ouvre aujourd'hui la porte d'une librairie pour acheter La Cavale ou L'Astragale?" demande, sans méchanceté, Roger Grenier. A l'inverse, il cite ce cri étrange de Flaubert, dans ses dernières heures: "Je vais mourir et cette pute de Bovary va vivre!"

Robert Solé, Le Monde