Jorge Ferreira S. Filho
Em recente artigo, publicado no jornal “Hoje em Dia”, o ex-reitor da UFMG, Aloísio Pimenta, teceu considerações sobre a banalização que tomou conta das solenidades de colação de grau. Indistintamente, atos públicos de formatura de engenheiros, médicos, arquitetos e até de advogados, estão se transformando em algo que mais parece um ensaio de escola de samba que uma solenidade. Apitos, cornetas, conversas, gritos e tambores dominam o espaço e o tempo do evento de formaturas.
Ao que parece, não se trata de casos isolados, pois excetuando-se as solenidades de formatura nas escolas militares (IME, ITA, Academia Naval, Agulhas Negras, CFO, etc.) e nas instituições eclesiásticas, a “bagunça” se generalizou.
Paraninfos, homenageados, patronos e autoridades discursam sabendo que ninguém presta ou pode prestar atenção às suas palavras. O barulho é ensurdecedor e não raras são as deseducadas manifestações da platéia – “kabou”, “chega”, “cala a boca” – no sentido de abafar ou inibir aquele que, ingenuamente, pretende transmitir uma mensagem, ensinar, contribuir, formar uma pessoa, por meio do conteúdo de seu discurso.
O total desprezo pela forma tradicional que se adotava para a colação de grau no Brasil, se configura hoje, como diria Émile Durkhein, um “fato social”. Isso significa a constatação da existência de “maneiras de agir, de pensar e de sentir exteriores ao indivíduo”, caracterizadas por um forte poder coercitivo, da massa de pessoas presentes na solenidade, sobre o comportamento de cada pessoa isoladamente considerada.
Instiga-me perguntar: o fenômeno seria universal ou meramente brasileiro? Aloísio Pimenta, no artigo supra referido, comenta que seus quatro filhos graduaram-se em universidades norte-americanas e suas formaturas foram atos solenes. Disse ainda o ilustre ex-reitor que a responsabilidade pela banalização do ato de colação de grau recai também sobre a autoridade universitária. “Solenidades de formatura representam uma marca da mais alta importância cívica, ética e, inclusive, legal, para todos que participam destes eventos, do mais alto nível social e cultural”, lembra.
Concordo totalmente com Aloísio Pimenta, mas não acredito que este nosso posicionamento – ou manifestação de inconformismo – seja compartilhado pela maioria da sociedade. Fenômenos sociais merecem variadas leituras e interpretações. Por isso, lanço-me numa incursão para verificar como a Antropologia percebe o fenômeno “rito”.
Mariza Peirano, pesquisando sob a tutela da David Rockfeller Center for Latin American Studies, concluiu que, independentemente do tempo e do lugar, a vida social sempre foi marcada por rituais. Trata-se de uma ilusão pensar que o rito seja um fenômeno do passado e que dele estejamos, hoje, liberados. Rituais são instrumentos válidos, eficazes e eficientes para transmitir valores e conhecimentos. São adequados também para reproduzir as relações sociais. Ritual, na concepção do antropólogo Stanley Tambiah, “é um sistema cultural de comunicação simbólica”. Por isso, quando o rito passa a ser a dessacralização do próprio rito – o anti-rito – o fenômeno sinaliza que caminhamos para uma sociedade sem valores, ou seja, sem uma referência ou discussão sobre como nossa sociedade é ou gostaria de ser.
Perder referências aos valores significa também dizer que não há mais o certo ou o errado; tudo pode. O político pode mentir; o aluno pode colar grau, ainda que nada saiba ou que tenha conseguido terminar seu curso sistematicamente “colando”.
As Faculdades, instituições tradicionalmente havidas como responsáveis pela transmissão do legado cultural da humanidade às novas gerações, ou seja, instrumentos de formação das pessoas como cidadãos aptos à moderna sociedade democrática de direito, capitulam-se diante da difícil tarefa de formar – construir uma pessoa – e se transformam em meros transmissores de informações; informam, mas não formam.
Talvez, quando familiares, convidados, professores e colegas passam a admitir como normal o “carnaval” que se verifica nas “solenidades” de formatura, estejam, também, declarando que: não acreditam em nada relacionado com a finalidade da cerimônia; meu filho, que hoje forma, nada sabe; meu colega, que ora cola grau, passou colando; qualquer um hoje pode obter um diploma, sem nunca ter comprado ou lido um livro didático.
Raramente se nota um efetivo compromisso com o ensinar (formar e transmitir valores) nas escolas de ensino superior. Diretores e coordenadores de cursos, com raras exceções, apresentam-se hoje como simples instrumentos de viabilização do negócio – atividade econômica – em que se tornou o ensino superior. O aluno passou a ser um consumidor – um centro de direitos. O professor transformado num “Sílvio Santos” – aquele que deve agradar a platéia; dar à platéia o que ela quer e não o que ela precisa receber.
Não se pode, entretanto, permitir que essa leitura dos fatos nos mergulhe no mar do pessimismo. Ao contrário, o fato serve de alerta e sinalização à sociedade para envidar esforços no sentido de corrigir estes rumos, sob pena de se “desconstruir” a sociedade democrática de direito que almejamos alcançar.
Jorge Ferreira S. Filho é advogado, Mestre em Direito pela Universidade Gama Filho /RJ e membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família - IBDFAM; Integrante do Instituto dos Advogados de Minas Gerais – IAMG e Secretário Geral da 72ª Subseção da OAB – Seção Minas Gerais.
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