"...é daquele emaranhado cheio de dor e angústia fria e solidão escura que ela arranca essa beleza que joga para fora." (p. 119)
"Mas sabes principalmente, com uma certa misericórdia doce por ti, por
todos, que tudo passará um dia, quem sabe tão de repente quanto veio, ou
lentamente, não importa. Por trás de todos os artifícios, só não
saberás nunca que neste exato momento tens a beleza insuportável da
coisa inteiramente viva." (p. 114)
"Quase a noite inteira, um podia ver a brasa acesa do cigarro do outro, furando o escuro feito um demônio de olhos incendiados." (p. 141)
"Pelas tardes poeirentas daquele resto de janeiro, quando o sol parecia a
gema de um enorme ovo frito no azul sem nuvens do céu, ninguém mais
conseguiu trabalhar em paz na repartição. Quase todos ali dentro tinham a
nítida sensação de que seriam infelizes para sempre. E foram." (p. 142)
"Um tranquilizante levinho levinho aí umas cinco miligramas, que o
senhor tome três por dia, ao acordar, após o almoço, ao deitar-se, olhos
vidrados, mente quieta, coração tranquilo, sístole, pausa, diástole,
pausa, sístole, pausa, diástole, sem vãs taquicardias, freio químico nas
emoções. Assim passaria a movimentar-se lépido entre malinhas 007,
paletós cardin, etiquetas fiorucci, suavemente drogado, demônios
suficientemente adormecidos para não incomodar os outros. Proibido
sentimentos, passear sentimentos, passear sentimentos desesperados de
cabeça para baixo, proibido emoções cálidas, angústias fúteis, fantasias
mórbidas e memórias inúteis, um nirvana da bayer e se é bayer.
Suspirou, suspirava muito ultimamente, apanhou a receita, assinou um
cheque com fundos, naturalmente, e saiu antes de ouvir um delicado
porque, afinal, o senhor ainda é tão jovem." (p. 146-7)
"Feito febre, baixava às vezes nele aquela sensação de que nada daria
jamais certo, que todos os esforços seriam para sempre inúteis, e coisa
nenhuma de alguma forma se modificaria. Mais que sensação, densa
certeza viscosa impedindo qualquer movimento em direção à luz. E além da
certeza, a premonição de um futuro onde não haveria o menor esboço de
uma espécie qualquer não sabia se de esperança, fé, alegria, mas
certamente qualquer coisa assim.
Eram dias parados, aqueles. Por mais
que se movimentasse em gestos cotidianos – acordar, comer, caminhar,
dormir –, dentro dele algo permanecia imóvel. Como se seu corpo fosse
apenas a moldura do desenho de um rosto apoiado sobre uma das mãos,
olhos fixos na distância. Ausentou-se, diriam ao vê-lo, se o vissem. E
não seria verdade. Nesses dias, estava presente como nunca, tão pleno e
perto que estava dentro do que chamaria – tivesse palavras, mas não as
tinha ou não queria tê-las – vaga e precisamente de: A Grande Falta." (p. 71)
Caio Fernando Abreu (1948-1996). Morangos mofados (1982). 9ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995