quinta-feira, 4 de junho de 2015

Morangos mofados



"...é daquele emaranhado cheio de dor e angústia fria e solidão escura que ela arranca essa beleza que joga para fora." (p. 119)

"Mas sabes principalmente, com uma certa misericórdia doce por ti, por todos, que tudo passará um dia, quem sabe tão de repente quanto veio, ou lentamente, não importa. Por trás de todos os artifícios, só não saberás nunca que neste exato momento tens a beleza insuportável da coisa inteiramente viva." (p. 114)

"Quase a noite inteira, um podia ver a brasa acesa do cigarro do outro, furando o escuro feito um demônio de olhos incendiados." (p. 141)

"Pelas tardes poeirentas daquele resto de janeiro, quando o sol parecia a gema de um enorme ovo frito no azul sem nuvens do céu, ninguém mais conseguiu trabalhar em paz na repartição. Quase todos ali dentro tinham a nítida sensação de que seriam infelizes para sempre. E foram." (p. 142)

"Um tranquilizante levinho levinho aí umas cinco miligramas, que o senhor tome três por dia, ao acordar, após o almoço, ao deitar-se, olhos vidrados, mente quieta, coração tranquilo, sístole, pausa, diástole, pausa, sístole, pausa, diástole, sem vãs taquicardias, freio químico nas emoções. Assim passaria a movimentar-se lépido entre malinhas 007, paletós cardin, etiquetas fiorucci, suavemente drogado, demônios suficientemente adormecidos para não incomodar os outros. Proibido sentimentos, passear sentimentos, passear sentimentos desesperados de cabeça para baixo, proibido emoções cálidas, angústias fúteis, fantasias mórbidas e memórias inúteis, um nirvana da bayer e se é bayer. Suspirou, suspirava muito ultimamente, apanhou a receita, assinou um cheque com fundos, naturalmente, e saiu antes de ouvir um delicado porque, afinal, o senhor ainda é tão jovem." (p. 146-7)

"Feito febre, baixava às vezes nele aquela sensação de que nada daria jamais certo, que todos os esforços seriam para sempre inúteis, e coisa nenhuma de alguma forma se modificaria. Mais que sensação, densa certeza viscosa impedindo qualquer movimento em direção à luz. E além da certeza, a premonição de um futuro onde não haveria o menor esboço de uma espécie qualquer não sabia se de esperança, fé, alegria, mas certamente qualquer coisa assim.

Eram dias parados, aqueles. Por mais que se movimentasse em gestos cotidianos – acordar, comer, caminhar, dormir –, dentro dele algo permanecia imóvel. Como se seu corpo fosse apenas a moldura do desenho de um rosto apoiado sobre uma das mãos, olhos fixos na distância. Ausentou-se, diriam ao vê-lo, se o vissem. E não seria verdade. Nesses dias, estava presente como nunca, tão pleno e perto que estava dentro do que chamaria – tivesse palavras, mas não as tinha ou não queria tê-las – vaga e precisamente de: A Grande Falta." (p. 71)

Caio Fernando Abreu (1948-1996). Morangos mofados (1982). 9ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995

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