Se me perguntarem, não sei dizer o que comi ontem no almoço. Mas sou capaz de reproduzir diálogos inteiros da minha juventude, quando esta fazenda ainda era do senhor Avelino e eu ainda morava na casa lá de baixo, com Tia Palma, meus pais e meus irmãos. Gozado, isso. Vai entender. Memórias antigas? Nítidas, perfeitas, cheias de mínimos detalhes, cheiros e sons até. Inclusive as experiências ancestrais que não vivi, as histórias lá de Portugal que me foram contadas: todas aqui dentro, de cor e salteado. Fatos recentes? Coitados. Vão se segurando em mim como podem. Parecem aqueles personagens de cinema, cara de terror, agarrados no alto do edifício só pelas pontinhas dos dedos. Quase todos despencam. E pior: diante do olhar de alguém que os vê de cima sem pingo de misericórdia. Uma coisa ou outra fica, é verdade. Meio desbotada, imprecisa, extremamente grata à mão do cérebro que a resgata. Nenhum critério de seleção. A bobagem, o cérebro retém. O notável, ele descarta. O recado é direto: chega de colecionar lembrancinhas da viagem terrena. Fazer o que com toda a tralha? Além do mais, com o correr ou o arrastar dos anos, não há fortuna que pague tal excesso de bagagem. Eu, Antonio, entendo perfeitamente os argumentos. Aceito sem queixumes. Só levo comigo o que a alfândega da mente deixa passar.
Aos 88 anos posso delirar à vontade. Delírio, o cérebro deixa. E até estimula. O Deus do azul acha graça. Imaginação fértil, realismo fantástico: preciosidades de velho e criança. Bom ser criança vetusta, reaprender a inventar histórias e a esquecê-las com facilidade, alimentar sonhos, não guardar raivas nem condecorações, não se deter em nada que dure mais de um dia. (p.143-4)
(...)
Vejo-me aos 10, aos 20, aos 40 e poucos anos com alegre saudade. Claro que é possível. Há sempre algo engraçado na dor da lembrança. Quando cheguei aos 70 anos, chorei muito, choro acumulado. "Quanto tempo me resta? E no pouquinho de vida antes do fim, serei lúcido, serei lúcido? Esses riscos todos aí no rosto e no pescoço, tantos e tão fundos... Tia Palma, você está por perto? Me ensina alguma coisa nova, por favor, me ensina." E o choro vinha. E vinha. Incontido. Até que a voz - era a dela, tenho certeza - não fez drama, fez comédia: "Brinque de dar nome de rio às suas rugas, Antonio." Comecei a rir e a chorar ao mesmo tempo. "Que história é essa, Tia Palma?" Só fui entender quando, de imediato, identifiquei o Ganges, o Nilo e o Amazonas caudalosos em minha testa. E depois, o Tigre e o Eufrates - irmãos antiquíssimos - descendo à direita e à esquerda do nariz. E também o Paraná, e o São Francisco. No pescoço, altivos, o Tejo, o Tibre, o Tâmisa, o Volga e o Reno. Exultei ao reconhecer o Sena, o Prata e todos os seus afluentes em volta dos olhos. Era uma bela e estranha geografia. E chorei feito bobo ao ver aquele manancial de água me correndo pelo rosto. Água doce.
Hoje, a caminho dos 90, faço a barba sem medo do escanhoar, a afiada navalha mais uma vez a contrapelo. O apuro possível, a melhor aparência para os que estão perto. Não importam os eventuais cortes aqui e ali, os arranhões passageiros, a inesperada irritação da pele. Confio na velha pedra-ume. E o rosto já não mudará tanto. Ninguém perceberá as novas rugas, os novos rios. Pelo menos por fora, sei perfeitamente como me verei amanhã. O espelho não me intimida faz tempo. Eu já fui tantos! (p. 65-66)
Francisco Azevedo, O arroz de Palma. 4ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2011.