quinta-feira, 22 de março de 2012

Devolvo-te hoje "O arroz de Palma"


Pará de Minas, 15 de março de 2012

Amiga,

Com um leve aperto de saudade no coração, devolvo-te hoje “O arroz de Palma”.

É verdade que tuas mãos, ao senti-lo, encontrarão nele algumas marcas de uso deixadas pelas minhas. Por mais cuidado que eu tenha tido com ele, não consegui evitar, pelo manusear, as duas dobras na capa, na frente e atrás (surgidas quase naturalmente, pela leitura, como duas rugas de velho); um pouco de terra ou poeira (invisível para mim) que, muito discretamente, nuançou uma ou outra página; e também o pernilongo que, sem eu ver, pousou na última folha e acabou deixando lá sua vida, coitadinho.

Peço desculpas.

Mas, para compensar, devolvo-te hoje “O arroz de Palma” carregado de energia boa. Devolvo-o diferente, não só pelo toque de minhas mãos, pelo manusear (que deveria ter sido mais cuidadoso), mas com uma aura diferente: uma luz boa que a gente não pode ver nem sentir com as mãos, só com o coração: a luz da alegria que ele me proporcionou; do prazer que eu tive ao sentir suas páginas enquanto viajava no tempo e no espaço ao lado dos personagens; do choro bom que inúmeras vezes ele me fez derramar; da esperança, da paz, enfim, de tudo de bom que esse livro encantador me proporcionou.

E o mais importante, amiga: devolvo-te hoje “O arroz de Palma” cheio de gratidão por você, que me despertou para a sua leitura.

Muito obrigado pelo bem que você me fez!

Que Deus te abençoe!

Flávio Marcus da Silva

sábado, 10 de março de 2012

Boa morte

Isabel e eu temos a mesma idade. Nas orações da noite, ela pede a Deus uma boa morte. Pergunto a ela o que é uma boa morte. Uma morte natural, ela responde. Seria assim uma morte "light". Mas nós não somos uma "Família Light". Para mim, é pouco. Explica melhor, por favor... Isabel é paciente comigo. Às vezes, eu canso, eu sei. Ela me dá uma imagem, que é como eu melhor a entendo.

- Já é tarde. Você jantou, viu alguma bobagem na televisão. Veio para o quarto, leu mais uns capítulos do livro de cabeceira. O sono bate. As pálpebras começam a pesar. Agora, você quer é dormir. Está de banho tomado, dentes escovados, camisola limpa, nova muda de roupa na cama. O colchão com o lençol esticado apetece. Podem convidá-la para o que for, a melhor festa, o programa mais animado, ver o amigo ou o filho mais querido, conhecer a cidade que você sempre sonhou, comer o doce especial, fazer a antiga extravagância, o sexo mais arrebatado. Nada seduz. Nada será capaz de lhe tirar aquele soninho gostoso. Você se dá por satisfeita, está de bem com a vida. Tem certeza de que será uma noite tranquila. Enfim, quer mesmo é apagar a luz e dormir. E você dorme. E você se entrega ao desconhecido sem nenhum medo.

Francisco Azevedo, O arroz de Palma. Rio de Janeiro: Record, 2011, p. 63-64

Foto: Francisco Azevedo (1951-)

sexta-feira, 9 de março de 2012

Memória

Se me perguntarem, não sei dizer o que comi ontem no almoço. Mas sou capaz de reproduzir diálogos inteiros da minha juventude, quando esta fazenda ainda era do senhor Avelino e eu ainda morava na casa lá de baixo, com Tia Palma, meus pais e meus irmãos. Gozado, isso. Vai entender. Memórias antigas? Nítidas, perfeitas, cheias de mínimos detalhes, cheiros e sons até. Inclusive as experiências ancestrais que não vivi, as histórias lá de Portugal que me foram contadas: todas aqui dentro, de cor e salteado. Fatos recentes? Coitados. Vão se segurando em mim como podem. Parecem aqueles personagens de cinema, cara de terror, agarrados no alto do edifício só pelas pontinhas dos dedos. Quase todos despencam. E pior: diante do olhar de alguém que os vê de cima sem pingo de misericórdia. Uma coisa ou outra fica, é verdade. Meio desbotada, imprecisa, extremamente grata à mão do cérebro que a resgata. Nenhum critério de seleção. A bobagem, o cérebro retém. O notável, ele descarta. O recado é direto: chega de colecionar lembrancinhas da viagem terrena. Fazer o que com toda a tralha? Além do mais, com o correr ou o arrastar dos anos, não há fortuna que pague tal excesso de bagagem. Eu, Antonio, entendo perfeitamente os argumentos. Aceito sem queixumes. Só levo comigo o que a alfândega da mente deixa passar.

Aos 88 anos posso delirar à vontade. Delírio, o cérebro deixa. E até estimula. O Deus do azul acha graça. Imaginação fértil, realismo fantástico: preciosidades de velho e criança. Bom ser criança vetusta, reaprender a inventar histórias e a esquecê-las com facilidade, alimentar sonhos, não guardar raivas nem condecorações, não se deter em nada que dure mais de um dia. (p.143-4)

(...)

Vejo-me aos 10, aos 20, aos 40 e poucos anos com alegre saudade. Claro que é possível. Há sempre algo engraçado na dor da lembrança. Quando cheguei aos 70 anos, chorei muito, choro acumulado. "Quanto tempo me resta? E no pouquinho de vida antes do fim, serei lúcido, serei lúcido? Esses riscos todos aí no rosto e no pescoço, tantos e tão fundos... Tia Palma, você está por perto? Me ensina alguma coisa nova, por favor, me ensina." E o choro vinha. E vinha. Incontido. Até que a voz - era a dela, tenho certeza - não fez drama, fez comédia: "Brinque de dar nome de rio às suas rugas, Antonio." Comecei a rir e a chorar ao mesmo tempo. "Que história é essa, Tia Palma?" Só fui entender quando, de imediato, identifiquei o Ganges, o Nilo e o Amazonas caudalosos em minha testa. E depois, o Tigre e o Eufrates - irmãos antiquíssimos - descendo à direita e à esquerda do nariz. E também o Paraná, e o São Francisco. No pescoço, altivos, o Tejo, o Tibre, o Tâmisa, o Volga e o Reno. Exultei ao reconhecer o Sena, o Prata e todos os seus afluentes em volta dos olhos. Era uma bela e estranha geografia. E chorei feito bobo ao ver aquele manancial de água me correndo pelo rosto. Água doce.

Hoje, a caminho dos 90, faço a barba sem medo do escanhoar, a afiada navalha mais uma vez a contrapelo. O apuro possível, a melhor aparência para os que estão perto. Não importam os eventuais cortes aqui e ali, os arranhões passageiros, a inesperada irritação da pele. Confio na velha pedra-ume. E o rosto já não mudará tanto. Ninguém perceberá as novas rugas, os novos rios. Pelo menos por fora, sei perfeitamente como me verei amanhã. O espelho não me intimida faz tempo. Eu já fui tantos! (p. 65-66)

Francisco Azevedo, O arroz de Palma. 4ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2011.

domingo, 4 de março de 2012

O arroz de Palma

Papai possuía inúmeras qualidades, mas era homem orgulhoso e enfezado. Tia Palma tinha uma teoria que explicava perfeitamente o mau humor de meu pai: a prisão de ventre. É verdade. Papai sofria horrores com prisão de ventre. Tia Palma me ensinou que "enfezado" vem de "fezes". Uma pessoa com o intestino preso se enfeza com facilidade. E não é que, na prática, a teoria dava certo? Sempre que papai era feliz no banheiro, a família inteira notava. Ele ficava, literalmente, mais leve. Se alguém tivesse que pedir algo a ele, ficava atento à sua ida à privada: este poderia ser o momento ideal. Quando bem sucedido, papai saía do banheiro em verdadeiro estado de graça. Um homem purificado.

Cedo também aprendi que o corpo conhece outras maneiras de se purificar. A urina, a menstruação, o vômito, as espinhas, o esperma, a coriza e o suor, tudo nos purifica. O que o corpo põe fora é sinal de purificação. Assim, as lágrimas seriam a forma mais elevada de nos purificarmos. E o nascimento de uma criança, a mais completa. (p. 21-22)

(...)

- Às vezes, é bom deixar correr o sangue. (p. 117)

(...)

- Nosso presente é feito de amor. Só amor. Mas sabe, Joaquim, que quando fores rico - se um dia fores - poderás comprar quantos sobrados tu quiseres. Agora, amor, não. Amor é artigo que não está à venda. Propriedades, sim. Automóveis, sim. Mas amor, meu filho, nem ao menos uns poucos gramas tu consegues encontrar no mercado. (p. 109)

(...)

Tento entender minha aflição. Sim, porque só procuramos entender o que é ruim. O que é bom simplesmente vivemos sem mistérios. Se estamos com saúde, se realizamos um bom negócio, se é um bom filho, achamos que tem de ser assim e pronto. Os porquês só para o que nos desgraça e incomoda - questionários sem-fins. Para o que nos alegra não há perguntas, só belas exclamações - vida que segue e nem nos damos conta. Na felicidade tudo faz sentido. O universo torna-se simples e fácil como número de mágica que fascina. Mas eu, neste exato momento, embora eternamente curioso, peço a Deus que não me tire mais nada da cartola. Quero é mergulhar de cabeça dentro desse vaso preto de abas que não quebra, conhecer a origem do caos e da ordem, aprender os truques... Deus coleciona universos, eu coleciono memórias e sonhos, Bernardo coleciona amigos no Orkut. Se não é o mais sábio, é sem dúvida o mais comunicativo dos três. (p. 90-91)

(...)

Quando conto ao meu neto casos vividos por mim, e por pessoas que me são queridas, ou que me foram passados por meus pais ou Tia Palma, não aspiro à posteridade. Bem ou mal falado, meu nome não irá além de umas poucas gerações. Pretendo apenas cuidar do meu jardim. Depois, será a vez de o mato tomar conta. Mas tudo a seu tempo. (p. 83)

Francisco Azevedo, O arroz de Palma. 4ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2011.

Brooklyn Follies

Un jour ou l'autre, nous allions tous mourir et une fois nos corps emportés et enfouis dans la terre, seuls nos amis et nos familles sauraient que nous avions vécu. Nos morts ne seraient pas annoncées à la radio, ni à la télévision. Il n'y aurait pas de notices nécrologiques dans le New York Times. On n'écrirait pas de livres sur nous. Cet honneur-là est réservé aux puissants et aux célébrités, aux gens d'un talent exceptionnel, mais qui se soucierait de publier les biographies des gens ordinaires, de ceux qu'on ne chante pas, de ceux qu'on rencontre dans la rue tous les jours de la semaine et qu'on ne prend même pas la peine de remarquer?

La plupart des vies disparaissent. Quelqu'un meurt et, petit à petit, toutes traces de sa vie s'effacent. Un inventeur survit dans ses inventions, un architecte dans ses immeubles, mais la majorité des gens ne laissent derrière eux ni monument ni réalisation durable: une série d'albums photo, un bulletin scolaire de cinquième primaire, un trophée gagné au bowling, un cendrier piqué dans une chambre d'hôtel en Floride le dernier jour de vacances quasiment oubliées. Quelques objets, quelques documents, quelques impressions vagues conservées par des tiers. Ceux-ci ont invariablement des histoires à raconter à propos du défunt, mais le plus souvent en mêlant les dates, en oubliant des événements, et la vérité en sort de plus en plus déformée et quand ces gens-là meurent à leur tour, presque toutes leurs histoires s'en vont avec eux.

Mon idée était la suivante: créer une entreprise qui publierait des livres sur les oubliés, sauvegarder les histoires, les événements et les documents avant qu'ils s'évanouissent - et leur donner la forme d'un récit continu, le récit d'une vie.

Les biographies seraient commandées par des amis ou des parents de l'intéressé, et les livres seraient imprimés en quantités limitées à usage privé - de cinquante à trois ou quatre cents exemplaires. J'imaginais que je les écrirais moi-même mais, si la demande devenait trop importante, je pourrais toujours me faire aider par d'autres auteurs: poètes et romanciers désargentés, anciens journalistes, universitaires sans emploi, voire, peut-être, par Tom. Le coût de la rédaction et de la publication de tels livres serait considérable mais je ne voulais pas que mes biographies deviennent un privilège accessible seulement aux riches. Pour les familles aux petits moyens, j'envisageais un nouveau genre de police d'assurance selon laquelle une somme négligeable serait mise de côté chaque mois ou chaque trimestre en vue de faire face au financement du livre. Non plus une assurance immobilière, ni une assurance vie - une assurance biographie.

Étais-je fou de rêver que je pourrais faire quelque chose de ce projet incongru? Je ne le pensais pas. Quelle jeune femme n'aimerait pas lire la biographie véridique de son père - même si ce père n'avait été q'un ouvrier d'usine ou le sous-directeur d'une banque rurale? Quelle mère ne souhaiterait lire l'histoire de son fils policier, tué dans l'exercice de ser fonctions à l'âge de trente-quatre ans? Dans tous les cas, ce devrait être une affaire d'amour. Une épouse ou un mari, un fils ou une fille, un père ou une mère, un frère ou une soeur - seuls les attachements les plus profonds. Ces gens viendraient me trouver six mois ou un an après la mort du sujet. Ils auraient alors fait leur deuil, mais ils ne seraient pas encore consolés et, à présent que leur vie quotidienne avait repris son cours, ils comprendraient qu'ils ne le seraient jamais. Ils désireraient redonner vie à celui ou celle qu'ils aimaient et je ferais tout ce qui serait humainement possible pour répondre à leur désir. Je ressusciterais cette personne à l'aide de mots et, une fois les pages imprimées et l'histoire reliée sous une couverture, ils auraient un objet à chérir pour le restant de leur vie. Non seulement cela, mais aussi un objet qui leur survivrait, qui nous survivrait à tous.

Il ne faut jamais sous-estimer le pouvoir des livres.

Paul Auster, Brooklyn Follies. Babel, 2005, p. 360-2

O mistério da caixa-preta

Aproveitei o carnaval para ler. O livro escolhido? “O mistério da caixa-preta e outras histórias” do escritor patafufo Flávio Marcus da Silva. Uma delícia de livro! São contos. Alguns eu já havia lido no site GRNews [na coluna Crônicas de um patafufo]. E achei ótimo relê-los. Aproveitei para ler para minha filha o conto “Muito esquisito” e rimos juntas. É que o conto passa pela fantasia de todo pai e de todo filho. O pai super herói! Eu sempre falei com ela que sou uma onça e ai de quem ousar machucá-la. Não cometeria a indelicadeza de contar a história. Mas já deixei claro o tema.

Flávio é um acendedor de luzes. Sabe como poucos os cômodos da alma. E vai sem dó. Escancara as portas do “Barba Azul”. Deixa todas as feras soltas. Não há como contestá-lo. Ele abre portas e janelas deste submundo que mora em nós e deixa entrar o ar. As nossas mazelas ficam esparramadas pelas páginas e longe de temê-las! O olhar de frente só nos faz entender a nossa pequenez e ao mesmo tempo a nossa grandeza. Não há contradição. Há sim, um humor cortante. (...)

Ana Cláudia SSaldanha