sábado, 10 de março de 2012

Boa morte

Isabel e eu temos a mesma idade. Nas orações da noite, ela pede a Deus uma boa morte. Pergunto a ela o que é uma boa morte. Uma morte natural, ela responde. Seria assim uma morte "light". Mas nós não somos uma "Família Light". Para mim, é pouco. Explica melhor, por favor... Isabel é paciente comigo. Às vezes, eu canso, eu sei. Ela me dá uma imagem, que é como eu melhor a entendo.

- Já é tarde. Você jantou, viu alguma bobagem na televisão. Veio para o quarto, leu mais uns capítulos do livro de cabeceira. O sono bate. As pálpebras começam a pesar. Agora, você quer é dormir. Está de banho tomado, dentes escovados, camisola limpa, nova muda de roupa na cama. O colchão com o lençol esticado apetece. Podem convidá-la para o que for, a melhor festa, o programa mais animado, ver o amigo ou o filho mais querido, conhecer a cidade que você sempre sonhou, comer o doce especial, fazer a antiga extravagância, o sexo mais arrebatado. Nada seduz. Nada será capaz de lhe tirar aquele soninho gostoso. Você se dá por satisfeita, está de bem com a vida. Tem certeza de que será uma noite tranquila. Enfim, quer mesmo é apagar a luz e dormir. E você dorme. E você se entrega ao desconhecido sem nenhum medo.

Francisco Azevedo, O arroz de Palma. Rio de Janeiro: Record, 2011, p. 63-64

Foto: Francisco Azevedo (1951-)

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