domingo, 4 de março de 2012

O arroz de Palma

Papai possuía inúmeras qualidades, mas era homem orgulhoso e enfezado. Tia Palma tinha uma teoria que explicava perfeitamente o mau humor de meu pai: a prisão de ventre. É verdade. Papai sofria horrores com prisão de ventre. Tia Palma me ensinou que "enfezado" vem de "fezes". Uma pessoa com o intestino preso se enfeza com facilidade. E não é que, na prática, a teoria dava certo? Sempre que papai era feliz no banheiro, a família inteira notava. Ele ficava, literalmente, mais leve. Se alguém tivesse que pedir algo a ele, ficava atento à sua ida à privada: este poderia ser o momento ideal. Quando bem sucedido, papai saía do banheiro em verdadeiro estado de graça. Um homem purificado.

Cedo também aprendi que o corpo conhece outras maneiras de se purificar. A urina, a menstruação, o vômito, as espinhas, o esperma, a coriza e o suor, tudo nos purifica. O que o corpo põe fora é sinal de purificação. Assim, as lágrimas seriam a forma mais elevada de nos purificarmos. E o nascimento de uma criança, a mais completa. (p. 21-22)

(...)

- Às vezes, é bom deixar correr o sangue. (p. 117)

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- Nosso presente é feito de amor. Só amor. Mas sabe, Joaquim, que quando fores rico - se um dia fores - poderás comprar quantos sobrados tu quiseres. Agora, amor, não. Amor é artigo que não está à venda. Propriedades, sim. Automóveis, sim. Mas amor, meu filho, nem ao menos uns poucos gramas tu consegues encontrar no mercado. (p. 109)

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Tento entender minha aflição. Sim, porque só procuramos entender o que é ruim. O que é bom simplesmente vivemos sem mistérios. Se estamos com saúde, se realizamos um bom negócio, se é um bom filho, achamos que tem de ser assim e pronto. Os porquês só para o que nos desgraça e incomoda - questionários sem-fins. Para o que nos alegra não há perguntas, só belas exclamações - vida que segue e nem nos damos conta. Na felicidade tudo faz sentido. O universo torna-se simples e fácil como número de mágica que fascina. Mas eu, neste exato momento, embora eternamente curioso, peço a Deus que não me tire mais nada da cartola. Quero é mergulhar de cabeça dentro desse vaso preto de abas que não quebra, conhecer a origem do caos e da ordem, aprender os truques... Deus coleciona universos, eu coleciono memórias e sonhos, Bernardo coleciona amigos no Orkut. Se não é o mais sábio, é sem dúvida o mais comunicativo dos três. (p. 90-91)

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Quando conto ao meu neto casos vividos por mim, e por pessoas que me são queridas, ou que me foram passados por meus pais ou Tia Palma, não aspiro à posteridade. Bem ou mal falado, meu nome não irá além de umas poucas gerações. Pretendo apenas cuidar do meu jardim. Depois, será a vez de o mato tomar conta. Mas tudo a seu tempo. (p. 83)

Francisco Azevedo, O arroz de Palma. 4ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2011.

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