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Aos 88 anos posso delirar à vontade. Delírio, o cérebro deixa. E até estimula. O Deus do azul acha graça. Imaginação fértil, realismo fantástico: preciosidades de velho e criança. Bom ser criança vetusta, reaprender a inventar histórias e a esquecê-las com facilidade, alimentar sonhos, não guardar raivas nem condecorações, não se deter em nada que dure mais de um dia. (p.143-4)
(...)
Vejo-me aos 10, aos 20, aos 40 e poucos anos com alegre saudade. Claro que é possível. Há sempre algo engraçado na dor da lembrança. Quando cheguei aos 70 anos, chorei muito, choro acumulado. "Quanto tempo me resta? E no pouquinho de vida antes do fim, serei lúcido, serei lúcido? Esses riscos todos aí no rosto e no pescoço, tantos e tão fundos... Tia Palma, você está por perto? Me ensina alguma coisa nova, por favor, me ensina." E o choro vinha. E vinha. Incontido. Até que a voz - era a dela, tenho certeza - não fez drama, fez comédia: "Brinque de dar nome de rio às suas rugas, Antonio." Comecei a rir e a chorar ao mesmo tempo. "Que história é essa, Tia Palma?" Só fui entender quando, de imediato, identifiquei o Ganges, o Nilo e o Amazonas caudalosos em minha testa. E depois, o Tigre e o Eufrates - irmãos antiquíssimos - descendo à direita e à esquerda do nariz. E também o Paraná, e o São Francisco. No pescoço, altivos, o Tejo, o Tibre, o Tâmisa, o Volga e o Reno. Exultei ao reconhecer o Sena, o Prata e todos os seus afluentes em volta dos olhos. Era uma bela e estranha geografia. E chorei feito bobo ao ver aquele manancial de água me correndo pelo rosto. Água doce.
Hoje, a caminho dos 90, faço a barba sem medo do escanhoar, a afiada navalha mais uma vez a contrapelo. O apuro possível, a melhor aparência para os que estão perto. Não importam os eventuais cortes aqui e ali, os arranhões passageiros, a inesperada irritação da pele. Confio na velha pedra-ume. E o rosto já não mudará tanto. Ninguém perceberá as novas rugas, os novos rios. Pelo menos por fora, sei perfeitamente como me verei amanhã. O espelho não me intimida faz tempo. Eu já fui tantos! (p. 65-66)
Francisco Azevedo, O arroz de Palma. 4ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2011.
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