quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

Pombos

Numa ensolarada tarde de sábado, quando voltavam de um passeio pelo bairro, o jovem professor e sua esposa viram dois pombos cinzentos se esfregando no telhado de sua nova residência, bem em cima da garagem. Naquele dia, o jovem casal não percebeu a dimensão hitchcockiana do problema que em breve eles teriam que enfrentar.

Dois pombinhos de namorico no telhado de uma casa. Que problema há nisso?

Concordo que pode até ser agradável receber de vez em quando a visita de uma dessas aves em casa, ou talvez até tê-la como hóspede definitivo em algum canto do telhado, onde ela pode fazer seu ninho e viver em paz com seus filhotes. (Algumas são até muito bonitas, com suas plumagens em tons brilhantes de cinza, preto e verde). Se fosse só isso – e para corrigir o exagero que eu cometi acima ao empregar a palavra “agradável” – eu diria que seria até suportável. Mas quando o substantivo é “pombo’, não há na sintaxe do discurso que lhe serve nenhum espaço para o advérbio “poucos”. Não existe UM pombo em nenhum telhado do mundo. Se há pombos no seu ou em qualquer outro telhado, eles são muitos, dezenas, centenas, e se reproduzem como ratos, e comem e cagam e fedem como ratos.

Parece que isso nem sequer passou pela cabeça dos dois novos moradores do bairro, pois ao entrarem pelo portão e notarem os dois pombinhos num dos cantos do telhado, eles apenas sorriram um para o outro e entraram na casa, como se flutuassem no ar. E quem tivesse testemunhado de perto aqueles sorrisos e soubesse ler o que se escondia por trás deles, certamente entenderia o motivo da pouca importância que os recém-chegados deram à presença ameaçadora de um casal de pombos em seu telhado – uma imagem que, para ambos, naquele momento, significou o prenúncio do que eles próprios planejavam fazer na cama logo em seguida: dois pombinhos recém-casados, sem filhos e com menos de trinta anos, quando chegam em casa e têm como recepção dois outros pombinhos em plena Lua de Mel só podem pensar mesmo em se empoleirarem na cama e mandarem ver.

Por isso não posso afirmar que o motivo deles não terem estranhado aquela presença alada no telhado, nem tampouco olhado um para o outro com aquele olhar característico de “problema à vista”, fosse a ignorância pura e simples. O mais provável é que, naquele momento, ambos tenham sido desviados da razão pelos hormônios do desejo, que, no início de qualquer casamento convencional, permitem até associações de imagens românticas – óbvias demais, temos que concordar –, como aquelas: um casal de pombos namorando no telhado // um ninho de amor à espera de dois jovens apaixonados, encantados com o início do casamento.

Na tarde seguinte, porém, a associação de imagens foi outra. (Se é que podemos chamá-la de associação de imagens. Talvez melhor seria a percepção de uma semelhança macabra, que significava, naquele momento, um aviso).

Mas, como eu ia dizendo, na tarde seguinte, o olhar do jovem professor foi outro – talvez por não estar numa veia romântica em pleno domingo, com três pacotes de provas para corrigir –, quando viu, ao entrar, sete pombos se acariciando ao redor da caixa d’água.

Aqui cabe um parêntese para explicar que a caixa d’água em questão foi projetada por uma renomada arquiteta para ser um elemento de harmonia no conjunto da fachada da casa: uma combinação de curvas e retas que, no entanto, logo perdeu a simetria planejada para se tornar um mostruário de outras peças decorativas (estas inoportunas e invasoras), cujas características principais, como sabemos, são três: voarem, defecarem e federem.

Naquele momento, ao ver sete ratos alados se esfregando ao redor da caixa d’água, o professor resgatou da sua memória cinematográfica a velha cena do filme “Os Pássaros”, de Alfred Hitchcock, em que Tippi Hedren observa, aterrorizada, um bando de corvos empoleirados no parquinho de uma velha escola americana.

Nenhuma outra cena seria mais apropriada. O prognóstico foi perfeito: a caixa d’água do professor se tornou, com o passar dos dias, o ponto de encontro de uma infinidade de pombos, de várias cores e tamanhos, que ali ficavam horas e horas, emporcalhando tudo ao redor. Saíam apenas para seus vôos regulares sobre o bairro ou para alguns passeios estratégicos pelo telhado da casa, onde verificavam os melhores lugares para os seus ninhos.

E como é espantosa a capacidade reprodutiva desses bichinhos! Não preciso nem dizer que as laterais e cantos do telhado do professor se transformaram num verdadeiro pombal.

Nesta altura do texto é importante explicar que o jovem professor não sabia fazer nada que, fora dos planos afetivo e sexual, um marido de verdade deveria saber, pelo menos na opinião do senso comum: consertar pia, desentupir privada, fazer o carro pegar no tranco, trocar lâmpadas fluorescentes (daquelas compridas) e, é claro, subir no telhado para exterminar pombos – com toda a crueldade de macho que o ato exigia, já que não bastava acabar com os pais, era preciso também aniquilar os filhos.

E é mais do que sabido que quando esses pseudo-maridos precisam pagar outro homem para fazer o serviço, eles adiam a decisão o máximo possível, talvez por vergonha ou por avareza (ou as duas coisas juntas), e o problema cresce – no caso dos pombos, de forma assustadoramente rápida.

Mas sejamos justos: o professor tentou pelo menos acabar com as orgias na caixa d’água, jogando traques e naftalina no telhado, o que no final das contas não adiantou grande coisa.

Espingarda de chumbinho? Proibido. Veneno? Proibido. O que resta, então, ao pobre professor? Conviver com os pombos? Enlouquecer? Se ele conseguisse ao menos não ter que se lembrar do filme do Hitchcock toda vez que entrasse pelo portão da garagem, já estaria satisfeito.

Mas eles estão sempre lá, principalmente à tarde, arrulhando, cagando, copulando, fedendo, enfim, vivendo suas vidas, mais ou menos como qualquer outro ser vivo...

Como qualquer um de nós...

Ou quase.

Flávio Marcus da Silva

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