domingo, 22 de janeiro de 2012

Partir

O jovem Pierre acordou às três da madrugada, todo molhado de suor, apesar do frio intenso que invadia o seu quarto pelas frestas da janela em rajadas de vento e neve.

Enrolou-se num pesado casaco de lã e foi alimentar o fogo na lareira.

Às quatro horas ele daria início à limpeza do cadafalso, pois antes mesmo do nascer do sol haveria uma nova execução, seguida de outras trinta, naquele dia sombrio de inverno do ano de 1793, em Paris.

Esfregou vagarosamente as mãos sobre o fogo que ardia e estalava num dos cantos do quarto, pensando nas expressões de espanto, desespero, ódio, angústia, medo e também de indiferença e resignação que tantas vezes ele vira nos rostos dos condenados minutos antes da lâmina da guilhotina cortar fora as suas cabeças. Algumas rodopiavam no ar antes de cair na cesta de vime que ficava no chão, próximo ao patíbulo. Outras, maiores, mais redondas e gordas, caíam como jacas maduras ou pesados queijos Roquefort, sem muita acrobacia, produzindo, ao atingir o fundo da cesta, um baque só um pouco mais audível que o de uma cabeça menor. Outras, porém, devido ao formato do crânio e da face, ou talvez em decorrência de uma contração muscular mais forte no pescoço do condenado, além de rodopiarem várias vezes no ar, saltavam dos troncos com tanta força, que caíam fora da cesta até dois ou três metros adiante, para delírio da multidão que se aglomerava ao redor da guilhotina.

O que pensavam os infelizes naquela hora? O que passava pelas suas cabeças nos segundos que antecediam a decapitação? O que eles sentiam no momento em que a lâmina ceifava a carne e os ossos dos seus pescoços? E no segundo seguinte, quando a cabeça, já separada do tronco, caía ao chão?

“Tenho que ir”, disse para si mesmo o jovem Pierre, enquanto comia um pedaço de queijo e se dirigia à saída, espantando com o pé esquerdo uma enorme ratazana que seguia lentamente pelo corredor.

Lá fora o frio era cortante, mas Pierre estava bem agasalhado; e também aquele não era o seu primeiro inverno como trabalhador pobre nas madrugadas escuras e geladas de Paris.

Quando ele chegou à praça onde se erguia o cadafalso, o vento soprava preguiçosamente alguns pequenos flocos de neve, castigando-lhe a face desprotegida, que ardia e queimava de frio. Havia neve depositada no chão de terra batida, mas não em quantidade suficiente para esconder as marcas de sangue deixadas por algumas cabeças que tinham sido lançadas ao solo, como balas de canhão, no dia anterior. A lâmina encontrava-se também com manchas e respingos escuros de sangue coagulado e congelado, assim como a parte do estrado que ficava próxima ao local de decapitação.

Seu trabalho era limpar tudo aquilo até a chegada da carroça que traria o primeiro condenado do dia, juntamente com uma multidão de curiosos, que se deliciava com cada espetáculo do Terror.

Começou a limpeza pela lâmina, que ele esfregou com força até que todos os resíduos de sangue desaparecessem, tomando muito cuidado para conservar intactos os seus dedos que, mesmo enluvados, tremiam de frio. Depois começou a esfregar o chão do estrado, cujas manchas resistiam mais à escova e ao sabão. Mas foi interrompido pela chegada de um amigo, que subiu a escada sorrindo, meio cambaleante, como se acabasse de sair de uma festa.

"Olá, Pierre", disse o amigo.

“Olá, Henri!”, respondeu Pierre, levantando-se lentamente e afastando com o pé o balde e a escova para o amigo passar.

“Pierre, meu caro... Não tenho muito tempo para você hoje. Aliás, em breve não terei tempo para mais nada. Só vim para te esclarecer uma dúvida que, na última vez que nos encontramos, neste mesmo cadafalso, você começou a me explicar, mas não terminou, porque fomos interrompidos pela chegada da carroça, lembra?”.

“Claro que me lembro!”, disse Pierre empolgado, com os olhos pregados no rosto pálido do amigo, que perguntou: “E então?”.

Em resposta, Pierre reformulou a sua dúvida: “Naquele dia, o que eu queria saber era se a cabeça, separada do tronco, logo após o encontro da lâmina com o pescoço, tem consciência de que ela se encontra decapitada”.

Henri passou a mão direita em seu pescoço nu, seguindo com os dedos o contorno de uma linha avermelhada e grossa que o rodeava como um cordão apertado, e respondeu:

“Como eu mantive os olhos abertos, pude ver uma parte do estrado e também a cesta de vime, que ficava ali embaixo. Ouvi as pessoas gritando e também o assobio da lâmina que descia veloz. Naquele momento, a única imagem que me veio à mente foi a do meu filho de dois anos correndo e brincando no pátio da nossa casa, feliz, enquanto eu lia um livro de M. de Voltaire. Mas quando a lâmina separou minha cabeça do tronco, no exato momento do corte, tanto a imagem reconfortante da memória quanto a da terrível realidade desapareceram, para no mesmo instante darem lugar a um turbilhão de imagens confusas, mas que eu pude identificar como sendo o céu, o sol, as pessoas, os prédios, o chão, tudo em movimento, girando, girando velozmente, até eu ver, numa espécie de fixidez instável – como se eu estivesse bêbado –, os pés de uma enorme multidão”.

“Mas e depois?”, perguntou Pierre, os olhos brilhando de curiosidade.

“Depois, no instante seguinte, eu vi uma luz, uma luz branca que brilhava intensamente à minha frente, e eu estava de pé, com a cabeça de volta ao tronco, sem dor, sem medo, sentindo uma espécie de chamado, um chamado silencioso, vindo da luz. Mas eu não queria entrar. Eu lutei, desvencilhei-me daquele campo de forças com determinação... gritei que não, que não... E aqui estou eu: um morto que vaga pela cidade, e que é visto por alguns, como você, que possuem um dom especial que eu ainda não sei explicar...”.

Henri fez uma breve pausa, enquanto olhava o vazio, e continuou:

“Mas como eu disse, não dá mais para ficar. Vou me entregar. Eles já me procuram, me cercam, tentam uma aproximação... Vou me entregar, Pierre... vou partir, como muitos outros partiram... Partir...”.

Silêncio.

Os dois amigos se olharam, preparando-se para um abraço fraterno, quando, de repente:

“A carroça”, disse Pierre, levantando os olhos em direção à avenida. No segundo seguinte, voltando-se novamente para o amigo:

“Henri...”.

Mas ele já tinha partido.

Flávio Marcus da Silva

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