Abro "O Idiota", de Dostoiewski, que tanto me deslumbrou outrora. Insensivelmente uma pergunta me vem ao pensamento: que é o senso, o bom senso? A capacidade de se adaptar ao nível comum em que todos vivem. Neste caso, os que não podem, os que possuem arestas que não se adaptam às engrenagens da realidade comum, serão loucos simplesmente? Ou há um nome especial para esta exaltação, este sentimento de impotência e ao mesmo tempo de plenitude?
Ah, como sinto, como vejo, como percebo a ausência de Jesus Cristo - o nome assim atirado fere a página, estremece, lacera a terra morna do hábito, acostumada à visão materialista das coisas...
(...)
O espírito cristão é exatamente a loucura, a falta de senso. Ao longo do tempo, como vimos perdendo suas linhas essenciais, seus ensinamentos, sua própria figura!
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Foi Ele, não há dúvida, foi Jesus Cristo quem mais se insurgiu contra a dura tirania da realidade, o despotismo do bom senso e da complicada maquinaria dos fatos comuns. Penso um minuto, rapidamente, no sistema burocrata tão pateticamente denunciado por Kafka, através dos seus funcionários, juízes, escriturários: há nele uma espantosa imagem do inferno. O funcionalismo público, com suas redes de controle e seu sistema de mecanização, é uma das mais perfeitas invenções do diabo. Que louve, quem quiser louvar, esta mentira trágica do poeta funcionário: este monstro esvaziado de sua verdadeira essência é a última invenção de Satanás para planificar o mundo e reduzir-lhe o espírito poético. O poeta funcionário é um escárnio só admissível no mundo aterrorizante de hoje, é o toque final do diagrama da decomposição, o fêcho, o cimo da obra de abastardamento e de diminuição dos valores maiores que a nossa época assiste sem defesa.
Por esse processo de eleição de valores que nos trucidam e que nos matam é que esquecemos a doença que o Cristo representa, seu perpétuo embate contra o sono e as forças passivas do senso comum.
Lúcio Cardoso, Diário I (1949-1951). Editora Elos: Rio de Janeiro, p. 198-9.
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