Mas que se sabe do que se passa numa pessoa? Porque ele, que estava fracassando, não poderia chamar seu fracasso de sofrimento, mesmo que a desilusão e a ofensa recebida tivessem aflorado a seu rosto, tão poucos sentimentos a carne permite. Mas como chamar de sofrimento o fato dele estar passando pela verdade da Proibição como pelo buraco de uma agulha. Como poderia ele sequer revoltar-se com a verdade. Ele era a sua própria impossibilidade. Ele era ele. A esse ponto de grande angústia tranquila ele chegou: aquele homem era a sua própria Proibição.
Sofrimento? pensou com o rosto irreparavelmente ofendido a encarar o papel branco. Mas como não amar mesmo a Proibição? se ela o empurrara até onde ele podia ir? se o empurrara até aquela resistência última onde... Onde a única solução irrazoável era o grande amor? Quando o homem é acuado só o grande amor lhe ocorre. Sofrimento? Só não podendo é que um homem sabia. Um homem afinal se media pela sua carência. E tocar na grande falta era talvez a aspiração de uma pessoa. Tocar na falta seria a arte? Aquele homem gozava sua impotência assim como um homem se reconhece. Estava espantadamente fruindo o que ele era. Pois pela primeira vez na vida sabia quanto era. O que doía como a raiz de um dente.
Uma grande doçura o envolveu, como quando se sofre. Não conseguia encarar sem dor o papel vazio. Onde sua ação falhara.
Mas falhara? Porque a compreensão também era fatal. Ele não conseguia deixar de admirar a perfeição da Proibição. Pois, num equilíbrio perfeito, acontecia que se ele não tinha as palavras, tinha o silêncio. E se não tinha a ação, tinha o grande amor. Um homem podia não saber nada; mas sabia como se virar, por exemplo, para o lado do poente: um homem tinha o grande recurso da atitude. Se não tivesse medo de ser mudo.
Oh, não sofrimento. Porque na sua impossibilidade de criar ele não tinha tido o pior: não tinha sido espoliado. Em tudo o mais aquele homem enganara ou fora trapaceado, haviam-no roubado ou ele espertamente roubara. Mas na sua passagem pelo grande vazio, pela primeira vez na sua vida, ele não enganara ou fora enganado. A coisa era limpa: como se tratava de uma pessoa, então o limpo resultado fora cumprir a experiência de não poder. Pois, numa sensação genial, nascida talvez de sua dor, ele soube que o resultado mais acertado era falhar. Sofrimento? pensou com o rosto ofendido. Mas como não amar a Proibição, se cumpri-la é a nossa tarefa? refletiu em dor o escritor involuntário.
Martim começara agora a se emaranhar numa curiosa sensação de ter conseguido alguma coisa extraordinária. Tinha passado pelo mistério de querer. Como se tivesse tocado no pulso da vida. Ele que sempre se deslumbrara com o milagre espontâneo de seu corpo ser bastante corpo para querer uma mulher, e seu corpo ser bastante corpo para querer comida - ele agora tocara na fonte de tudo isso, e do viver: ele quisera... De um modo geral e profundo, ele quisera.
Clarice Lispector, A mação no escuro (1961). Rio de Janeiro: Rocco, 1998, p. 174-5
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