quarta-feira, 26 de maio de 2010

As vidas de Chico Xavier

Chico precisava ter cuidado. A tal "harpa melodiosa" citada por sua mãe [referindo-se à sua mediunidade] poderia enferrujar-se se ele cedesse à ambição ou ao orgulho. Para evitar o perigo, começou a castigar o próprio ego com golpes diários e contundentes. A autoflagelação partia de um pressuposto simples: ele não era nada, os benfeitores espirituais eram tudo e um pouco mais.

O segredo do sucesso: abrir mão de si mesmo. "Aquele que quiser ser o maior que se faça o servidor de todos", lia no Evangelho. E acatava.

Em sua campanha antivaidade, Chico criou, ao longo da vida, alguns slogans para se defender dos elogios. "Sou apenas Cisco Xavier" era um deles. Ele fazia questão de proclamar a própria "absoluta insignificância". Afinal de contas, era um "servidor quase inútil da doutrina espírita", "o mais pequenino de todos", "um nada", "mais imperfeito que os outros". A lista de metáforas autodepreciativas cresceria a cada ano. Chico se apresentaria como um graveto que se confunde com o pó, um animal em serviço, uma besta encarregada de transportar documentos dos espíritos, uma tomada entre dois mundos. Nenhuma das frases de efeito afastava os devotos e os bajuladores.

Um dia, diante de uma mulher quase de joelhos a seus pés, ele apelou:

- Não me elogie assim. É desconcertante. Não passo de um verme no mundo.

No mesmo instante, ouviu a voz de Emmanuel [seu guia espiritual]:

- Não insulte o verme. Ele funciona, ativo, na transmutação dos detritos da terra, com extrema fidelidade ao papel de humilde e valioso servidor da natureza. Ainda nos falta muito para sermos fiéis a Deus em nossa missão.

Daí em diante, Chico preferiu se definir, de vez em quando, como subverme. (p. 70-71)


O padre Júlio Maria, da cidade mineira de Manhumirim, estava disposto a providenciar uma camisa-de-força para o espírita de Pedro Leopoldo. Todo mês, ele escrevia artigos no jornal local, O Lutador, e fazia o favor de enviar suas opiniões pelo correio ao autor de Parnaso de Além-Túmulo. Em nome de Jesus Cristo, os textos excomungavam o espiritismo, reduziam a pó a reencarnação e à piada o porta-voz dos poetas mortos no Brasil. "Francisco Cândido Xavier deve ter pele de rinoceronte para suportar tantos espíritos", escreveu num de seus manifestos.

Chico ficou engasgado e precisou da ajuda de Emmanuel para engolir o comentário.

- Se você não tem pele de rinoceronte, precisa ter, porque, se cultivar uma pele muito frágil, cairá sempre com qualquer alfinetada.

O padre Júlio Maria espetou Chico Xavier durante treze anos. Só parou quando morreu. E, nesse dia, Chico ouviu o vozeirão de seu guia:

- Vamos orar pelo nosso irmão Júlio Maria. Com ele sempre tivemos um cooperador maravilhoso. Dava-nos coragem na luta e concitava-nos a trabalhar.

A cada ataque dos céticos, Chico escutava Emmanuel bater na mesma tecla:

- Não te aflijas com os que te atacam. O martelo que atormenta o prego com pancadas o faz mais seguro e mais firme.

O conselheiro invisível esquecia que martelos também entortam pregos.

Chico sentia os golpes e andava pela cidade arqueado, sob o peso da desconfiança alheia. (p. 54-55)

Marcel Souto Maior, As vidas de Chico Xavier. 2. ed. rev. e ampl. - São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2003 (p. 54-55; p. 70-71)

sexta-feira, 21 de maio de 2010

Uma reunião de médicos na Idade Média

O interrogatório foi interrompido pela chegada da comida, galinha grelhada muito passada com nabos assados, e cerveja que Rob bebeu com cuidado, pois não queria fazer papel de tolo. Depois do jantar foi informado que Bruce faria a palestra naquela noite. Falou sobre ventosas, aconselhando os colegas a aquecer convenientemente as ventosas de vidro, pois era o calor que puxava os venenos do sangue para a superfície da pele, onde podiam ser eliminados por meio da sangria.

- Devem demonstrar aos pacientes sua confiança na cura com aplicações repetidas de ventosas e sangrias para que compartilhem do seu otimismo - recomendava Bruce.

A palestra foi mal preparada, e pelas conversas Rob chegou à conclusão de que quando tinha onze anos aprendera mais com Barber sobre ventosas e sangrias do que aqueles médicos sabiam.

Assim, o Liceu foi um desapontamento.

Pareciam obcecados com preços de consultas e rendas pessoais. Rufus chegou a brincar com o presidente da mesa, médico do rei, chamado Dryfield, dizendo que o invejava por receber pagamento anual e roupas de médico.

- É possível conseguir um ordenado sem servir ao rei - interrompeu Rob.

Agora todas as atenções voltaram-se para ele.

- Como isso pode acontecer? - perguntou Dryfield.

- O médico pode trabalhar num hospital, um centro de cura dedicado ao tratamento e ao estudo das doenças.

Alguns olharam para ele sem compreender, mas Dryfield assentiu com um gesto.

- Uma ideia do Oriente que começa a tomar vulto. Ouvi falar de um hospital recém-instalado em Salerno, e há muito tempo existe o Hôtel Dieu, em Paris. Mas prestem atenção, os doentes são mandados para o Hôtel Dieu para morrer e esquecidos, e é um lugar infernal.

- Hospitais não precisam ser como o Hôtel Dieu - disse Rob, sentindo não poder falar sobre o maristan.

Mas Hunne interrompeu.

- Talvez o sistema funcione para as raças inferiores, mas os médicos ingleses têm espírito mais independente e devem ter liberdade para conduzir seus negócios.

- Sem dúvida a medicina é mais do que um negócio - observou Rob delicadamente.

- É menos que um negócio - retrucou Hunne -, com o preço das consultas e com os borra-botas inexperientes que estão sempre chegando a Londres [referindo-se a Rob]. Por que acha que é mais do que um negócio?

- É uma vocação, Master Hunne -, como o chamado divino para os homens da igreja.

Brace deu uma gargalhada. Mas o presidente da mesa tossiu, farto da discussão.

Noah Gordon, O Físico: a epopéia de um médico medieval. Rio de Janeiro: Rocco, 1988, p. 559-560.

Obs: A semelhança com os tempos atuais é mera coincidência.

sexta-feira, 14 de maio de 2010

Religiões

- Já pensou - perguntou Rob -, como cada religião reivindica a posse do coração e do ouvido de Deus? Nós [cristãos], vocês [judeus], e o islã - cada um diz que sua religião é a verdadeira. Será que nós todos estamos errados?

- Talvez estejamos todos certos - respondeu Mirdin.

Rob sentiu uma intensa afeição pelo amigo. Logo Mirdin seria médico e voltaria para sua família em Masqat e quando Rob chegasse a hakim também voltaria para casa. Sem dúvida nunca mais se veriam.

Entreolharam-se e Rob teve certeza de que Mirdin pensava a mesma coisa.

- Vamos nos encontrar no Paraíso?

Mirdin olhou para ele gravemente.

- Eu o encontrarei no Paraíso. Promessa solene?

Rob sorriu.

- Promessa solene.

Um apertou o pulso do outro.

- Vejo a separação entre a vida e o Paraíso como um rio - disse Mirdin. - Se muitas pontes cruzam o rio, será que Deus se importa qual delas escolhemos?

- Acho que não - respondeu Rob.

Os dois amigos separaram-se, cada um voltando aos seus afazeres.

Noah Gordon, O Físico: a epopéia de um médico medieval. Rio de Janeiro: Rocco, 1988, p. 426.

Crianças e adolescentes candidatos à psicopatia

Podemos observar características de psicopatia desde a infância até a vida adulta. Antes dos 18 anos, por uma questão de nomenclatura, o problema é chamado de Transtorno da Conduta. Crianças ou adolescentes que são francos candidatos à psicopatia possuem um padrão repetitivo e persistente que pode ser sintetizado pelas características comportamentais descritas a seguir:

- Mentiras frequentes (às vezes o tempo todo);
- Crueldade com animais, coleguinhas, irmãos, etc.;
- Condutas desafiadoras às figuras de autoridade (pais, professores, etc.);
- Impulsividade e irresponsabilidade;
- Baixíssima tolerância à frustração, com acessos de irritabilidade ou fúria quando são contrariados;
- Tendência a culpar os outros por erros cometidos por si mesmos;
- Preocupação excessiva com seus próprios interesses;
- Insensibilidade ou frieza emocional;
- Ausência de culpa ou remorso;
- Falta de empatia ou preocupação pelos sentimentos alheios;
- Falta de constrangimento ou vergonha quando pegos mentindo ou em flagrante;
- Dificuldades em manter amizades;
- Permanência fora de casa até tarde da noite, mesmo com a proibição dos pais. Muitas vezes podem fugir e levar dias sem aparecer em casa;
- Faltas constantes sem justificativas na escola ou no trabalho (quando mais velhos);
- Violação às regras sociais que se constituem em atos de vandalismo como destruição de propriedades alheias ou danos ao patrimônio público;
- Participação em fraudes (falsificação de documentos), roubos ou assaltos;
- Sexualidade exacerbada, muitas vezes levando outras crianças ao sexo forçado;
- Introdução precoce no mundo das drogas ou do álcool;
- Nos casos mais graves, podem cometer homicídio.

Vale ressaltar que essas características são apenas genéricas e que o diagnóstico exato só pode ser firmado por especialistas no assunto. Além do mais, o leitor deve atentar para a frequência e a intensidade com as quais essas características se manifestam.

Ana Beatriz Barbosa Silva, Mentes perigosas: o psicopata mora ao lado. Rio de Janeiro: Objetiva, 2008, p. 170-172.

sexta-feira, 7 de maio de 2010

As obras dos gênios

(...) as mais elevadas realizações do espírito humano, via de regra, foram acolhidas com desfavor e assim permaneceram até que espíritos de tipo mais elevado fossem por elas atraídos, reconhecessem o seu mérito e lhes conferissem prestígio, que elas conservaram com a autoridade assim obtida. No fundo, tudo isso consiste no fato de que cada um só pode propriamente compreender e avaliar apenas o que lhe é homogêneo. Desse modo, homogêneo para o homem limitado é tudo o que for limitado, para o homem comum, tudo o que for comum, para o confuso, a confusão e, para o insensato, o absurdo; o que mais agrada a cada um são as próprias obras que, como tais, lhes são inteiramente homogêneas.

O mais vigoroso dos braços, quando lança um corpo leve, não pode comunicar-lhe nenhum movimento que o faça voar longe e cair violentamente; pelo contrário, o corpo cairá inerte nas proximidades, visto que lhe falta massa material própria para absorver a força exterior. Do mesmo modo se passa com os belos e grandes pensamentos, com as obras-primas dos gênios, se, para absorvê-las, existirem apenas cabeças pequenas, fracas ou enviesdadas.

Arthur Schopenhauer (1788-1860), Aforismos para a Sabedoria de Vida

terça-feira, 4 de maio de 2010

Mentes perigosas

A ideologia sobre a qual se alicerça a cultura dos nossos tempos é baseada em três princípios básicos: 1) o individualismo; 2) o relativismo; 3) o instrumentalismo.

De forma compreensível e sem, contudo, aprofundar-me na esfera da filosofia, os três princípios podem ser avaliados da seguinte maneira:

1) O individualismo prega a busca do melhor tipo de vida a se usufruir. Entende-se como o melhor tipo de vida aquele que abrange o autodesenvolvimento, a auto-realização e a auto-satisfação. De acordo com essa concepção, o indivíduo tem a obrigação moral de buscar sua felicidade em detrimento de qualquer outra obrigação com os demais.

2) Segundo o relativismo todas as escolhas são igualmente importantes, pois não há um padrão de valor objetivo que nos permita estabelecer uma hierarquia de condutas. Assim, qualquer ação que leva o indivíduo a atingir a auto-satisfação é válida e não pode ser questionada.

3) O instrumentalismo afirma que o valor de qualquer coisa fora de nós é apenas um valor instrumental, ou seja, o valor das pessoas e das coisas se resume no que elas podem fazer por nós.

Na verdade, tudo está implícito no primeiro e principal componente da cultura moderna: o individualismo. Assim, o nosso principal objetivo é a realização e a satisfação pessoais. As obrigações que temos com as demais pessoas são meramente secundárias, prevalecendo a obrigação de desfrutarmos a vida da maneira que escolhermos. Dessa forma, as outras pessoas se transformam em simples meios para chegarmos a um fim.

O objetivo maior da ideologia moderna era preservar a liberdade individual. No entanto, essa ênfase sobre a liberdade criou a grande contradição de nossos tempos: como estabelecer valores morais e éticos num mundo que prioriza as escolhas individuais?

A modernidade foi responsável por uma série de mudanças na nossa forma de ver e sentir o mundo. A revolução tecnológica inundou de conforto nossas vidas. Dispomos de uma imensa variedade de coisas que facilitam nosso dia-a-dia, porém não encontramos tempo disponível para cultivarmos nosso lado afetivo. O convívio reconfortante com a família, os amigos e o amor romântico parecem ser coisas do passado, algo lembrado com nostalgia, mas avaliado como utopia nos dias atuais. O desenvolvimento econômico nos tempos modernos fundamenta-se na crença cega de que não podemos parar nunca: há sempre o que aprender, conquistar, possuir, descobrir, experimentar... Nada nem ninguém é capaz de nos satisfazer plenamente, pois sempre há novas possibilidades para serem testadas na conquista da realização pessoal.

A realização proposta por nossa sociedade só pode ser de aspecto material, pois afetos verdadeiros não podem ser adquiridos nem substituídos na velocidade que nossos tempos preconizam. A cultura do individualismo e o desejo de conseguir bem-estar material a qualquer custo têm provocado erosão dos laços afetivos dentro da nossa sociedade. Com isso, virtudes como a honestidade, a reciprocidade e a responsabilidade com os demais caem em total descrédito. E assim, repletos de conforto e tecnologia, acabamos por nos tornar cada vez mais sozinhos e menos comprometidos com os nossos semelhantes.

Ana Beatriz Barbosa Silva. Mentes Perigosas: o psicopata mora ao lado. Rio de Janeiro: Objetiva, 2008, p. 190-191.