quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Livros tristes

É diferente a impressão que nos produzem os livros tristes; a ti entristecem-te e a mim alegram-me. Para os verdadeiros desgraçados, é sempre motivo de felicidade a desgraça dos outros; só os livros alegres e cheios de vida e de sol é que me entristecem, como tudo que é feliz. Eu odeio os felizes, sabes? Odeio-os do fundo da minha alma, tenho por eles o desprezo e o horror que se tem por um réptil que dorme sossegadamente. Eu não sou feliz mas nem ao menos te sei dizer porquê. Nasci num berço de rendas rodeada de afectos, cresci despreocupada e feliz, rindo de tudo, contente da vida que não conhecia, e de repente, amiga, no alvorecer dos meus 16 anos, compreendi muita coisa que até ali não tinha compreendido e parece-me que desde esse instante cá dentro se fez noite. Fizeram-se ruínas todas as minhas ilusões, e, como todos os corações verdadeiramente sinceros e meigos, despedaçou-se o meu para sempre. Podiam hoje sentar-me num trono, canonizar-me, dar-me tudo quanto na vida representa para todos a felicidade, que eu não me sentiria mais feliz do que sou hoje. Falta-me o meu castelo cheio de sol entrelaçado de madressilvas em flor; falta-me tudo que eu tinha dantes e que eu nem sei dizer-te o que era... É esta a história da minha tristeza. História banal como quase toda a história dos tristes. Mesmo que a quisessem pôr em romance, não dava para duas páginas; para folhetim também não serve porque lhe falta o enredo, serve só para te maçar, minha querida, não é verdade? Tu ainda tens medo dos livros que te fazem chorar... Pois, olha, dizem que a felicidade dos tristes são as lágrimas; eu creio-o bem... (1916).

A morte, talvez... esse infinito, esse total e profundo repouso; não me queira tirar a certeza de que ela é tudo isto: seria uma maldade, quase um crime. Pense bem: eu, que não sei o que é dormir uma noite inteira, dormir muitas, dormir todas e todos os dias e todos os anos, pelos séculos dos séculos! Só esta ideia me faz sorrir. Deve ser tão bom! (1930).

Florbela Espanca (1894-1930), Correspondência

domingo, 21 de fevereiro de 2010

Stupeur et Tremblements

Récapitulons, petite je voulais devenir Dieu. Très vite, je compris que c’était trop demander et je mis un peu d’eau bénite dans mon vin de messe: je serais Jésus. J’eus rapidement conscience de mon excès d’ambition et acceptai de « faire » martyre quand je serais grande. Adulte, je me résolus à être moins mégalomane et à travailler comme interprète dans une société japonaise. Hélas, c’était trop bien pour moi et je dus descendre un échelon pour devenir comptable. Mais il n’y avait pas de frein à ma foudroyante chute sociale. Je fus mutée au poste de rien du tout. Malheureusement - j’aurais dû m'en douter - rien du tout, c’était encore trop bien pour moi. Et ce fus alors que je reçus mon affectation ultime: nettoyeuse de chiottes.

Amélie Nothomb, Stupeur et tremblements, Albin Michel, 1999

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

O exílio

Estados Unidos, década de 80

Numa das minhas primeiras declarações, logo depois de sair de Cuba, afirmei: "A diferença entre o sistema comunista e o capitalista é que, embora os dois nos deem um chute na bunda, no sistema comunista a gente leva o chute e tem que bater palmas; no capitalista, a gente também leva, mas pode gritar. E vim aqui para gritar". (p. 342)

Nos poucos meses que passei em Miami, não consegui encontrar um só instante de tranquilidade. Vivi cercado de fofocas constantes e confusões, e de uma infinita sucessão de coquetéis, festas e convites. Era como viver num mostruário, uma estranha criatura que precisava ser convidada antes de perder o brilho, antes de chegar um novo personagem que me desbancasse. Não tinha paz para trabalhar e muito menos para escrever. Quanto à cidade - aliás, não é uma cidade e sim um amontoado de casas espalhadas, um povoado de cowboys, onde o cavalo fora substituído pelo automóvel -, ela me assustava. Estava acostumado com uma cidade com ruas e calçadas, uma cidade deteriorada, mas onde era possível andar e entender seu mistério, até mesmo desfrutar esse encanto. Agora, encontrava-me num mundo plástico, carente de mistério, e cuja solidão acabava sendo mais agressiva. Por isso mesmo, comecei logo a sentir saudades de Cuba, da cidade velha de Havana, mas minhas lembranças ruins foram mais poderosas que qualquer saudade. (p. 347)

Estava descobrindo uma fauna que nunca vira em Cuba: os comunistas de luxo. Lembro-me que, no meio de um banquete na Universidade de Harvard, um professor alemão me disse: "De certa forma, entendo que você possa ter sofrido, mas sou um grande admirador de Fidel Castro e estou muito satisfeito com tudo o que fez em Cuba". Enquanto dizia isso, o professor alemão tinha um prato cheio de comida à sua frente. Respondi: "Acho ótimo que admire Fidel Castro, mas, nesse caso, não pode continuar comendo todo esse prato, porque nenhum cubano, exceto o alto comando, pode comer tanto assim". Peguei o prato e o atirei contra a parede. (p. 343)

Sabia que não poderia viver em Miami. Assim, hoje, passados dez anos, percebo que para um exilado não existe nenhum lugar onde possa viver; não existe nenhum lugar, porque aquele lugar com o qual sonhamos, onde descobrimos uma paisagem, lemos nosso primeiro livro, tivemos a primeira aventura amorosa, continua sendo o lugar sonhado. No exílio, ele não passa de um fantasma, a sombra de alguém que nunca consegue alcançar sua completa realidade. Deixei de existir desde que cheguei no exílio; a partir de então, comecei a fugir de mim mesmo. (p. 348)

(...) nunca me considerei nem de esquerda nem de direita; também não quero ser rotulado de político oportunista; sempre digo a minha verdade, assim como um judeu que tenha sofrido com o racismo ou um russo que tenha ficado no Gulag, ou qualquer ser humano que tenha olhos para enxergar as coisas exatamente como são: grito, logo existo. (p. 357)


Reinaldo Arenas, Antes que anoiteça, Edições BestBolso, Rio de janeiro: 2009.

sábado, 13 de fevereiro de 2010

Reinaldo Arenas

Escritor cubano nacido cerca de Holguín (Aguas Claras), donde creció comiendo tierra junto a su abandonada madre y su abuela que orinaba de pie. Empezó a escribir a los 13 años, aunque la llegada de la Revolución, a la que se sumó como guerrillero, retrasó su vocación hasta 1963, cuando ingresó en la Biblioteca Nacional y redactó Celestino antes del alba. Conoció y entabló amistad con Piñera y Lezama Lima. Su libro El mundo alucinante fue prohibido por contrarrevolucionario, y a partir de ese momento y en adelante tuvo que esconder sus manuscritos. Otra vez el mar, que ocultó bajo tierra y en el tejado, fue hallado y destruido, pero lo rehizo tres veces. El ambiente en Cuba se enrarecía: la campaña de la Zafra de los Diez Millones, en la que el escritor fue obligado a contribuir cortando caña en una plantación, y las torturas al poeta disidente Heberto Padilla fueron para Arenas síntomas de su arriesgada situación, que trató de paliar al casarse con la actriz Ingrávida González. En 1973 lo detuvieron por contrarrevolucionario y traicionado en su huida por su amigo Coco Salá, fue conducido al cuartel de Miramar, desde donde trató de salir de la isla en un neumático. Fracasó, como cuando quiso huir por Guantánamo, donde estuvo a punto de ser ametrallado. Durante dos meses se refugió entre la vegetación del Parque Lenin, hasta que la policía lo encerró en el castillo del Morro: dos años entre palizas e intentos de suicidio. Tras perder dos dientes, trabajar como forzado y confesar por escrito para evitar torturas, obtuvo la libertad. En los cinco años siguientes asistió a las muertes de sus amigos Lezama Lima y Piñera, se enamoró del joven Lázaro Gómez y saqueó un convento para sobrevivir. Hasta que se unió a los marielitos y falsificó a mano su pasaporte para convertirse en Reinaldo Arinas y eludir la lista de los que no podían salir del país. En 1980 consiguió huir de Cuba y se trasladó a Miami. Muchos intelectuales le dieron la espalda, y aprendió que un exiliado sin dinero no era nadie. Arenas paseó 10 años su grito por Venezuela, Francia, Portugal, Suecia, Dinamarca y España. En Estados Unidos, donde colaboró en la revista Mariel desde su fundación en 1983 hasta su cierre en 1987, acabó el repaso a su vida que había iniciado 17 años antes en el Parque Lenin. Reynaldo Arenas se suicidó el 7 de diciembre de 1990.

Textro extraído do site El Poder de la Palabra

Nos posts a seguir, dois trechos do livro Antes que anoiteça, de Reinaldo Arenas

Antes que anoiteça

Cuba, década de 70

Felizmente, durante todos esses anos, minha amizade com Jorge e Margarita Camacho foi indestrutível. Eles sempre deram um jeito para que eu recebesse uma carta de consolo e, muitas vezes, através de algum turista francês, mandavam-me uma camisa, um par de sapatos, um lenço ou um perfume. Esses presentes se tornaram um símbolo de vida para mim, só pelo fato de terem chegado de uma região livre; tinham até um cheiro diferente; até certo ponto isso me tornava um pouco mais livre também, me colocando em contato com um mundo onde ainda era possível respirar. O mais impressionante de tudo, porém, era quando um daqueles turistas, a quem tínhamos contado nossos horrores, voltava para casa. Aquela pessoa transformava-se, para nós, numa espécie de ser mágico pelo único fato de poder pegar um avião e sair de Cuba, sair daquela cadeia. Com que inveja víamos Olga atravessando a barreira de vidro, só possível de ser transposta por quem tivesse uma licença especial de saída, ou pelos estrangeiros que vinham visitar o país. Olga se perdia por trás daquelas vidraças, e corríamos todos até o terraço, de onde podíamos vê-la subindo a escada do avião. Era um prazer imenso poder pensar em subir no avião e deixar aquele inferno para trás. Quando o avião começava a subir, nós o víamos desaparecer entre as nuvens, lotado de gente que podia ir embora, não ligar para tudo o que se passava aqui, dizer o que bem quisesse, comprar um par de sapatos novos. Mas nós ficávamos ali mesmo, formando uma imensa fila para pegar a condução que nos levaria para Havana, olhando para nossas calças de tecido grosseiro e nossa pele ressecada pelo sol e falta de vitaminas.

Trecho extraído do livro Antes que anoiteça, autobiografia escrita pelo escritor cubano Reinaldo Arenas, que se matou no exílio em 1990. [Editora BestBolso, Rio de Janeiro, 2009. p. 178].

O caso Padilla

Cuba, 1971

A Segurança do Estado escolheu Heberto Padilla como bode expiatório. Padilla tinha sido o poeta irreverente que se atrevera a apresentar, para um concurso oficial, um livro crítico intitulado Fuera del juego.

No exterior já se tornara uma atração internacional, e era necessário portanto destruí-lo, assim como todos os outros intelectuais cubanos que tivessem atitudes semelhantes.

Em 1971, Padilla foi preso com sua esposa, Belkis Cuza Malé. Foi trancado numa cela, ameaçado e surrado; trinta dias depois, saiu daquela cela transformado em farrapo humano. Quase todos os intelectuais cubanos foram convidados pela Segurança do Estado, por intermédio da UNEAC, a ouvir Padilla. Sabíamos que estava preso, e ficamos surpresos com sua aparição. Lembro-me de que a UNEAC estava rigorosamente vigiada por policiais em trajes civis; só podiam entrar para ouvir Padilla as pessoas que constassem de uma lista, minuciosamente checada. A noite em que Padilla fez sua confissão foi uma noite sinistra e inesquecível. Aquele homem vital, que escrevera lindos poemas, arrependia-se de tudo o que havia feito, de toda a sua obra anterior, renegando a si próprio, intitulando-se de covarde, miserável e traidor. Dizia que durante o tempo em que estivera preso pela Segurança do Estado entendera a beleza da revolução e escrevera poemas dedicados à primavera. Padilla não apenas se retratava de toda a sua obra anterior, como também delatava publicamente todos os seus amigos e até sua esposa, os quais, segundo ele, também tiveram uma atitude contrarrevolucionária. Padilla dava o nome de todas essas pessoas, uma por uma: José Yanes, Norberto Fuentes, Lezama Lima. Mas Lezama recusou-se a assistir àquela retratação. Enquanto Padilla continuava citando os escritores "contrarrevolucionários", Virgilio Piñera levantou-se da cadeira e sentou-se no chão para que não o vissem. Todas as pessoas citadas como contrarrevolucionárias por Padilla, entre socos no peito e lágrimas nos olhos, tinham que ir até o microfone perto de Padilla, assumir sua culpa e reconhecer que eram abjetos traidores do sistema. Tudo foi filmado pela Segurança do Estado e o filme percorreu todos os meios intelectuais do mundo, sendo exibido especialmente a todos aqueles que haviam assinado uma carta em protesto contra a prisão injusta de Padilla. Entre esses estavam Mario Vargas Llosa, Octavio Paz, Juan Rulfo e inclusive o próprio García Márquez, hoje transformado numa das estrelas mais importantes de Fidel Castro.

Trecho extraído do livro Antes que anoiteça, do escritor cubano Reinaldo Arenas, que se matou no exílio em 1990. [Editora BestBolso, Rio de Janeiro, 2009. p. 172-174].

Reinaldo Arenas nasceu em Cuba, em 1943, e faleceu nos Estados Unidos, em 1990.

Heberto Padilla nasceu em Cuba, em 1932, e faleceu nos Estados Unidos, em 2000.

Filhos

Hoje meu filho de um ano estava deitado em meu colo, preparando-se para dormir. Com seus olhinhos pretos e brilhantes, me encarava com atenção, enquanto explorava meu rosto, meus lábios, minha orelha e meus óculos com dedinhos ávidos de conhecimento. Ele me olhava, tranqüilo e sereno, chupando seu biquinho com enorme prazer. Aos poucos seus olhinhos foram se fechando e eu pude sentir seu corpo se aconchegar em meus braços e em meu peito. Foi então que eu pensei: o que significam as noites sem dormir, o cansaço, os choros, as birras, o trabalho e toda a despesa que temos que suportar para criar e educar nossos filhos diante desse amor inigualável?

Flávio Marcus da Silva, fevereiro de 2010

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

Saúde Mental

Excelente texto de Rubem Alves:

Fui convidado a fazer uma preleção sobre saúde mental. Os que me convidaram supuseram que eu, na qualidade de psicanalista, deveria ser um especialista no assunto. E eu também pensei. Tanto que aceitei. Mas foi só parar para pensar para me arrepender. Percebi que nada sabia. Eu me explico. Comecei o meu pensamento fazendo uma lista das pessoas que, do meu ponto de vista, tiveram uma vida mental rica e excitante, pessoas cujos livros e obras são alimento para a minha alma. Nietzsche, Fernando Pessoa, Van Gogh, Wittgenstein, Cecília Meireles, Maiakovski. E logo me assustei. Nietzsche ficou louco. Fernando Pessoa era dado à bebida. Van Gogh matou-se. Wittgenstein alegrou-se ao saber que iria morrer em breve: não suportava mais viver com tanta angústia. Cecília Meireles sofria de uma suave depressão crônica. Maiakoviski suicidou-se. Essas eram pessoas lúcidas e profundas que continuarão a ser pão para os vivos muito depois de nós termos sido completamente esquecidos. Mas será que tinham saúde mental? Saúde mental, essa condição em que as idéias comportam-se bem, sempre iguais, previsíveis, sem surpresas, obedientes ao comando do dever, todas as coisas nos seus lugares, como soldados em ordem unida, jamais permitindo que o corpo falte ao trabalho, ou que faça algo inesperado; nem é preciso dar uma volta ao mundo num barco a vela, basta fazer o que fez a Shirley Valentine (se ainda não viu, veja o filme) ou ter um amor proibido ou, mais perigoso que tudo isso, a coragem de pensar o que nunca pensou. Pensar é uma coisa muito perigosa... Não, saúde mental elas não tinham. Eram lúcidas demais para isso. Elas sabiam que o mundo é controlado pelos loucos e idosos de gravata. Sendo donos do poder, os loucos passam a ser os protótipos da saúde mental. Claro que nenhum dos nomes que citei sobreviveria aos testes psicológicos a que teria de se submeter se fosse pedir emprego numa empresa. Por outro lado, nunca ouvi falar de político que tivesse estresse ou depressão. Andam sempre fortes em passarelas pelas ruas da cidade, distribuindo sorrisos e certezas.

Sinto que meus pensamentos podem parecer pensamentos de louco e por isso apresso-me aos devidos esclarecimentos. Nós somos muito parecidos com computadores. O funcionamento dos computadores, como todo mundo sabe, requer a interação de duas partes. Uma delas chama-se hardware, literalmente “equipamento duro”, e a outra denomina-se software, “equipamento macio”. O hardware é constituído por todas as coisas sólidas com que o aparelho é feito. O software é constituído por entidades “espirituais” - símbolos que formam os programas e são gravados nos disquetes. Nós também temos um hardware e um software. O hardware são os nervos do cérebro, os neurônios, tudo aquilo que compõe o sistema nervoso. O software é constituído por uma série de programas que ficam gravados na memória. Do mesmo jeito como nos computadores, o que fica na memória são símbolos, entidades levíssimas, dir-se-ia mesmo “espirituais”, sendo que o programa mais importante é a linguagem. Um computador pode enlouquecer por defeitos no hardware ou por defeitos no software. Nós também. Quando o nosso hardware fica louco há que se chamar psiquiatras e neurologistas, que virão com suas poções químicas e bisturis consertar o que se estragou. Quando o problema está no software, entretanto, poções e bisturis não funcionam. Não se conserta um programa com chave de fenda. Porque o software é feito de símbolos, somente símbolos podem entrar dentro dele. Assim, para se lidar com o software há que se fazer uso dos símbolos. Por isso, quem trata das perturbações do software humano nunca se vale de recursos físicos para tal. Suas ferramentas são palavras, e eles podem ser poetas, humoristas, palhaços, escritores, gurus, amigos e até mesmo psicanalistas.

Acontece, entretanto, que esse computador que é o corpo humano tem uma peculiaridade que o diferencia dos outros: o seu hardware, o corpo, é sensível às coisas que o seu software produz. Pois não é isso que acontece conosco? Ouvimos uma música e choramos. Lemos os poemas eróticos de Drummond e o corpo fica excitado. Imagine um aparelho de som. Imagine que o toca-discos e os acessórios, o hardware, tenham a capacidade de ouvir a música que ele toca e se comover. Imagine mais, que a beleza é tão grande que o hardware não a comporta e se arrebenta de emoção! Pois foi isso que aconteceu com aquelas pessoas que citei no princípio: a música que saia de seu software era tão bonita que seu hardware não suportou.

Dados esses pressupostos teóricos, estamos agora em condições de oferecer uma receita que garantirá, àqueles que a seguirem à risca, saúde mental até o fim dos seus dias. Opte por um software modesto. Evite as coisas belas e comoventes. A beleza é perigosa para o hardware. Cuidado com a música. Brahms e Mahler são especialmente contra-indicados. Já o rock pode ser tomado à vontade. Quanto às leituras, evite aquelas que fazem pensar. Há uma vasta literatura especializada em impedir o pensamento.

Se há livros do doutor Lair Ribeiro, por que se arriscar a ler Saramago? Os jornais têm o mesmo efeito. Devem ser lidos diariamente. Como eles publicam diariamente sempre a mesma coisa com nomes e caras diferentes, fica garantido que o nosso software pensará sempre coisas iguais. E, aos domingos, não se esqueça do Silvio Santos e do Gugu Liberato. Seguindo essa receita você terá uma vida tranqüila, embora banal. Mas como você cultivou a insensibilidade, você não perceberá o quão banal ela é. E, em vez de ter o fim que tiveram as pessoas que mencionei, você se aposentará para, então, realizar os seus sonhos. Infelizmente, entretanto, quando chegar tal momento, você já terá se esquecido de como eles eram.

Rubem Alves

Na imagem acima, o auto-retrato de Van Gogh