Um dos escritores mais admirados de sua geração, o americano David Foster Wallace (foto) se suicidou em 2008, aos 46 anos, enforcando-se. Este texto foi tirado de seu discurso de paraninfo para formandos do Kenyon College, em 2005:
Dois peixinhos estão nadando
juntos e cruzam com um peixe mais velho, nadando em sentido contrário. Ele os
cumprimenta e diz:
- Bom dia, meninos. Como está a água?
Os dois peixinhos nadam mais um pouco, até que um deles olha para o outro e
pergunta:
- Água? Que diabo é isso?
Não se preocupem, não pretendo me apresentar a vocês como o peixe mais velho e
sábio que explica o que é água ao peixe mais novo. Não sou um peixe velho e
sábio. O ponto central da história dos peixes é que a realidade mais óbvia,
ubíqua e vital costuma ser a mais difícil de ser reconhecida. Enunciada dessa forma,
a frase soa como uma platitude – mas é fato que, nas trincheiras do dia-a-dia
da existência adulta, lugares comuns banais podem adquirir uma importância de
vida ou morte.
Boa parte das certezas que carrego comigo acabam se revelando totalmente equivocadas
e ilusórias. Vou dar como exemplo uma de minhas convicções automáticas: tudo à
minha volta respalda a crença profunda de que eu sou o centro absoluto do
universo, de que sou a pessoa mais real, mais vital e essencial a viver hoje.
Raramente mencionamos esse egocentrismo natural e básico, pois parece
socialmente repulsivo, mas no fundo ele é familiar a todos nós. Ele faz parte
de nossa configuração padrão, vem impresso em nossos circuitos ao nascermos.
Querem ver? Todas as experiências pelas quais vocês passaram tiveram, sempre,
um ponto central absoluto: vocês mesmos. O mundo que se apresenta para ser
experimentado está diante de vocês, ou atrás, à esquerda ou à direita, na sua
tevê, no seu monitor, ou onde for. Os pensamentos e sentimentos dos outros
precisam achar um caminho para serem captados, enquanto o que vocês sentem e
pensam é imediato, urgente, real. Não pensem que estou me preparando para fazer
um sermão sobre compaixão, desprendimento ou outras "virtudes". Essa
não é uma questão de virtude - trata-se de optar por tentar alterar minha
configuração padrão original, impressa nos meus circuitos. Significa optar por
me libertar desse egocentrismo profundo e literal que me faz ver e interpretar
absolutamente tudo pelas lentes do meu ser.
Num ambiente de excelência acadêmica, cabe a pergunta: quanto do esforço em
adequar a nossa configuração padrão exige de sabedoria ou de intelecto? A
pergunta é capciosa. O risco maior de uma formação acadêmica - pelo menos no
meu caso - é que ela reforça a tendência a intelectualizar demais as questões,
a se perder em argumentos abstratos, em vez de simplesmente prestar atenção ao
que está ocorrendo bem na minha frente.
Estou certo de que vocês já perceberam o quanto é difícil permanecer alerta e
atento, em vez de hipnotizado pelo constante monólogo que travamos em nossas
cabeças. Só vinte anos depois da minha formatura vim a entender que o surrado
clichê de "ensinar os alunos como pensar" é, na verdade, uma
simplificação de uma idéia bem mais profunda e séria. "Aprender a
pensar" significa aprender como exercer algum controle sobre como e o que
cada um pensa. Significa ter plena consciência do que escolher como alvo de
atenção e pensamento. Se vocês não conseguirem fazer esse tipo de escolha na
vida adulta, estarão totalmente à deriva.
Lembrem o velho clichê: "A mente é um excelente servo, mas um senhorio
terrível." Como tantos clichês, também esse soa inconvincente e sem graça.
Mas ele expressa uma grande e terrível verdade. Não é coincidência que adultos
que se suicidam com armas de fogo quase sempre o façam com um tiro na cabeça.
Só que, no fundo, a maioria desses suicidas já estava morta muito antes de
apertar o gatilho. Acredito que a essência de uma educação na área de humanas,
eliminadas todas as bobagens e patacoadas que vêm junto, deveria contemplar o
seguinte ensinamento: como percorrer uma confortável, próspera e respeitável
vida adulta sem já estar morto, inconsciente, escravizado pela nossa
configuração padrão - a de sermos singularmente, completamente, imperialmente
sós.
Isso também parece outra hipérbole, mais uma abstração oca. Sejamos concretos
então. O fato cru é que vocês, graduandos, ainda não têm a mais vaga idéia do
significado real do que seja viver um dia após o outro. Existem grandes nacos da
vida adulta sobre os quais ninguém fala em discursos de formatura. Um desses
nacos envolve tédio, rotina e frustração mesquinha.
Vou dar um exemplo prosaico imaginando um dia qualquer do futuro. Você acordou
de manhã, foi para seu prestigiado emprego, suou a camisa por nove ou dez horas
e, ao final do dia, está cansado, estressado, e tudo que deseja é chegar em
casa, comer um bom prato de comida, talvez relaxar por umas horas, e depois ir
para cama, porque terá de acordar cedo e fazer tudo de novo. Mas aí lembra que
não tem comida na geladeira. Você não teve tempo de fazer compras naquela
semana, e agora precisa entrar no carro e ir ao supermercado. Nesse final de
dia, o trânsito está uma lástima.
Quando você finalmente chega lá, o supermercado está lotado, horrivelmente
iluminado com lâmpadas fluorescentes e impregnado de uma música ambiente de
matar. É o último lugar do mundo onde você gostaria de estar, mas não dá para
entrar e sair rapidinho: é preciso percorrer todos aqueles corredores
superiluminados para encontrar o que procura, e manobrar seu carrinho de
compras de rodinhas emperradas entre todas aquelas outras pessoas cansadas e
apressadas com seus próprios carrinhos de compras. E, claro, há também aqueles
idosos que não saem da frente, e as pessoas desnorteadas, e os adolescentes
hiperativos que bloqueiam o corredor, e você tem que ranger os dentes, tentar
ser educado, e pedir licença para que o deixem passar. Por fim, com todos os
suprimentos no carrinho, percebe que, como não há caixas suficientes
funcionando, a fila é imensa, o que é absurdo e irritante, mas você não pode
descarregar toda a fúria na pobre da caixa que está à beira de um ataque de
nervos.
De qualquer modo, você acaba
chegando à caixa, paga por sua comida e espera até que o cheque ou o cartão
seja autenticado pela máquina, e depois ouve um "boa noite, volte
sempre" numa voz que tem o som absoluto da morte. Na volta para casa, o
trânsito está lento, pesado etc. e tal.
É num momento corriqueiro e desprezível como esse que emerge a questão
fundamental da escolha. O engarrafamento, os corredores lotados e as longas
filas no supermercado me dão tempo de pensar. Se eu não tomar uma decisão
consciente sobre como pensar a situação, ficarei irritado cada vez que for
comprar comida, porque minha configuração padrão me leva a pensar que situações
assim dizem respeito a mim, a minha fome, minha fadiga, meu desejo de chegar
logo em casa. Parecerá
sempre que as outras pessoas não passam de estorvos. E quem são elas, aliás?
Quão repulsiva é a maioria, quão bovinas, e inexpressivas e desumanas parecem
ser as da fila da caixa, quão enervantes e rudes as que falam alto nos
celulares.
Também posso passar o tempo no congestionamento zangado e indignado com todas
essas vans, e utilitários e caminhões enormes e estúpidos, bloqueando as
pistas, queimando seus imensos tanques de gasolina, egoístas e perdulários.
Posso me aborrecer com os adesivos patrióticos ou religiosos, que sempre
parecem estar nos automóveis mais potentes, dirigidos pelos motoristas mais
feios, desatenciosos e agressivos, que costumam falar no celular enquanto
fecham os outros, só para avançar uns 20 metros idiotas no engarrafamento. Ou posso
me deter sobre como os filhos dos nossos filhos nos desprezarão por
desperdiçarmos todo o combustível do futuro, e provavelmente estragarmos o
clima, e quão mal-acostumados e estúpidos e repugnantes todos nós somos, e como
tudo isso é simplesmente pavoroso etc. e tal.
Se opto conscientemente por seguir essa linha de pensamento, ótimo, muitos de
nós somos assim - só que pensar dessa maneira tende a ser tão automático que
sequer precisa ser uma opção. Ela deriva da minha configuração padrão.
Mas existem outras formas de pensar. Posso, por exemplo, me forçar a aceitar a
possibilidade de que os outros na fila do supermercado estão tão entediados e
frustrados quanto eu, e, no cômputo geral, algumas dessas pessoas provavelmente
têm vidas bem mais difíceis, tediosas ou dolorosas do que eu.
Fazer isso é difícil, requer força de vontade e empenho mental. Se vocês forem
como eu, alguns dias não conseguirão fazê-lo, ou simplesmente não estarão a
fim. Mas, na maioria dos dias, se estiverem atentos o bastante para escolher,
poderão preferir olhar melhor para essa mulher gorducha, inexpressiva e
estressada que acabou de berrar com a filhinha na fila da caixa. Talvez ela não
seja habitualmente assim. Talvez ela tenha passado as três últimas noites em
claro, segurando a mão do marido que está morrendo. Ou talvez essa mulher seja
a funcionária mal remunerada do Departamento de Trânsito que, ontem mesmo, por
meio de um pequeno gesto de bondade burocrática, ajudou algum conhecido seu a
resolver um problema insolúvel de documentação.
Claro que nada disso é provável, mas tampouco é impossível. Tudo depende do que
vocês queiram levar em
conta. Se estiverem automaticamente convictos de conhecerem
toda a realidade, vocês, assim como eu, não levarão em conta possibilidades que
não sejam inúteis e irritantes. Mas, se vocês aprenderam como pensar, saberão
que têm outras opções. Está ao alcance de vocês vivenciarem uma situação
"inferno do consumidor" não apenas como significativa, mas como
iluminada pela mesma força que acendeu as estrelas.
Relevem o tom aparentemente
místico. A única coisa verdadeira, com V maiúsculo, é que vocês precisam
decidir conscientemente o que, na vida, tem significado e o que não tem.
Na trincheira do dia-a-dia, não há lugar para o ateísmo. Não existe algo como
"não venerar". Todo mundo venera. A única opção que temos é decidir o
que venerar. E o motivo para escolhermos algum tipo de Deus ou ente espiritual
para venerar - seja Jesus Cristo, Alá ou Jeová, ou algum conjunto inviolável de
princípios éticos - é que todo outro objeto de veneração te engolirá vivo. Quem
venerar o dinheiro e extrair dos bens materiais o sentido de sua vida nunca
achará que tem o suficiente. Aquele que venerar seu próprio corpo e beleza, e o
fato de ser sexy, sempre se sentirá feio - e quando o tempo e a idade começarem
a se manifestar, morrerá um milhão de mortes antes de ser efetivamente
enterrado.
No fundo, sabemos de tudo isso, que está no coração de mitos, provérbios,
clichês, epigramas e parábolas. Ao venerar o poder, você se sentirá fraco e
amedrontado, e precisará de ainda mais poder sobre os outros para afastar o
medo. Venerando o intelecto, sendo visto como inteligente, acabará se sentindo
burro, um farsante na iminência de ser desmascarado. E assim por diante.
O insidioso dessas formas de veneração não está em serem pecaminosas - e sim em
serem inconscientes. São o tipo de veneração em direção à qual você vai se
acomodando quase que por gravidade, dia após dia. Você se torna mais seletivo
em relação ao que quer ver, ao que valorizar, sem ter plena consciência de que
está fazendo uma escolha.
O mundo jamais o desencorajará de operar na configuração padrão, porque o mundo
dos homens, do dinheiro e do poder segue sua marcha alimentado pelo medo, pelo
desprezo e pela veneração que cada um faz de si mesmo. A nossa cultura consegue
canalizar essas forças de modo a produzir riqueza, conforto e liberdade
pessoal. Ela nos dá a liberdade de sermos senhores de minúsculos reinados
individuais, do tamanho de nossas caveiras, onde reinamos sozinhos.
Esse tipo de liberdade tem méritos. Mas existem outros tipos de liberdade.
Sobre a liberdade mais preciosa, vocês pouco ouvirão no grande mundo adulto
movido a sucesso e exibicionismo. A liberdade verdadeira envolve atenção,
consciência, disciplina, esforço e capacidade de efetivamente se importar com
os outros - no cotidiano, de forma trivial, talvez medíocre, e certamente pouco
excitante. Essa é a liberdade real. A alternativa é a torturante sensação de
ter tido e perdido alguma coisa infinita.
Pensem de tudo isso o que quiserem. Mas não descartem o que ouviram como um
sermão cheio de certezas. Nada disso envolve moralidade, religião ou dogma. Nem
questões grandiosas sobre a vida depois da morte. A verdade com V maiúsculo diz
respeito à vida antes da morte. Diz respeito a chegar aos 30 anos, ou talvez
aos 50, sem querer dar um tiro na própria cabeça. Diz respeito à consciência -
consciência de que o real e o essencial estão escondidos na obviedade ao nosso
redor - daquilo que devemos lembrar, repetindo sempre: "Isto é água, isto
é água."
É extremamente difícil lembrar disso, e permanecer consciente e vivo, um dia
depois do outro.
David Foster Wallace (1962-2008)