"E eis que depois de uma tarde de 'quem sou eu' e de
acordar à uma hora da madrugada ainda em desespero - eis que às três horas da
madrugada acordei e me encontrei. Fui ao encontro de mim. Calma, alegre,
plenitude sem fulminação. Simplesmente eu sou eu. E você é você. É vasto, vai durar.
(...) Olha para mim e me ama. Não: tu olhas para ti e te amas. É o que está
certo." (p. 101)
"Eu na minha solidão quase vou explodir. Morrer deve ser
uma muda explosão interna. O corpo não aguenta mais ser corpo. E se morrer
tiver o gosto de comida quando se está com muita fome? E se morrer for um
prazer, egoísta prazer?". (p. 88)
"Não me posso resumir porque não se pode somar uma
cadeira e duas maçãs. Eu sou uma cadeira e duas maçãs. E não me somo." (p. 79)
"Sou aos poucos. Minha história é viver. E não tenho
medo do fracasso. Que o fracasso me aniquile, quero a glória de cair." (p. 78)
"Eu, que fabrico o futuro como uma aranha diligente. E o
melhor de mim é quando nada sei e fabrico não sei o quê." (p. 73)
"Na minha noite idolatro o sentido secreto do mundo.
Boca e língua. E um cavalo solto de uma força livre. Guardo-lhe o casco em
amoroso fetichismo. Na minha funda noite sopra um louco vento que me traz
fiapos de gritos." (p. 43)
"Nova era, esta minha, e ela me anuncia para já. Tenho coragem? Por enquanto estou tendo: porque venho do sofrido longe, venho do inferno de amor mas agora estou livre de ti. Venho do longe - de uma pesada ancestralidade. Eu que venho da dor de viver. E não a quero mais. Quero a vibração do alegre. Quero a isenção de Mozart. Mas quero também a inconsequência. Liberdade? é o meu último refúgio, forcei-me à liberdade e aguento-a não como um dom mas com heroísmo: sou heroicamente livre. E quero o fluxo." (p. 20)
"Essa felicidade eu quis tornar eterna por intermédio da
objetivação da palavra. Fui logo depois procurar no dicionário a palavra
beatitude que detesto como palavra e vi que quer dizer gozo da alma. Fala em
felicidade tranquila - eu chamaria porém de transporte
ou de levitação. Também não gosto da continuação no dicionário que diz: 'de
quem se absorve em contemplação mística'. Não é verdade: eu não estava de modo
algum em meditação, não houve em mim nenhuma religiosidade. Tinha acabado de
tomar café e estava simplesmente vivendo ali sentada com um cigarro
queimando-se no cinzeiro." (p. 94)
"Domingo é dia de ecos - quentes, secos, e em toda parte
zumbidos de abelhas e vespas, gritos de pássaros e o longínquo das marteladas
compassadas - de onde vêm os ecos de domingo? Eu que detesto domingo por ser oco.
Eu, que quero a coisa mais primeira porque é
fonte de geração - eu que ambiciono beber água na nascente da fonte - eu que
sou tudo isso, devo por sina e trágico destino só conhecer e experimentar os
ecos de mim, porque não capto o mim propriamente dito." (p. 21)
Clarice Lispector (1920-1977). Água Viva (1973). Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1990
Clarice Lispector (1920-1977). Água Viva (1973). Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1990
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