quinta-feira, 23 de agosto de 2012

Água Viva


"E eis que depois de uma tarde de 'quem sou eu' e de acordar à uma hora da madrugada ainda em desespero - eis que às três horas da madrugada acordei e me encontrei. Fui ao encontro de mim. Calma, alegre, plenitude sem fulminação. Simplesmente eu sou eu. E você é você. É vasto, vai durar. (...) Olha para mim e me ama. Não: tu olhas para ti e te amas. É o que está certo." (p. 101)

"Eu na minha solidão quase vou explodir. Morrer deve ser uma muda explosão interna. O corpo não aguenta mais ser corpo. E se morrer tiver o gosto de comida quando se está com muita fome? E se morrer for um prazer, egoísta prazer?". (p. 88)

"Não me posso resumir porque não se pode somar uma cadeira e duas maçãs. Eu sou uma cadeira e duas maçãs. E não me somo." (p. 79)

"Sou aos poucos. Minha história é viver. E não tenho medo do fracasso. Que o fracasso me aniquile, quero a glória de cair." (p. 78)

"Eu, que fabrico o futuro como uma aranha diligente. E o melhor de mim é quando nada sei e fabrico não sei o quê." (p. 73)

"Na minha noite idolatro o sentido secreto do mundo. Boca e língua. E um cavalo solto de uma força livre. Guardo-lhe o casco em amoroso fetichismo. Na minha funda noite sopra um louco vento que me traz fiapos de gritos." (p. 43)


"Nova era, esta minha, e ela me anuncia para já. Tenho coragem? Por enquanto estou tendo: porque venho do sofrido longe, venho do inferno de amor mas agora estou livre de ti. Venho do longe - de uma pesada ancestralidade. Eu que venho da do
r de viver. E não a quero mais. Quero a vibração do alegre. Quero a isenção de Mozart. Mas quero também a inconsequência. Liberdade? é o meu último refúgio, forcei-me à liberdade e aguento-a não como um dom mas com heroísmo: sou heroicamente livre. E quero o fluxo." (p. 20)

"Essa felicidade eu quis tornar eterna por intermédio da objetivação da palavra. Fui logo depois procurar no dicionário a palavra beatitude que detesto como palavra e vi que quer dizer gozo da alma. Fala em felicidade tranquila - eu chamaria porém de transporte ou de levitação. Também não gosto da continuação no dicionário que diz: 'de quem se absorve em contemplação mística'. Não é verdade: eu não estava de modo algum em meditação, não houve em mim nenhuma religiosidade. Tinha acabado de tomar café e estava simplesmente vivendo ali sentada com um cigarro queimando-se no cinzeiro."  (p. 94)

"Domingo é dia de ecos - quentes, secos, e em toda parte zumbidos de abelhas e vespas, gritos de pássaros e o longínquo das marteladas compassadas - de onde vêm os ecos de domingo? Eu que detesto domingo por ser oco. Eu, que quero a coisa mais primeira porque é fonte de geração - eu que ambiciono beber água na nascente da fonte - eu que sou tudo isso, devo por sina e trágico destino só conhecer e experimentar os ecos de mim, porque não capto o mim propriamente dito." (p. 21)

Clarice Lispector (1920-1977). Água Viva (1973). Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1990

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