sexta-feira, 30 de novembro de 2012

Repara


"Repara. Há sempre alguém
guardando a tralha. Tremendo a foto.
Aprimorando a tara.

Há um deus maluco embaralhando
as cartas. Uma banana quase preta
na fruteira. E o último gole
da cerveja em lata."

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"De tudo, talvez, permaneça
o que significa. O que
não interessa. De tudo,
quem sabe, fique aquilo
que passa. Um gerânio
de aflição. Um gosto
de obturação na boca.
Você de cabelo molhado
saindo do banho.
Uma piada. Um provérbio.
Um buquê de presságios.
Sons de gotas na torneira da pia.
Tranqueiras líricas
na velha caixa de sapatos.
De tudo, talvez, restem
bêbadas anotações
no guardanapo.
E aquela música linda
que nunca toca no rádio."

Marcelo Montenegro (1971 -)

sábado, 24 de novembro de 2012

uma porta fechada com a chave para dentro


"Era um desses dias em que tudo corre bem.
Tinha limpado a casa e escrito
dois ou três poemas que me agradavam.
Não pedia mais nada.
Então saí pelo corredor para retirar o lixo
e atrás de mim, com um pé-de-vento,
a porta se fechou.
Fiquei sem chaves e às escuras
sentindo as vozes de meus vizinhos
através das suas portas.
É transitório, disse para mim mesmo;
porém assim também podia ser a morte:
um corredor escuro,
uma porta fechada com a chave para dentro.
O lixo nas mãos."

Fabián Casas (poeta argentino)

quarta-feira, 21 de novembro de 2012

Amor é o que se arrasta pelo chão


"Amor é uma luz à

noite atravessando o nevoeiro

amor é uma tampinha de cerveja
pisada no caminho
do banheiro

amor é a chave perdida da sua porta
quando você está bêbado

amor é o que acontece
uma vez a cada dez anos

amor é um gato esmagado

amor é o velho jornaleiro na
esquina que
desistiu

amor é o que você acha que a outra
pessoa destruiu

amor é o que desapareceu junto
com a era dos navios encouraçados

amor é o telefone tocando,
a mesma voz ou uma outra
voz mas nunca a voz
correta

amor é traição
amor é o incêndio dos
sem-teto num beco

amor é aço
amor é a barata
amor é uma caixa de correio

amor é a chuva sobre o telhado
de um velho hotel
em Los Angeles

amor é o seu pai num caixão
(aquele que te odiava)

amor é um cavalo com a perna
quebrada
tentando se levantar
enquanto 45.000 pessoas
observam

amor é o jeito que nós fervemos
como a lagosta

amor é tudo que nós dissemos
que não era

amor é a pulga que você não consegue
encontrar

e o amor é um mosquito

amor são 50 lançadores de granada

amor é um penico
vazio

amor é uma rebelião em San Quentin
amor é um hospício
amor é um burro parado numa
rua de moscas

amor é um banco de bar vazio

amor é um filme do Hindenburg
se retorcendo
um momento que ainda grita

amor é Dostoiévski na
roleta

amor é o que se arrasta pelo
chão

amor é a sua mulher dançando
colada com um estranho

amor é uma senhora
roubando um pedaço de
pão

e o amor é uma palavra usada
muitas vezes e
muitas vezes
cedo demais."

Charles Bukowski (1920-1994)

Não sou nada


"Não sou nada.

Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isto, tenho em mim todos os sonhos do mundo."

(...)

"Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?),
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensame
ntos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a pôr umidade nas paredes e cabelos brancos nos homens.
Com o destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada."

(...)


"Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente
O seu sol, a sua chuva, o vento que me acha o cabelo,
E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha."

(...)

"Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta.
Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,
Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam,
Vejo os cães que também existem,
E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo,
E tudo isto é estrangeiro, como tudo."

(...)

"Mas o que eu não fui, o que eu não fiz, o que nem sequer sonhei;
O que só agora vejo que deveria ter feito,
O que só agora claramente vejo que deveria ter sido - 
Isso é que é morto para além de todos os Deuses,
Isso - e foi afinal o melhor de mim - é que nem os Deuses fazem viver..."

(...)

"Pode ser que para outro mundo eu possa levar o que sonhei,
Mas poderei eu levar para outro mundo o que me esqueci de sonhar?
Esses sim, os sonhos por haver, é que são o cadáver.
Enterro-o no meu coração para sempre, para todo o tempo, para
todos os universos.

Nesta noite em que não durmo, e o sossego me cerca
Como uma verdade de que não partilho,
E lá fora o luar, como a esperança que não tenho, é invisível p'ra mim."

Fernando Pessoa. Poemas escolhidos. Klick editora, p. 121, 122, 123, 127 e 128

As pessoas não são boas umas com as outras


há tamanha solidão no mundo
que você pode vê-la no movimento lento dos
braços de um relógio.

pessoas tão cansadas
mutiladas
tanto pelo amor como pelo desamor.

as pessoas simplesmente não são boas umas com as outras
cara a cara.

os ricos não são bons para os ricos
os pobres não são bons para os pobres.

estamos com medo.

nosso sistema educacional nos diz que
podemos ser todos
grandes vencedores.

eles não nos contaram
a respeito das misérias
ou dos suicídios.

ou do terror de uma pessoa
sofrendo sozinha
num lugar qualquer

intocada
incomunicável

regando uma planta.

as pessoas não são boas umas com as outras.
as pessoas não são boas umas com as outras.
as pessoas não são boas umas com as outras.

suponho que nunca serão.
não peço para que sejam.

mas às vezes eu penso sobre
isso.

Charles Bukowski (1920-1994)

A roda enferrujada do dia


A roda enferrujada do dia

roda lentamente
meu desejo insatisfeito
adoecendo os sentidos

A roda gasta do dia
deglute com cegos dentes
a semente
o amor que poderia

A chuva fria do ferro envelhecido
entristece o futuro e o
pendente

E essa dor atemporal se estende
sem cura no metal ruído
polui a alvura de fluidos permanentes
que não passam
que não passam

Rosália Milsztajn

sexta-feira, 9 de novembro de 2012

Dois irmãos


(...) Laval internou-se no subsolo de uma casa à margem do Igarapé de Manaus. Várias vezes foi encontrado no canto da caverna, quieto e emudecido, o rosto cadavérico, a barba espessa que ele conservaria até a imolação. Não era greve de fome nem inapetência. Talvez desespero. Seus poemas, cheios de palavras raras, insinuavam noites aflitas, mundos soterrados, vidas sem saída ou escape. Às sextas-feiras distribuía-os aos alunos, pensando que ninguém os leria, pensando sempre no pior. Lá no íntimo era um pessimista, um desencantado, e tentava compensar esse desencanto por meio da aparência, com seu jeito de dândi. Refutava o rótulo de poeta, mas não se incomodava quando o chamavam de excêntrico ou afetado. Não sei qual dos dois atributos o definia melhor. Nenhum, talvez. Mas foi um mestre. E também um atormentado que escrevia, sabendo que não publicaria nada. Seus poemas repousam por aí, em gavetas esquecidas ou na memória de ex-alunos. 

Milton Hatoum. Dois irmãos. São Paulo: Cia das Letras, 2006, p. 145