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A felicidade abraçava-me, embaraçava-se em meu corpo, salgava-me com o sal de sua saliva. A felicidade se escondia no porão da casa, e cabia a mim visitá-la. Ser feliz era estar em pecado, eu me culpava e negociava o fingimento de estar infeliz. Caminhar por sobre o pecado demandava muitas pernas. Mentir-me em tristeza preservava a felicidade que me assaltara, eu suspeitava. (p. 23)
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Ao amar, desvendei a serventia do corpo para além de guardar a alma imortal. Até então, o corpo só me servia para carregar no estômago o tomate. Favorecia-me, vez por outra, ao nadar no córrego e desfrutar a maciez das águas, ao pedalar a bicicleta do padre, ao correr nos campos e vencer o mais longe. No amor, meu corpo delatou a presença da alma, que veio morar na superfície de minha pele. (p. 27)
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O fundo é frio e a terra úmida. A aragem não sopra no lá embaixo. No fundo, o peso da terra é definitivo véu. Não há carga que o corpo morto não suporte. Não há alma lá no fundo. A luz não desfaz o breu que arde no bem profundo. No bem fundo, não há palavra capaz de soar. Mas o silêncio não existe no fundo. O nada interrompe tudo. A mãe dorme no muito fundo. (p. 32)
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Se a chuva chovia mansa o dia inteiro, o amor da mãe se revelava com mais delicadeza. O tempo definia as receitas. Na beira do fogão ela refogava o arroz. O cheiro do alho frito acordava o ar e impacientava o apetite. A couve, ela cortava mais fina que a ponta da agulha que borda mares em ponto cheio. Depois, mexia o angu para casar com a carne moída, salpicada de salsinha, conversando com o caldo do feijão. Tudo denunciava o seu amor. Nós, meninos, comíamos devagar, tomando sentido para cada gosto. Ela desconfiava que matar nossa fome era como nos pedir para viver. A comida descia leve como o andar do gato da minha irmã. (p. 35)
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Durante quatro estações, em todas as manhãs, o trem deslizava em frente de nossa casa. Nascia na cidade de um avô, que escrevia nas paredes, e morria na cidade de outro avô, com seu olho de vidro. Sempre suspeitei o nascer como entrar num trem andando. Só que, o mundo, eu não sabia de onde vinha nem para onde ia. E, no meu vagão, não escolhi os companheiros para a viagem. Eram todos estranhos, severos, amargos, impostos. Também entrei sem comprar o bilhete de viagem. Minha bagagem, pequena, cabia debaixo do banco - da segunda classe - sem incomodar. Contrabandeava poucos pertences: uma grande dor que doía o corpo inteiro e a vontade de encontrar um remédio capaz de remediar o incômodo. Até hoje o mundo ainda não atracou. Vou sem escolher o destino. O trem estancava na minha cidade, trocava de carga e reabastecia-se. O mundo só nos permite uma baldeação definitiva. (p. 38)
Bartolomeu Campos de Queirós, Vermelho amargo. São Paulo: Cosar Naify, 2011