Sobre os dias, a ausência de mãe ganhava corpo. O tempo - capaz de trocar a roupa do mundo - não consumia sua lembrança. Quando se ama, em cada dia o morto nasce mais. Em tudo, sua ausência estava presente. Sobre a fruteira da mesa da sala de jantar, na janela em que se debruçava nas tardes, na gota de água que pingava da torneira, no anil que clareava os lençóis, ela se anunciava. No silêncio obrigatório para bem escutar os pássaros, ela se emanava. (p. 20)
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A felicidade abraçava-me, embaraçava-se em meu corpo, salgava-me com o sal de sua saliva. A felicidade se escondia no porão da casa, e cabia a mim visitá-la. Ser feliz era estar em pecado, eu me culpava e negociava o fingimento de estar infeliz. Caminhar por sobre o pecado demandava muitas pernas. Mentir-me em tristeza preservava a felicidade que me assaltara, eu suspeitava. (p. 23)
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Ao amar, desvendei a serventia do corpo para além de guardar a alma imortal. Até então, o corpo só me servia para carregar no estômago o tomate. Favorecia-me, vez por outra, ao nadar no córrego e desfrutar a maciez das águas, ao pedalar a bicicleta do padre, ao correr nos campos e vencer o mais longe. No amor, meu corpo delatou a presença da alma, que veio morar na superfície de minha pele. (p. 27)
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O fundo é frio e a terra úmida. A aragem não sopra no lá embaixo. No fundo, o peso da terra é definitivo véu. Não há carga que o corpo morto não suporte. Não há alma lá no fundo. A luz não desfaz o breu que arde no bem profundo. No bem fundo, não há palavra capaz de soar. Mas o silêncio não existe no fundo. O nada interrompe tudo. A mãe dorme no muito fundo. (p. 32)
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Se a chuva chovia mansa o dia inteiro, o amor da mãe se revelava com mais delicadeza. O tempo definia as receitas. Na beira do fogão ela refogava o arroz. O cheiro do alho frito acordava o ar e impacientava o apetite. A couve, ela cortava mais fina que a ponta da agulha que borda mares em ponto cheio. Depois, mexia o angu para casar com a carne moída, salpicada de salsinha, conversando com o caldo do feijão. Tudo denunciava o seu amor. Nós, meninos, comíamos devagar, tomando sentido para cada gosto. Ela desconfiava que matar nossa fome era como nos pedir para viver. A comida descia leve como o andar do gato da minha irmã. (p. 35)
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Durante quatro estações, em todas as manhãs, o trem deslizava em frente de nossa casa. Nascia na cidade de um avô, que escrevia nas paredes, e morria na cidade de outro avô, com seu olho de vidro. Sempre suspeitei o nascer como entrar num trem andando. Só que, o mundo, eu não sabia de onde vinha nem para onde ia. E, no meu vagão, não escolhi os companheiros para a viagem. Eram todos estranhos, severos, amargos, impostos. Também entrei sem comprar o bilhete de viagem. Minha bagagem, pequena, cabia debaixo do banco - da segunda classe - sem incomodar. Contrabandeava poucos pertences: uma grande dor que doía o corpo inteiro e a vontade de encontrar um remédio capaz de remediar o incômodo. Até hoje o mundo ainda não atracou. Vou sem escolher o destino. O trem estancava na minha cidade, trocava de carga e reabastecia-se. O mundo só nos permite uma baldeação definitiva. (p. 38)
Bartolomeu Campos de Queirós, Vermelho amargo. São Paulo: Cosar Naify, 2011
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