segunda-feira, 28 de novembro de 2011

Uma cartinha ao Papai Noel

Querido Papai Noel,

Neste ano eu me comportei direitinho. Obedeci à mamãe e ao papai, não briguei com a minha irmã e usei o dinheiro da minha mesada com muita responsabilidade. O papai me dá 700 reais todos os meses para eu gastar com o que eu quiser, mas eu economizo 200 reais por mês. É que eu quero juntar 3.000 reais para eu levar para a Disney no ano que vem e comprar um monte de coisas legais para mim.

Na escola eu também fiz tudo direitinho. Meus colegas fizeram muitas coisas erradas, mas eu não. Todos os dias eles insultavam um outro menino, que veio estudar na nossa sala com uma bolsa de estudos, porque ele é pobre e negro, coitado... Eles batiam nele e o chamavam de um monte de coisas feias, como urubu, filhote de cruz credo e favelado; e ainda chamavam a mãe dele de prostituta e o pai de drogado e traficante. Só que eu não. Eu ficava caladinho. Eu não conversava com o menino porque ninguém nem chegava perto dele, só a professora, então eu não podia conversar também. Mas eu nunca bati nele nem o chamei de nomes feios.

De vez em quando umas pessoas muito pobres tocam o interfone daqui de casa pedindo um prato de comida ou um pedaço de pão. Quando sobram restos de comida nos pratos, eu junto tudo, embrulho num jornal e levo para eles. Quando não sobra comida, eu pego uns dois ou três pães, que ficam guardados no armário a semana inteira para endurecer e a empregada poder ralar para fazer farinha de pão, e jogo para eles por cima da grade. Um dia um menino que estava com eles me pediu água. Mesmo correndo o risco de sujar o piso de granito da mamãe, eu abri o portão e deixei o coitado usar a torneira do jardim. O meu pai até chegou na hora e empurrou o menino para fora, chamando-o de pivete imundo. Eu fiquei muito triste com o papai.

Ontem esteve aqui em casa a minha tia Jaciara. Ela me contou que só existe um Papai Noel de verdade: o senhor. Ela disse que aquele Papai Noel que fica na casinha da ASCIPAM é de mentira; que o Papai Noel de verdade é um espírito superior, que só visita as residências de pessoas superiores, como nós, que merecem ser presenteadas. Foi aí que eu entendi por que os alunos bolsistas lá da escola, que são inferiores, só ganham de Natal brinquedos ruins, enquanto nós, superiores, ganhamos brinquedos bons e caros. É que quem dá os presentes para as crianças pobres são os próprios pais delas (ou alguma instituição de caridade ou empresa), que não têm muito dinheiro, enquanto, no nosso caso, é o senhor mesmo, que vem com as suas renas mágicas visitar as nossas casas.

Aproveito esta carta também para agradecer ao senhor o helicóptero de controle remoto, o computador, o tênis Puma e o celular que o senhor me deu no ano passado. Muito obrigado, Papai Noel. Gostei demais! O helicóptero ainda está funcionando, mas eu não brinco mais com ele porque fiquei enjoado, então eu o empresto ao filho da empregada todo sábado de manhã. O senhor precisa ver a alegria do menino! (Mas acho que o senhor vê, não é?). O computador já não me serve mais, porque de uma hora para outra ele ficou muito devagar e o papai teve que comprar outro. O tênis eu tive que parar de usar porque o Eloi, meu colega, chegou com um muito mais caro do que o meu, então eu tive que pedir ao papai para comprar um de uma marca ainda mais cara, para eu não ficar para trás. E o celular, o senhor sabe... Não dá para ficar com o mesmo por muito tempo, no máximo dois ou três meses, porque sempre aparece um mais avançado, com design mais moderno e mais caro lá na escola, e a gente tem que trocar o nosso, para ninguém ficar zoando a gente.

Neste Natal, eu peço ao senhor um laptop (o melhor que tiver no mundo), porque oito colegas meus já têm os seus e eu preciso ter o meu também; uma viagem ao Japão, porque até hoje ninguém na minha sala foi ao Japão; e um celular novo (também o melhor do mundo), porque eu não posso ficar para trás.

Ah! Já ia me esquecendo! Se for possível, eu gostaria de confirmar uma coisa com o senhor. É que ontem, junto com a tia Jaciara, veio nos visitar o tio Tomás, que é deputado lá no Congresso. Ele ficou o tempo todo rindo (com a mão naquela pança enorme que ele tem), bebendo um vinho importado da mamãe (reservado para ocasiões especiais), e disse que este ano o Papai Noel DELE vai chegar bem mais gordo (e de jatinho), por causa de um aumento de mais de 60% no salário que eles mesmos se deram lá no Congresso. A tia Jaciara tinha acabado de me contar a verdadeira história do Papai Noel (ou seja, do senhor), e na hora só pude crer que o tio Tomás tinha se equivocado. Como é possível que ele possa ter um Papai Noel só dele (mais gordo do que o dos outros e que chega de jatinho e não de renas mágicas) se só existe um Papai Noel: o senhor?

Um forte abraço, blá blá blá...

Flávio Marcus da Silva

quarta-feira, 2 de novembro de 2011

Um sopro de vida (II)

Assusta-me quando num relance vejo as entranhas do espírito dos outros. Ou quando caio sem querer bem fundo dentro de mim e vejo o abismo interminável da eternidade, abismo através do qual me comunico fantasmagórica com Deus.

(...)

Está tudo podre. Eu o sinto no ar e nas pessoas em multidão amedrontada e faminta. Mas creio que no fundo da podridão existe - verde faiscante redentora e terra prometida - no mais fundo da escura podridão brilha límpida e fascinante a Grande Esmeralda. O Grande Prazer. Mas por que esse desejo e fome de prazer? Porque o prazer é o máximo da veracidade de um ser. É a única luta contra a morte.

(...)

O que me separa do mundo é a minha futura morte. A morte será o meu maior acontecimento individual: a pessoa se despe de si mesma para morrer sozinha de si. A morte é uma atitude bíblica. E é sem história discursiva: ela é um instante. Morrer-se de uma vez só. A parada do coração não dura nada. É a mais ínfima fração de um segundo.

(...)

Enquanto escrevo pingam os minutos irreversíveis. É o Tempo passando.

Eu penso alto. Quem me ouve? Olho para a cara da pessoa e vejo: ela vai morrer.

(...)

Eu quase já sei como será depois de minha morte. A sala vazia o cachorro a ponto de morrer de saudade. Os vitrais de minha casa. Tudo vazio e calmo.

Clarice Lispector, Um sopro de vida (1977/78). Rio de Janeiro: Rocco, 1999, pp. 148-156.

Uma carniça

Lembra-te, meu amor, do objeto que encontramos
Numa bela manhã radiante:
Na curva de um atalho, entre calhaus e ramos,
Uma carniça repugnante.

As pernas para cima, qual mulher lasciva,
A transpirar miasmas e humores,
Eis que as abria desleixada e repulsiva,
O ventre prenhe de livores.

Ardia o sol naquela pútrida torpeza,
Como a cozê-la em rubra pira
E para ao cêntuplo volver à Natureza
Tudo o que ali ela reunira.

E o céu olhava do alto a esplêndida carcaça
Como uma flor a se entreabrir.
O fedor era tal que sobre a relva escassa
Chegaste quase a sucumbir.

Zumbiam moscas sobre o ventre e, em alvoroço,
Dali saíam negros bandos
De larvas, a escorrer como um líquido grosso
Por entre esses trapos nefandos.

E tudo isso ia e vinha, ao modo de uma vaga,
Ou esguichava a borbulhar,
Como se o corpo, a estremecer de forma vaga,
Vivesse a se multiplicar.

E esse mundo emitia uma bulha esquisita,
Como vento ou água corrente,
Ou grãos que em rítmica cadência alguém agita
E à joeira deita novamente.

As formas fluíam como um sonho além da vista,
Um frouxo esboço em agonia,
Sobre a tela esquecida, e que conclui o artista
Apenas de memória um dia.

Por trás das rochas irrequieta, uma cadela
Em nós fixava o olho zangado,
Aguardando o momento de reaver àquela
Náusea carniça o seu bocado.

— Pois hás de ser como essa infâmia apodrecida,
Essa medonha corrupção,
Estrela de meus olhos, sol de minha vida,
Tu, meu anjo e minha paixão!

Sim! tal serás um dia, ó deusa da beleza,
Após a benção derradeira,
Quando, sob a erva e as florações da natureza,
Tornares afinal à poeira.

Então, querida, dize à carne que se arruína,
Ao verme que te beija o rosto,
Que eu preservei a forma e a substância divina
De meu amor já decomposto!

BAUDELAIRE, Charles (1821-1867). Une charogne. Les fleurs du mal. Trad. de Ivan Junqueira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985. p.172.

Texto original:

Une charogne

Rappelez-vous l'objet que nous vîmes, mon âme,
Ce beau matin d'été si doux:
Au détour d'un sentier une charogne infâme
Sur un lit semé de cailloux,

Les jambes en l'air, comme une femme lubrique,
Brûlante et suant les poisons,
Ouvrait d'une façon nonchalante et cynique
Son ventre plein d'exhalaisons.

Le soleil rayonnait sur cette pourriture,
Comme afin de la cuire à point,
Et de rendre au centuple à la grande Nature
Tout ce qu'ensemble elle avait joint;

Et le ciel regardait la carcasse superbe
Comme une fleur s'épanouir.
La puanteur était si forte, que sur l'herbe
Vous crûtes vous évanouir.

Les mouches bourdonnaient sur ce ventre putride,
D'où sortaient de noirs bataillons
De larves, qui coulaient comme un épais liquide
Le long de ces vivants haillons.

Tout cela descendait, montait comme une vague
Ou s'élançait en pétillant;
On eût dit que le corps, enflé d'un souffle vague,
Vivait en se multipliant.

Et ce monde rendait une étrange musique,
Comme l'eau courante et le vent,
Ou le grain qu'un vanneur d'un mouvement rythmique
Agite et tourne dans son van.

Les formes s'effaçaient et n'étaient plus qu'un rêve,
Une ébauche lente à venir
Sur la toile oubliée, et que l'artiste achève
Seulement par le souvenir.

Derrière les rochers une chienne inquiète
Nous regardait d'un oeil fâché,
Epiant le moment de reprendre au squelette
Le morceau qu'elle avait lâché.

— Et pourtant vous serez semblable à cette ordure,
À cette horrible infection,
Étoile de mes yeux, soleil de ma nature,
Vous, mon ange et ma passion!

Oui! telle vous serez, ô la reine des grâces,
Après les derniers sacrements,
Quand vous irez, sous l'herbe et les floraisons grasses,
Moisir parmi les ossements.

Alors, ô ma beauté! dites à la vermine
Qui vous mangera de baisers,
Que j'ai gardé la forme et l'essence divine
De mes amours décomposés!