quarta-feira, 2 de novembro de 2011

Um sopro de vida (II)

Assusta-me quando num relance vejo as entranhas do espírito dos outros. Ou quando caio sem querer bem fundo dentro de mim e vejo o abismo interminável da eternidade, abismo através do qual me comunico fantasmagórica com Deus.

(...)

Está tudo podre. Eu o sinto no ar e nas pessoas em multidão amedrontada e faminta. Mas creio que no fundo da podridão existe - verde faiscante redentora e terra prometida - no mais fundo da escura podridão brilha límpida e fascinante a Grande Esmeralda. O Grande Prazer. Mas por que esse desejo e fome de prazer? Porque o prazer é o máximo da veracidade de um ser. É a única luta contra a morte.

(...)

O que me separa do mundo é a minha futura morte. A morte será o meu maior acontecimento individual: a pessoa se despe de si mesma para morrer sozinha de si. A morte é uma atitude bíblica. E é sem história discursiva: ela é um instante. Morrer-se de uma vez só. A parada do coração não dura nada. É a mais ínfima fração de um segundo.

(...)

Enquanto escrevo pingam os minutos irreversíveis. É o Tempo passando.

Eu penso alto. Quem me ouve? Olho para a cara da pessoa e vejo: ela vai morrer.

(...)

Eu quase já sei como será depois de minha morte. A sala vazia o cachorro a ponto de morrer de saudade. Os vitrais de minha casa. Tudo vazio e calmo.

Clarice Lispector, Um sopro de vida (1977/78). Rio de Janeiro: Rocco, 1999, pp. 148-156.

Nenhum comentário: