O que há em mim é sobretudo cansaço —
Não disto nem daquilo,
Nem sequer de tudo ou de nada:
Cansaço assim mesmo, ele mesmo,
Cansaço.
A sutileza das sensações inúteis,
As paixões violentas por coisa nenhuma,
Os amores intensos por o suposto em alguém,
Essas coisas todas —
Essas e o que falta nelas eternamente —;
Tudo isso faz um cansaço,
Este cansaço,
Cansaço.
Há sem dúvida quem ame o infinito,
Há sem dúvida quem deseje o impossível,
Há sem dúvida quem não queira nada —
Três tipos de idealistas, e eu nenhum deles:
Porque eu amo infinitamente o finito,
Porque eu desejo impossivelmente o possível,
Porque quero tudo, ou um pouco mais, se puder ser,
Ou até se não puder ser...
E o resultado?
Para eles a vida vivida ou sonhada,
Para eles o sonho sonhado ou vivido,
Para eles a média entre tudo e nada, isto é, isto...
Para mim só um grande, um profundo,
E, ah com que felicidade infecundo, cansaço,
Um supremíssimo cansaço,
Íssimno, íssimo, íssimo,
Cansaço...
Fernando Pessoa (Álvaro de Campos), 1934
Fonte: Jornal de Poesia
quarta-feira, 16 de março de 2011
terça-feira, 8 de março de 2011
A Pomba
E depois, uma vez, em meados dos anos sessenta, no outono, quando jonathan foi à agência dos correios na Rue Dupin e quase tropeçou numa garrafa de vinho na entrada, colocada em cima do pedacinho de papelão, entre uma bolsa de plástico e a boina bem conhecida com algumas moedas dentro, e quando procurou, sem querer, o clochard [mendigo] durante alguns momentos, não porque estivesse sentindo sua falta como pessoa, mas sim porque faltava o ponto central da natureza-morta composta de garrafa, bolsa e papelão..., então Jonathan o viu agachado entre dois carros estacionados do outro lado da rua e viu como ele fazia suas necessidades: o clochard agachara-se ao lado do meio-fio, com as calças arriadas até os joelhos, o traseiro virado na direção de Jonathan, as nádegas totalmente desnudas, os transeuntes passavam, todos podiam vê-lo: um traseiro branco-farinha, com manchas azuis e lugares com crostas avermelhadas, de aparência tão esfolada como as nádegas de um ancião mantido num leito - em contrapartida, o homem não era mais velho do que Jonathan nessa época, tinha talvez trinta, no máximo trinta e cinco anos de idade. E desse traseiro esfolado saiu então um jorro de líquido marrom, caindo no calçamento com tremenda violência e em grande quantidade, formando um charco, um mar que circundou os sapatos, e os salpicos lançados para cima e para os lados mancharam meias, coxas, calças, camisa, tudo...
Patrick Süskind, A Pomba. Rio de Janeiro: Record, 1987, p. 59-60.
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