sexta-feira, 2 de abril de 2010

On the Road

Aquela noite em Harrisburg tive de dormir num banco da estação ferroviária; ao amanhecer os bilheteiros me enxotaram. Não é verdade que você começa a vida como uma criancinha crédula sob a proteção paterna? E então chega o dia da indiferença, em que o cara descobre que é um desgraçado, um miserável, fraco, cego e nu, e com a aparência de um fantasma fatigado e fatídico avança trêmulo por uma vida de pesadelo. Me arrastei para fora da estação, desfigurado. Estava fora de mim. Daquela manhã tudo o que eu podia perceber era sua própria palidez, como a palidez de um túmulo. Eu estava morto de fome, tudo que me restava em termos calóricos eram as últimas pastilhas para a garganta que eu tinha comprado meses atrás em Shelton, Nebraska; chupei-as por causa do açúcar. Eu não sabia esmolar. Arrastei-me para fora da cidade com uma força que mal me permitiu chegar aos seus limites. Sabia que seria preso se passasse mais uma noite em Harrisburg (p. 139).

(...)

De repente, lá estava eu na Times Square. Tinha viajado doze mil quilômetros pelo continente americano e estava de volta à Times Square; e ainda por cima bem na hora do rush, observando com os meus inocentes olhos de estradeiro a loucura completa e o zunido fantástico de Nova York com seus milhões e milhões de habitantes atropelando uns aos outros sem cessar em troca de uns tostões, um sonho maluco - pegando, agarrando, entregando, suspirando, morrendo, e assim poderiam ser enterrados naquelas horrendas cidades-cemitério que ficam além de Long Island (p. 139-40).

(...)

Certa vez, Carlo Marx e eu nos sentamos frente a frente em duas cadeiras, joelho contra joelho, e eu lhe contei um sonho que tivera, com uma estranha figura árabe que me perseguia através do deserto; uma figura da qual eu tentava escapar mas que finalmente me alcançava pouco antes de chegar à Cidade Protetora. "Quem era"?, perguntou Carlo. Refletimos. Sugeri que talvez fosse eu mesmo vestindo um manto. Não era isso. Algo, alguém, algum espírito nos perseguia, a todos nós, através do deserto da vida, e estava determinado a nos apanhar antes que alcançássemos o paraíso. Naturalmente, agora que reflito sobre isso, trata-se apenas da morte: a morte vai nos surpreender antes do paraíso. A única coisa pela qual ansiamos em nossos dias de vida, e que nos faz gemer e suspirar e nos submetermos a todos os tipos de náuseas singelas, é a lembrança de uma alegria perdida que provavelmente foi experimentada no útero e que somente poderá ser reproduzida (apesar de odiarmos admitir isso) na morte (p. 159).

Jack Kerouac, On the Road - Pé na Estrada, Porto Alegre: L&PM, 2009 (Primeira edição em inglês: 1957)

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