domingo, 5 de outubro de 2008

Ocorrência

Cheguei ao sobrado na rua da Cancela e o guarda que estava na porta disse: primeiro andar. Ele está no banheiro.

Subi. Na sala uma mulher com os olhos vermelhos me olhou em silêncio. Ao seu lado um menino magro, meio encolhido, de boca aberta, respirando com dificuldade.

O banheiro? Ela me apontou um corredor escuro. A casa cheirava a mofo, como se os encanamentos estivessem vazando no interior das paredes. De algum lugar vinha um odor de cebola e alho fritos.

A porta do banheiro estava entreaberta. O homem estava lá.

Voltei para a sala. Já havia feito todas as perguntas à mulher quando o perito Azevedo chegou.

No banheiro, eu disse.

Anoitecia. Acendi a luz da sala. Azevedo me pediu ajuda. Fomos para o banheiro.

Levanta o corpo, disse o perito, para eu soltar o laço. Segurei o morto pela barriga. Da sua boca saiu um gemido.

Ar preso, disse Azevedo, esquisito não é? Rimos sem prazer. Pusemos o corpo no chão úmido. Um homem franzino, e barba por fazer, o rosto cinzento, parecia um boneco de cera.

Ele não deixou bilhete, nada, eu disse.

Eu conheço esse tipo, disse Azevedo, quando não agüentam mais eles se matam depressa, tem que ser depressa senão se arrependem.

Azevedo urinou no vaso sanitário. Depois lavou as mãos na pia e enxugou-as nas fraldas de sua camisa.


Rubem Fonseca. O Cobrador.

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