quarta-feira, 6 de junho de 2012

As intermitências da morte (II)


 
E a morte se apaixona pelo violoncelista que ela veio buscar...

Com seu vestido novo comprado ontem numa loja do centro, a morte assiste ao concerto. Está sentada, sozinha, no camarote de primeira ordem, e, como havia feito durante o ensaio, olha o violoncelista. Antes que as luzes da sala tivessem sido baixadas, quando a orquestra esperava a entrada do maestro, ele reparou naquela mulher. Não foi o único dos músicos a dar pela sua presença. Em primeiro lugar porque ela ocupava sozinha o camarote, o que, não sendo caso raro, tão-pouco é frequente. Em segundo lugar porque era bonita, porventura não a mais bonita entre a assistência feminina, mas bonita de um modo indefinível, particular, não explicável por palavras, como um verso cujo sentido último, se é que tal cousa existe num verso, continuamente escapa ao tradutor. E finalmente porque a sua figura isolada, ali no camarote, rodeada de vazio e ausência por todos os lados, como se habitasse um nada, parecia ser a expressão da solidão mais absoluta. A morte, que tanto e tão perigosamente havia sorrido desde que saiu do seu gelado subterrâneo, não sorri agora. Do público, os homens tinham-na observado com dúbia curiosidade, as mulheres com zelosa inquietação, mas ela, como uma águia descendo rápida sobre o cordeiro, só tem olhos para o violoncelista. Com uma diferença, porém. No olhar desta outra águia que sempre apanhou as suas vítimas há algo como um ténue véu de piedade, as águias, já o sabemos, estão obrigadas a matar, assim lho impõe a sua natureza, mas esta aqui, neste instante, talvez preferisse, perante o cordeiro indefeso, abrir num repente as poderosas asas e voar de novo para as alturas, para o frio ar do espaço, para os inalcançáveis rebanhos das nuvens. A orquestra calou-se. O violoncelista começa a tocar o seu solo como se só para isso tivesse nascido. Não sabe que aquela mulher do camarote guarda na sua recém-estreada malinha de mão uma carta de cor violeta de que ele é destinatário, não o sabe, não poderia sabê-lo, e apesar disso toca como se estivesse a despedir-se do mundo, a dizer por fim tudo quanto havia calado, os sonhos truncados, os anseios frustrados, a vida, enfim. Os outros músicos olham-no com assombro, o maestro com surpresa e respeito, o público suspira, estremece, o véu de piedade que nublava o olhar agudo da águia é agora uma lágrima.

José Saramago, As intermitências da morte. São Paulo: Cia das Letras, p. 191-192

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