Dados da Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação revelam que trinta e sete países do mundo estão sob a ameaça de uma grave crise alimentar. Em alguns países da Ásia, África e América Latina, a falta de alimentos já foi causa de violentos motins populares. Como as autoridades devem lidar com esse problema? Veja como, em Minas Gerais, no século XVIII, a administração portuguesa se organizou para evitar a eclosão de revoltas populares contra a falta de alimentos.
Entre os anos de 1717 e 1719, o governador da Capitania de São Paulo e Minas do ouro, Dom Pedro Miguel de Almeida Portugal, enfrentou uma séria ameaça à ordem nos principais distritos mineradores do centro-sul do Brasil. Considerada, naquele momento, a galinha dos ovos de ouro do Império português, a rica região das Minas foi aterrorizada por uma série de notícias vindas do sertão do Rio São Francisco (atual Norte de Minas) a respeito de um movimento rebelde liderado por alguns criadores de gado daquela região. Tais fazendeiros estariam se unindo para impedir a entrada de gado nas Minas, o que afetaria seriamente o abastecimento da região, já que a maior parte do gado de corte que chegava aos centros mineradores para a alimentação do povo vinha do sertão. O principal líder desse movimento seria Manuel Nunes Viana, um português já conhecido das autoridades coloniais por seu envolvimento na Guerra dos Emboabas (1708-1710), quando portugueses e paulistas se enfrentaram numa disputa pelas minas de ouro recém descobertas. Dessa vez, o temor das autoridades era de que esse régulo pudesse provocar nos centros mineradores um outro tipo de distúrbio social, conhecido na historiografia como Motim da Fome. Para as autoridades, a violência coletiva provocada pela falta de alimentos criaria nas Minas uma situação de instabilidade e insegurança que não só afetaria a cobrança de impostos, mas também atrairia invasores estrangeiros, conscientes das precárias defesas portuguesas no litoral.
Em 1717, Dom Pedro Miguel de Almeida Portugal, 3º Conde de Assumar (1688-1756), foi nomeado pelo rei de Portugal, D. João V (1689-1750), para governar a turbulenta Capitania de São Paulo e Minas do ouro, recebendo a missão de manter a ordem entre os mineiros e garantir a arrecadação dos impostos devidos à Coroa portuguesa. [Palco de uma série de revoltas contra a voracidade do fisco português nas duas primeiras décadas do século XVIII, a região das Minas pertenceu à Capitania de São Paulo até 1720. Naquele ano, o rei de Portugal criou a Capitania de Minas Gerais, com estruturas administrativa e fiscal próprias, organizadas com o objetivo principal de aumentar a arrecadação tributária para o Império português].
Assim que chegou à região das Minas em 1717, o recém empossado governador teve notícia de que um rico fazendeiro do sertão, Manuel Nunes Viana, pretendia arrematar o contrato dos gados e carregações que vinham do sertão do Rio São Francisco para o abastecimento da região mineradora. Quem oferecesse a maior quantia em dinheiro à Coroa portuguesa pelo contrato seria o contratador, com o direito de se apropriar dos impostos que pagavam tais mercadorias ao entrarem na Capitania. Porém, chegou ao conhecimento do governador que Manuel Nunes Viana estaria se utilizando de violência e intimidação para impedir que outras pessoas se lançassem com ele na disputa pelo contrato. Diante disso, o governador mudou a praça da arrematação da Vila de Sabará para a Vila de Nossa Senhora do Carmo (hoje, cidade de Mariana), onde havia instalado a sede do governo e sua residência. Acreditava o Conde que, com a sua presença, desapareceriam os temores que o fazendeiro queria inspirar.
Manuel Nunes Viana ficou sem o contrato, mas para se vingar, voltou para a Barra do Rio das Velhas (região onde o Rio São Francisco se encontra com o Rio das Velhas), onde tinha suas fazendas, e mandou publicar uma ordem para que nenhum fazendeiro da região recebesse gado vindo do norte e nordeste nas suas terras, onde era costume andar alguns meses engordando antes de ser introduzido nas Minas. [Como era rico e influente naquela região, Manuel Nunes Viana não teve dificuldades em se tornar líder de um amplo movimento rebelde cujo objetivo principal, ao que tudo indica, era mostrar ao governador da Capitania que quem ditaria as regras naqueles sertões distantes não seriam os representantes da Coroa portuguesa].
Em cartas enviadas ao Conde de Vimieiro, governador da Bahia, e ao ouvidor geral da Comarca do Rio das Velhas, entre 1717 e 1719, o Conde de Assumar pedia socorro, pois parecia não ter condições de colocar fim ao movimento liderado por Viana, sendo “este o maior mal que se experimenta neste governo, por falta de tropas com que reprimir essas insolências”. Em uma carta ao Conde de Vimieiro, datada de 1718, Assumar referia-se à vulnerabilidade do poder na região das Minas diante do perigo de uma revolta popular causada pela falta de carne, porque “este governo não tem meio nenhum com que reprimir um levantamento do povo, que daqui por diante será inevitável se Manuel Nunes puser aqui, como pode e como intenta, em sítio de gados”. Conclui-se, pelas palavras do governador, que Manuel Nunes Viana tentava “sublevar este governo”, pois “faltando os gados nestas Minas, certamente entrarão os povos em desesperação”.
Em uma carta de 12 de dezembro de 1718, enviada ao ouvidor geral da Comarca do Rio das Velhas, o governador ressaltava a importância de se prender o fazendeiro amotinador, pois se ele escapasse “tenho aviso que [com] o que quer fazer é quase infalível a perdição deste governo, porque então nos há de querer sitiar por fome”.
Em 1719, após várias cartas e inúmeras tentativas malogradas de prender Manuel Nunes Viana, caíram de repente as Minas em profunda paz. Não há, na documentação analisada, informações precisas sobre como se deu o fim do movimento no sertão, nem qualquer indício de que tenham ocorrido nos centros mineradores revoltas contra o governo relacionadas à falta de carne entre 1717 e 1719. Mas é certo que durante toda a primeira metade do século XVIII, a região das Minas viveu sob a ameaça constante da crise de subsistência e do motim da fome. Como provas dessa ameaça, existem inúmeros documentos do governo e das câmaras em que é clara a preocupação das autoridades com os aumentos abusivos de preços dos alimentos e com qualquer movimentação popular contra a carestia que pudesse ser vista como “princípio de motim”. Como exemplo, há o movimento que ocorreu na vila de São João Del Rei em 1722 contra o aumento do preço da cachaça, exigindo do governador da Capitania de Minas Gerais na época, D. Lourenço de Almeida, extensa negociação para evitar que a inquietação dos moradores explodisse em violência coletiva de difícil controle.
O fato é que, em Minas Gerais, esse tipo de ameaça levou o governo da Capitania e as câmaras localizadas nas vilas a empreenderem uma política de controle da comercialização de alimentos e de estímulo à produção interna de gêneros de primeira necessidade.
Nas Minas do século XVIII, a população que ameaçava amotinar-se em épocas de carestias visava à manutenção de um acordo estabelecido entre as autoridades portuguesas e os colonos, o qual obrigava o governo da Capitania e as câmaras (verdadeiras “prefeituras” coloniais) a garantirem um fluxo regular e estável de alimentos para os centros urbanos, em troca do sossego da população.
Segundo a historiadora Carla Anastasia, em seu livro Vassalos rebeldes: violência coletiva nas Minas na primeira metade do século XVIII (Belo Horizonte: C/Arte, 1998), esse tipo de negociação marcou as relações entre colonos e autoridades em toda a América portuguesa. Segundo essa autora, as revoltas ocorridas no Brasil colonial durante a primeira metade do século XVIII derivaram do “descumprimento de acordos que geravam expectativas de procedimentos justos por parte da Coroa e em sintonia com os privilégios pessoais internalizados pela população”.
Em 1720, uma noção bem clara do direito ao alimento encontrava-se já firmemente integrada no domínio das formas de organização e atividade do poder no território mineiro. Prova disso é que, no dia 04 de fevereiro daquele ano, o Conde de Assumar, em carta ao ouvidor geral da Comarca do Rio das Velhas, referia-se à necessidade de se prover a Vila de Pitangui com roças de mantimentos, para evitar uma revolta do povo contra as autoridades, pois segundo o Conde, “o ventre é um animal tão feroz que não aguarda medidas nenhumas quando lhe falta o necessário”.
A partir do momento em que a Coroa portuguesa estabeleceu nas Minas os principais centros administrativos, entre 1711 e 1718, até os primeiros anos do século XIX, não ocorreram na Capitania crises de subsistência que levassem a população mineira a se amotinar, como as que atingiram a Bahia e o Rio de Janeiro nos séculos XVII e XVIII. Em Salvador, por exemplo, as autoridades encontravam grande resistência por parte dos senhores de engenho e produtores de tabaco da região para investirem na plantação de mandioca (que servia de alimento à população), o que aliado às secas constantes, ocasionava crises de subsistência e muitos motins da fome. Durante uma grave crise alimentar ocorrida em 1688, a falta de farinha de mandioca nos mercados de Salvador fez com que trezentos soldados da Infantaria (que eram pagos em farinha) se amotinassem. E no Rio de Janeiro, em 1726, a crise alimentar era tão grave que se espalhava rapidamente pelo interior da Capitania, levando a que as câmaras de importantes centros produtores de farinha, como Cabo Frio, Campos e Ilha Grande, negassem o envio de alimentos para a cidade do Rio de Janeiro, o que gerou descontentamento e motins na sede da Capitania.
Na capitania mineira, os aumentos de preços dos alimentos foram freqüentes na primeira metade do século XVIII, mas em nenhum momento a situação de perigo durou tempo suficiente para que a inquietação dos mineiros se transformasse em revoltas de difícil controle. A explicação para isso está na ação das autoridades coloniais que, buscando preservar a estrutura administrativa e fiscal estabelecida nas Minas, preocuparam-se com a organização do comércio de alimentos e com a produção interna dos principais gêneros de subsistência.
Visando à quietação do povo, as autoridades locais de Vila Rica (hoje, cidade de Ouro Preto), por exemplo, exigiam que os “carniceiros” vendessem carne nos lugares em que o povo pedisse; que cortassem o gado em locais que fossem visíveis, “pela desconfiança que possa haver do povo de que a carne não seja de boi”; que os comerciantes de gado comparecessem nas reuniões com os oficiais da Câmara para “averiguação e bem comum do povo desta vila”; que os lavradores não vendessem farinha mal torrada ou mal peneirada, “com muita canjica”; que ninguém atravessasse mantimentos para revender por maior preço; e que ninguém pesasse ou mandasse pesar mantimentos com pesos de pedra.
Paralelamente a essa política de controle do pequeno comércio nas vilas e arraiais mineiros, foi preciso também dar início a uma política de aquecimento da produção interna de alimentos, através da concessão, pelo governo, de títulos de propriedade de terras (cartas de sesmaria), que teve como principal objetivo aumentar a oferta de gêneros de primeira necessidade no mercado.
Nas Minas do século XVIII, o que determinou a política de sesmarias, iniciada logo com a chegada do primeiro governador, Antônio de Albuquerque Coelho e Carvalho, naquela região, em 1711, foi, certamente, a situação de fome que parecia não dar trégua aos primeiros povoadores. Embora o rápido crescimento populacional exigisse que as autoridades empreendessem uma política de concessão de terras para povoar o interior e fixar uma população que errava pelo território mineiro, a maior preocupação das autoridades era com a subsistência do povo, que nos primeiros anos das Minas chegou a desaparecer de determinadas localidades devido à falta de alimentos.
Nesse sentido, a carta de sesmaria era um estímulo à produção porque legitimava a posse da terra. Quem a recebia passava a ser proprietário de um sítio ou fazenda com limites definidos, podendo até mesmo, posteriormente, vender sua propriedade no mercado.
Com a concessão de cartas de sesmaria, as autoridades buscavam também povoar os caminhos para as Minas, de forma que os passageiros encontrassem neles roças e ranchos localizados em pontos estratégicos, o que facilitava a circulação de pessoas e mercadorias. Além disso, estando habitados os caminhos, os riscos de ataques de escravos fugidos, índios e salteadores eram menores, o que também ajudava a garantir maior previsibilidade para o abastecimento. Em 1711, por exemplo, o governador Antônio de Albuquerque recebeu instruções do próprio rei para que continuasse concedendo cartas de sesmaria aos moradores do Caminho Novo, que ligava as Minas ao Rio de Janeiro, por ser muito conveniente, “assim para haver mais povoadores no dito caminho, como por haverem nele mantimentos bastantes de que são falta”.
A construção e a manutenção das vias de comunicação também faziam parte da política de abastecimento do governo e das câmaras. Vila Rica, em especial, necessitava de uma infra-estrutura de comunicações que garantisse a conexão não só com as roças das redondezas, mas também com os núcleos produtivos localizados em regiões mais afastadas do centro urbano. Em 29 de janeiro de 1714, por exemplo, os oficiais da Câmara de Vila Rica decidiram mandar um funcionário partir em diligência para consertar os caminhos e pontes que se encontravam fora do termo da vila, “para mais prontamente se poderem conduzir os mantimentos para esta vila e seguirem-se utilidades aos povos e moradores dela”.
Preocupadas com a possibilidade de ocorrerem motins em razão do desabastecimento nas Minas, as autoridades coloniais, durante o século XVIII, estimularam a produção interna de alimentos e fiscalizaram o seu comércio; tentaram garantir a conservação das vias de comunicação que ligavam as unidades produtivas aos mercados consumidores; e diante de qualquer ameaça de revolta, negociaram a paz, seguindo o conselho do nobre português Antônio Rodrigues da Costa, conselheiro do rei para assuntos de ultramar, para quem, em um documento de 1712, motins e rebeliões “são os princípios por onde caminham as monarquias para a sua ruína”.
Adaptado de SILVA, Flávio Marcus da. Subsistência e Poder: a política do abastecimento alimentar nas Minas setecentistas. Belo Horizonte: Editora ufmg, 2008, 294 p.