segunda-feira, 23 de maio de 2016

Almoço nu


"Encarou-me através da ectoplásmica e hesitante carne terapêutica... quando você larga a droga, quinze quilos materializam-se no espaço de um mês... uma substância macia, pastosa e rosada que cede à primeira carícia silenciosa da junk... Vi isso acontecer... quase cinco quilos perdidos em dez minutos... de pé, segurando a seringa com uma das mãos... segurando as calças com a outra."

William S. Burroughs (1914-1997). Almoço nu (1959). São Paulo: Companhia das Letras, 2016. p. 258

O ciclo da morfina

"O sistema nervoso vegetativo se expande e se contrai em resposta a ritmos viscerais e estímulos externos. Expande-se quando recebe estímulos reconhecidos como prazerosos – sexo, comida, contatos sociais agradáveis etc. – e se contrai em resposta a dor, ansiedade, medo, desconforto e tédio. A morfina altera todo esse ciclo de expansão e contração, liberação e tensão. A função sexual é desativada, os movimentos peristálticos são inibidos, as pupilas param de se retrair em resposta à luz e à escuridão. O organismo não se contrai por causa da dor nem se expande por conta de fontes normais de prazer. Ele se ajusta ao ciclo da morfina. O dependente é imune ao tédio. Consegue passar horas encarando o próprio sapato ou simplesmente deitado na cama. Não precisa de sexo, contatos sociais, trabalho, diversão ou exercício, apenas de morfina."

William S. Burroughs (1914-1997). Almoço nu (1959). São Paulo: Companhia das Letras, 2016. p. 287-8

A Doença


"A Doença é a dependência de drogas, e por quinze anos fui um dependente. Quando falo em dependência, estou dizendo que era viciado em junk (um termo genérico para o ópio e/ou seus derivados, incluindo todos os sintéticos, de Demerol a Palfium). Usei diversos tipos de junk: morfina, heroína, Dilaudid, cucodal, Pantopon, Diocodid, Diosane, ópio, Demerol, Dolofina e Palfium. Fumei junk, comi junk, cheirei junk, apliquei junk na veia, na pele, no músculo, enfiei supositórios de junk no reto. A agulha não importa. Tanto faz se você cheira, fuma, come ou enfia no cu, pois o resultado é sempre o mesmo: dependência. [...]

O mundo da junk é moldado em posse e monopólio. O dependente permanece imóvel enquanto é levado por suas pernas de viciado até mais uma recaída na junk. O envolvimento com junk é perfeito e quantitativamente mensurável. Quanto mais junk você usa, menos você tem, e quanto mais você tem, mais você usa. [...]

Junk é o produto ideal... a mercadoria suprema. O vendedor não precisa de lábia. O cliente se arrasta pelo meio do esgoto implorando uma chance de comprar... O vendedor de junk não vende seu produto ao consumidor; vende o consumidor ao seu produto. Não melhora nem otimiza sua mercadoria. Piora a qualidade da mercadoria e otimiza o cliente. Paga seus funcionários em junk."

William S. Burroughs (1914-1997). Almoço nu (1959). São Paulo: Companhia das Letras, 2016. p. 263;265

Tempo da junk

"Nick pontuava seu discurso com uma risadinha zombeteira. Era uma espécie de desculpa por fazer uso da fala no mundo telepático dos dependentes, onde somente o fator quantidade – Quanto dinheiro? Quanta junk? – requer expressão verbal. Nós dois sabíamos tudo a respeito da espera. O ramo das drogas, em qualquer nível, opera sem horários. Ninguém entrega alguma coisa na hora combinada, exceto por acidente. O dependente funciona no tempo da junk. Seu corpo é seu relógio, e a junk escorre por dentro dele como em uma ampulheta. Para o viciado, o tempo só significa alguma coisa quando está relacionado com a necessidade. É quando o dependente realiza sua intrusão abrupta no tempo alheio, e como todos os Intrusos, todos os Suplicantes, deve esperar, a menos que consiga coincidir com o tempo extrínseco à junk."

William S. Burroughs (1914-1997). Almoço nu (1959). São Paulo: Companhia das Letras, 2016. p. 239-40

Americanos


"Reclinei-me no assento, deixando a mente livre para funcionar em seu próprio ritmo. Se a mente é forçada em excesso, começa a dar problemas como um painel de controle sobrecarregado, isso quando não resolve partir para a sabotagem... E eu não tinha nenhuma margem para erro. Americanos morrem de medo de abrir mão do controle, de deixar as coisas acontecerem por si sós, sem interferência alguma. Se fosse possível, entrariam dentro do próprio estômago para digerir a comida e depois enfiar a merda para fora usando pás."

William S. Burroughs (1914-1997). Almoço nu (1959). São Paulo: Companhia das Letras, 2016. p. 239

Histéricos

"Mergulham de cabeça nos negócios. Realizam serviços inomináveis para um agente de marinha mercante grego e paralítico e para toda uma equipe de inspetores alfandegários. Os dois sócios terminam por se desentender e denunciam um ao outro à Embaixada, que os manda procurar a Repartição Para Assuntos Que Não Nos Interessam Nem Um Pouco e os expulsa por uma porta dos fundos que dá para um terreno baldio coberto de merda, onde abutres disputam cabeças de peixe. Histéricos, trocam socos."

William S. Burroughs (1914-1997). Almoço nu (1959). São Paulo: Companhia das Letras, 2016. p. 200

quarta-feira, 11 de maio de 2016

Poder

"Cedo eu descobri que o que eu mais queria na vida era o poder. O poder estar sempre com as pessoas que eu amo, o poder andar despreocupado pelas ruas, apreciar cenários, paisagens, bichos, gente que passa. O poder tomar outro caminho só porque naquela direção um verde me despertou a curiosidade. O poder trabalhar no que me alegra. O poder ser dono do meu tempo e fazer o que quiser sem precisar me aposentar. O poder estar sempre disponível para quem está perto e precisa. O poder ter certeza de que o abraço recebido é de afeto e não de interesse. O poder ser eu mesmo e envelhecer saudável. Céus, como ambiciono todo esse poder!"

Francisco Azevedo. O arroz de Palma, p. 235.

Stay alive

"He didn't know what to do, he didn't know how to live. Each new thing he encountered in life impelled him in a direction that fully convinced him of its rightness, but then the next new thing loomed up and impelled him in the opposite direction, which also felt right. There was no controlling narrative: he seemed to himself a purely reactive pinball in a game whose only object was to stay alive for staying alive's sake."

Jonathan Franzen (1959-). Freedom (2010). New York: Picador, 2010. p. 400

Destroçado


"Bem, os policiais têm minha colher e meu conta-gotas e sei que estão prestes a captar minha frequência graças à ajuda de um informante cego chamado Willy Discoidal. Willy possui uma boca em formato de disco, redonda e cercada de pelos negros, sensíveis e eriçados. Ficou cego quando aplicou uma injeção no próprio globo ocular, seu nariz e seu céu da boca foram carcomidos de tanto cheirar heroína, e seu corpo tornou-se uma maçaroca de cascas de ferida duras e ressecadas como madeira. Agora só lhe resta comer a droga usando aquela boca, às vezes projetando um comprido tubo ectoplasmático que oscila em busca da silenciosa frequência da junk."

William S. Burroughs (1914-1997). Almoço nu (1959). São Paulo: Companhia das Letras, 2016. p. 15-16

Delírio

"Naquele mundo de escuridão total, a boca e os olhos formam um único órgão, capaz de projetar-se para morder com seus dentes transparentes... mas nenhum órgão tem função ou posição constantes... órgãos sexuais brotam por toda a parte... retos escancaram-se, defecam e fecham-se novamente... o organismo inteiro muda de cor e consistência em ajustes de frações de segundo..."

William S. Burroughs (1914-1997). Almoço nu (1959). São Paulo: Companhia das Letras, 2016. p. 18

Abomino a brutalidade

"– Abomino a brutalidade – declarou. – É ineficaz. Já os maus-tratos prolongados, quando aplicados de forma adequada e sem chegar às raias da violência física, geram ansiedade e um sentimento de culpa muito peculiar. Algumas regras, ou melhor, diretrizes, fazem-se necessárias. O espécime não deve perceber que os maus-tratos configuram um ataque deliberado à sua identidade pessoal por parte de um inimigo anti-humano. Devemos proceder de maneira tal que ele passe a se considerar merecedor de qualquer tratamento que vier a receber, porque sente que existe algo (nunca especificado) de terrivelmente errado com sua pessoa."

William S. Burroughs (1914-1997). Almoço nu (1959). São Paulo: Companhia das Letras, 2016. p. 31-2

Estou sem gás

"No Reino Unido, especialmente em Edimburgo, alguns cidadãos costumam borbulhar gás de carvão em porções de Klim – uma forma horrenda de leite em pó, com gosto de giz mofado – para se drogar com a substância resultante. Empenham tudo o que possuem para pagar a conta do gás, e quando alguém chega para efetuar o corte por falta de pagamento, é possível escutar seus gritos a quilômetros de distância. Quando um cidadão está passando mal de tanta fissura, diz 'Estou sem gás' ou 'Estou carregando o fogão nas costas'."

William S. Burroughs (1914-1997). Almoço nu (1959). São Paulo: Companhia das Letras, 2016. p. 40

Médico de bordo


"– Pois bem, Juanito comandava uma frota de cargueiros que registrara sob bandeira abissínia para evitar restrições incômodas. Empregou-me como médico de bordo do S. S. Filariasis, que talvez tenha sido a embarcação mais imunda a ter singrado os mares. Eu operava com uma das mãos enquanto usava a outra para tirar os ratos de cima do paciente, enquanto percevejos e escorpiões choviam do teto."

William S. Burroughs (1914-1997). Almoço nu (1959). São Paulo: Companhia das Letras, 2016. p. 42

Educar para a felicidade

"Nietzsche, que via sua missão como a de um educador, se horrorizava diante daquilo que as escolas faziam com a juventude: 'O que elas realizam', ele dizia, 'é um treinamento brutal, com o propósito de preparar vastos números de jovens, no menor espaço e tempo possível, para se tornarem usáveis e abusáveis, a serviço do governo'. Se ele vivesse hoje certamente faria uma pequena modificação na sua última afirmação. Em vez de 'usáveis a serviço do governo', diria 'usáveis e abusáveis a serviço da economia'.

À medida que vou envelhecendo tenho cada vez mais dó deles, das crianças e dos jovens. Porque gostaria que a educação fosse diferente. Vejam bem: não estou lamentando a falta de recursos econômicos para a educação. Não estou me queixando da indigência quase absoluta de nossas escolas.

Se tivéssemos abundância de recursos, é bem possível que acabássemos como o Japão, e nossas escolas se transformassem em máquinas para a produção de formigas disciplinadas e trabalhadoras.

Não creio que a excelência funcional do formigueiro seja uma utopia desejável. Não existe evidência alguma de que homens-formiga, notáveis pela sua capacidade de produzir, sejam mais felizes. Parece que o objetivo de produzir cada vez mais, adequado aos interesses de crescimento econômico, não é suficiente para dar um sentido à vida humana. É significativo que o Japão seja hoje um dos países com a mais alta taxa de suicídios no mundo, inclusive o suicídio de crianças."

Rubem Alves (1933-2014). A alegria de ensinar. Campinas: Papirus, 2000. p. 23-4

Antas

"Escondidos em meio à vegetação da floresta, observávamos a anta que bebia à beira da lagoa. Suas costas estavam feridas, fundos cortes onde o sangue ainda se via. O guia explicou. 'A anta é um animal apetitoso, presa fácil das onças. E sem defesas. Contra a onça ela só dispõe de uma arma: estabelece uma trilha pela floresta, e dela não se afasta. Este caminho passa por baixo de um galho de árvore, rente às suas costas. Quando a onça ataca e crava dentes e garras no seu lombo, ela sai em desabalada corrida por sua trilha. Seu corpo passa por baixo do galho. Mas não a onça, que recebe uma paulada. E assim, a anta tem uma chance de fugir.'

Acho que a educação frequentemente cria antas: pessoas que não se atrevem a sair das trilhas aprendidas, por medo da onça. De suas trilhas sabem tudo, os mínimos detalhes, especialistas. Mas o resto da floresta permanece desconhecido."

Rubem Alves (1933-2014). A alegria de ensinar. Campinas: Papirus, 2000. p. 31

Cirurgia

"Algum de vocês assistiu a alguma apresentação do dr. Tetrazzini? Falo em 'apresentação' porque suas cirurgias eram nada menos que espetáculos. Começava arremessando um bisturi que varava a sala até cravar-se no paciente. Em seguida, fazia sua entrada com passos de balé. Sua velocidade era incrível: 'Não dou tempo para que morram', afirmava. Tumores o deixavam possesso. 'Células indisciplinadas de merda', rosnava, avançando sobre o tumor com a determinação de um esgrimista."

William S. Burroughs (1914-1997). Almoço nu (1959). São Paulo: Companhia das Letras, 2016. p. 75

Perigo


"O viciado lida de forma impessoal com seu corpo, que para si não é mais que um instrumento para absorver o meio em que vive... Avalia seus próprios tecidos com as mãos frias de um negociante de cavalos. 'Aqui não adianta injetar.' Olhos de peixe morto pestanejam sobre uma veia destroçada."

William S. Burroughs (1914-1997). Almoço nu (1959). São Paulo: Companhia das Letras, 2016. p. 80-1

Bendita

"Bendita a espécie extinta,
a que voltou ao repouso em sua origem
e não peregrina mais,
benditos todos que no cativeiro,
por ânsia de eternidade multiplicam-se,
bendito o modo como tudo é feito.
Ancestrais, luxuoso nome
para quem apenas errou antes de nós!
Benditos,
bendita a hora da tarde
em que uma serva repousa
descansada de dor e de consolo."


Adélia Prado. A faca no peito (1988). In: Poesia reunida. São Paulo: Arx, 1991, p. 460

Transbordou

"Esta velha angústia,
Esta angústia que trago há séculos em mim,
Transbordou da vasilha,
Em lágrimas, em grandes imaginações,
Em sonhos em estilo de pesadelo sem terror,
Em grandes emoções súbitas sem sentido nenhum.


Transbordou.
Mal sei como conduzir-me na vida
Com este mal-estar a fazer-me pregas na alma!
Se ao menos endoidecesse deveras!
Mas não: é este estar-entre,
Este quase,
Este poder ser que...,
Isto.

Um internado num manicômio é, ao menos, alguém,
Eu sou um internado num manicômio sem manicômio.
Estou doido a frio,
Estou lúcido e louco,
Estou alheio a tudo e igual a todos:
Estou dormindo desperto com sonhos que são loucura
Porque não são sonhos.
Estou assim..."

Fernando Pessoa (1888-1935). In: Poesia. Ed. Teresa Rita Lopes, 2002

A importância das coisas

"Em Roma, o que mais me chamou atenção foi um
prédio que ficava em frente das pombas.
O prédio era de estilo bizantino do século IX.
Colosso!
Mas eu achei as pombas mais importantes do que o
prédio.
Agora, hoje, eu vi um sabiá pousado na Cordilheira
dos Andes.
Achei o sabiá mais importante do que a Cordilheira
dos Andes.
O pessoal falou: seu olhar é distorcido.
Eu, por certo, não saberei medir a importância das
coisas: alguém sabe?"


Manoel de Barros (1916-2014). Poesia Completa. São Paulo: LeYa, 2013. p. 379