sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

La maestra



"Una vez que mi abuela renunció a mandarme a la escuela y las clases con la señorita Pineda se hicieron rutinarias, fui muy feliz. Cada vez que hacía una pregunta, esa magnífica maestra en vez de contestar, me señalaba el camino para encontrar la respuesta. Me enseñó a ordenar el pensamiento, investigar, leer y escuchar, buscar alternativas, resolver viejos problemas con soluciones nuevas, discutir con lógica. Me enseñó, sobre todo, a no creer a ciegas, a dudar y preguntar incluso aquello que parecía verdad irrefutable, como la superioridad del hombre sobre la mujer o de una raza o clase social sobre otra, ideas novedosas en un país patriarcal donde los indios jamás se mencionaban y bastaba descender un escalón en la jerarquía de las clases sociales para desaparecer de la memoria colectiva."

Isabel Allende (1942-). Retrato en sepia (2000). Barcelona: Debolsillo, 2006. p. 186

sábado, 22 de fevereiro de 2014

Notas do subsolo (IV)



"...eu apenas levei às últimas consequências na minha vida aquilo que os senhores não tiveram coragem de levar nem à metade, e ainda por cima acharam que sua covardia era bom-senso, consolando-se e enganando a si próprios com isso."

Fiódor Dostoiévski (1821-1881). Notas do subsolo (1864). Porto Alegre: L&PM, 2012. p. 148

No tiene que ser así



"— Cuando yo tenía tu edad había sólo dos alternativas: casarse o entrar al convento — dijo sor María Escapulario.
— ¿Por qué eligió lo segundo, madre?
— Porque me daba más libertad. Cristo es un esposo tolerante...
— Las mujeres estamos fritas, madre. Tener hijos y obedecer, nada más — suspiró Nívea.
— No tiene que ser así. Tú puedes cambiar las cosas — replicó la monja.
— ¿Yo sola?
— Sola no, hay otras chicas como tú, con dos dedos de frente. Leí en un periódico que ahora hay algunas mujeres que son médicos, imagínate.
— ¿Dónde?
— En Inglaterra.
— Eso está muy lejos.
— Cierto, pero si ellas pueden hacerlo allá, algún día se podrá hacer en Chile. No te desanimes, Nívea."

Isabel Allende (1942-). Retrato en sepia (2000). Barcelona: Debolsillo, 2006. p. 41

Devaneio



"Acordava antes de todos, pois para ir à escola teria que pegar um ônibus e um bonde, o que lhe tomaria uma hora. O que lhe daria uma hora. De devaneio agudo como um crime. O vento da manhã violentando a janela e o rosto até que os lábios ficavam duros, gelados. Então ela sorria. Como se sorrir fosse em si um objetivo."

Clarice Lispector (1920-1977). Laços de família (1960). Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1993. p. 103

Ler ilumina



"Ser um leitor voraz ajuda a ampliar o repertório intelectual e cultural. A literatura também ajuda o profissional a se desenvolver. Pelo menos esse é o resultado de uma pesquisa da The New School for Social Research, dos Estados Unidos, publicada na revista americana Science. Os cientistas fizeram um experimento com voluntários e descobriram que os que tinham acabado de travar contato com livros de ficção de boa qualidade tinham mais facilidade para compreender o ambiente em que estavam inseridos e para ler as entrelinhas das conversas. A explicação para esse resultado é a seguinte: quem lê ficção se conecta às experiências de vida dos vários personagens que encontra nos livros. As histórias fictícias aguçam a capacidade de compreensão, uma habilidade que o leitor leva automaticamente para a vida real. Essa sensibilidade é essencial para trafegar nos relacionamentos profissionais."

Elisa Tozzi, para a revista "Você S/A", janeiro de 2014. pp. 64-68

sábado, 15 de fevereiro de 2014

Notas do subsolo (III)


"— Basta, basta — gritava Zverkov. — Parem, senhores, assim não é possível. É melhor eu lhes contar como há três dias atrás eu quase me casei...

E aí começou uma espécie de narrativa burlesca de como aquele cavalheiro por pouco não se casara três dias atrás. Sobre casamento, aliás, nada foi dito, mas na narrativa passavam de relance generais, coronéis e até alguns jovens fidalgos da corte, entre os quais desfilava Zverkov quase que na posição de líder. As risadas incentivadoras fizeram-se logo ouvir. Ferfítchkin chegava até a ganir.

Todos me abandonaram e fiquei ali esmagado e reduzido a nada."

Fiódor Dostoiévski (1821-1881). Notas do subsolo (1864). Porto Alegre: L&PM, 2012. p. 89

Notas do subsolo (II)


"Eles não entendiam nada da vida real e juro que era isso o que mais me revoltava neles. Ao contrário, a realidade mais evidente, que saltava aos olhos, era percebida por eles de maneira fantasticamente tola, e já naquela época tinham o hábito de curvar-se unicamente ao sucesso pessoal. Todas as coisas justas, mas oprimidas e humilhadas, eram motivo de suas zombarias impiedosas e infames. Eles achavam que ser inteligente era obter um cargo elevado; aos dezesseis anos já discorriam sobre sinecuras."

Fiódor Dostoiévski (1821-1881). Notas do subsolo (1864). Porto Alegre: L&PM, 2012. p. 81

Os tiranos



"Joaquim meu tio foi imperturbável ditador.
Só uma de minhas primas se atreveu a casar-se.
As outras ficaram pra lhe honrar a memória
com azedumes e pequenos delírios.
Produzem crochê e hilaridade contando-se anedotas,
virtude e paciência que desperdiçam
por equivocado orgulho, irado catolicismo.
Em bordados e haveres gastam a amargura recíproca:
o galinheiro é de Alvina,
o canteiro é de Rosa,
o guaraná é de Marta 
na geladeira de Aurora.
Não pisaram na Igreja no casamento da irmã.
Tia Zilá dá sinais de cansaço,
breve estará na Glória.
Não tendo a quem mais servir,
as primas vão brigar empunhando
rosários, agulhas, maçanetas.
Mas se baterem à porta, servirão biscoitos
e a anedota do rato equilibrista, que solicito sempre:
'Um dia papai estava dormindo no quartinho da sala,
acordou com um barulhinho tin-tin, tin-tin-tão...'
Me comovem as primas, os tios emoldurados na parede,
os ratos na batalha campal daquela casa
caçando pra roer os restos
do que, apesar de tudo, foi amor."

Adélia Prado (1935-). Terra de Santa Cruz (1981). In: Poesia reunida. São Paulo: Arx, 1991. p. 259

Queria uma cidade abandonada



"Queria uma cidade abandonada
para achar coisas nas casas, objetos de ferro,
um quadro interessantíssimo na parede, 
esquecidos na pressa.
Mas sem guerra aparente e com a vida tão cara,
quem deixa para trás uma agulha sequer?
Eu acho coisas é no meu sonho,
no rico porão do sonho, 
coisas que não terei."
...

Adélia Prado (1935-). Terra de Santa Cruz (1981). In: Poesia reunida. São Paulo: Arx, 1991. p. 260

coisas inexplicáveis



"Eu sei escrever.
Escrevo cartas, bilhetes, lista de compras,
composição escolar narrando o belo passeio
à fazenda de vovó que nunca existiu
porque ela era pobre como Jó.
Mas escrevo também coisas inexplicáveis:
quero ser feliz, isto é amarelo.
E não consigo, isto é dor."
...

Adélia Prado (1935-). Terra de Santa Cruz (1981). In: Poesia reunida. São Paulo: Arx, 1991. p. 262

Orgulho é coisa infantil



"...orgulho é coisa infantil em que se cai como se cai em gulodice. Só que orgulho tem a enorme desvantagem de ser um erro grave, e, com todo o atraso que o erro dá à vida, faz perder muito tempo."

Clarice Lispector (1920-1977). A descoberta do mundo (crônicas, 1967-1973). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. p. 361

Desfazer-me...


"Desmanchar-me pouco a pouco,
pedra a pedra, palmo a palmo,
para ser sincero e louco.

Desnudar-me peça a peça,
gesto a gesto, corpo a corpo,
para ir ao que interessa.

Descoser-me fibra a fibra,
nervo a nervo, laço a laço,
para ver se a carne vibra.

Desachar-me passo a passo,
braço a braço, porto a porto,
para não sentir cansaço.

Despojar-me dentro e fora,
caso a caso, coisa a coisa,
para estar depois e agora.

Desfazer-me até meu feto,
lance a lance, porre a porre,
para nunca estar completo."

Leonardo Fróes (1941-). Vertigens (Obra reunida, 1968-1998). Rio de Janeiro: Rocco, 1998. p. 45-6

Vertigens



"Mulheres muitas carregando pesados
papéis e leves grampeadores passam
com ar febril dos mais atarefados.
Soldados
perfilam-se nos corredores.
Senhores
entram apoiados em negras
malinhas trepidantes e paletós quadrados.
A secretária atura desaforos e cala. O boy
espreme espinhas pela sala, com sono.
Há uma pilha de pastas em cada mesa.
Em cada coração, um vazio.
A hora do café no copinho
de plástico é a salvação da lavoura."

Leonardo Fróes (1941-). Vertigens (Obra reunida, 1968-1998). Rio de Janeiro: Rocco, 1998. p. 274

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

Não te aflijas com a pétala que voa


"Não te aflijas com a pétala que voa:
também é ser, deixar de ser assim.
...
Eu deixo aroma até nos meus espinhos,
ao longe, o vento vai falando em mim.

E por perder-me é que me vão lembrando,
por desfolhar-me é que não tenho fim."

Cecília Meireles (1901-1964). Melhores poemas. 12ª ed. São Paulo: Global, 2000. p. 78.

Sede assim


"Sede assim – qualquer coisa
serena, isenta, fiel.

Flor que se cumpre,
sem pergunta.

Onda que se esforça,
por exercício desinteressado.

Lua que envolve igualmente
os noivos abraçados
e os soldados já frios.

Também como este ar da noite:
sussurrante de silêncios,
cheio de nascimentos e pétalas.

Igual à pedra detida,
sustentando seu demorado destino.
E à nuvem, leve e bela,
vivendo de nunca chegar a ser.

À cigarra, queimando-se em música,
ao camelo que mastiga sua longa solidão,
ao pássaro que procura o fim do mundo,
ao boi que vai com inocência para a morte.

Sede assim qualquer coisa
serena, isenta, fiel.

Não como o resto dos homens."

Cecília Meireles (1901-1964). Melhores poemas. 12ª ed. São Paulo: Global, 2000. p. 63-4

Eu não estava presente

"Não acuso. Nem perdôo.
Nada sei. De nada.
Contemplo.

Quando os homens apareceram,
eu não estava presente.
Eu não estava presente,
quando a terra se desprendeu do sol.
Eu não estava presente,
quando o sol apareceu no céu.
E, antes de haver o céu,
EU NÃO ESTAVA PRESENTE.

Como hei de acusar ou perdoar?
Nada sei.
Contemplo."
...

Cecília Meireles (1901-1964). Melhores poemas. 12ª ed. São Paulo: Global, 2000. p. 59

Viver



"Era um viver que eu não pagara de antemão com o sofrimento da espera, fome que nasce quando a boca já está perto da comida. Porque agora estávamos com fome, fome inteira que abrigava o todo e as migalhas."

Clarice Lispector (1920-1977). A descoberta do mundo (crônicas, 1967-1973). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. p. 308

Foto: Clarice e um de seus filhos

Paisagem com pássaros amarelos



"Se eu me demorar demais olhando 'Paysage avec des oiseaux jaunes' ('Paisagem com pássaros amarelos', de Klee), nunca mais poderei voltar atrás. Coragem e covardia são um jogo que se joga a cada instante. Assusta a visão talvez irremediável e que talvez seja a da liberdade. O hábito que temos de olhar através das grades da prisão, o conforto que traz segurar com as duas mãos as barras frias de ferro. A covardia nos mata. Pois há aqueles para os quais a prisão é a segurança, as barras um apoio para as mãos. Então reconheço que conheço poucos homens livres."

Clarice Lispector (1920-1977). A descoberta do mundo (crônicas, 1967-1973). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. p. 297

Imagem: "Paysage avec des oiseaux jaunes" (1923), de Paul Klee (1879-1940)

manhã


"Não aprofundes o teu tédio.
Não te entregues à mágoa vã.
O próprio tempo é o bom remédio:
Bebe a delícia da manhã."

Manuel Bandeira (1886-1968). Estrela da vida inteira. Rio de Janeiro: José Olympio, 1970. p. 19

Foto: Manuel Bandeira e Cecília Meireles

A doce tarde morre



"A doce tarde morre. E tão mansa
Ela esmorece,
Tão lentamente no céu de prece,
Que assim parece, toda repouso,
Como um suspiro de extinto gozo
De uma profunda, longa esperança
Que, enfim cumprida, morre, descansa...

E enquanto a mansa tarde agoniza,
Por entre a névoa fria do mar
Toda a minh'alma foge na brisa:
Tenho vontade de me matar!

Oh, ter vontade de se matar...
Bem sei é cousa que não se diz.
Que mais a vida me pode dar?
Sou tão feliz!

– Vem, noite mansa..."

Manuel Bandeira (1886-1968). Estrela da vida inteira. Rio de Janeiro: José Olympio, 1970. p. 83

O pássaro


"Não tenteis interromper o pássaro que voa em linha reta
de leste a oeste. Alto e só.

Não lhe pergunteis se avista cidades, mares, pessoas
ou se tudo é um liso deserto. Vasto e só.

Ele não passa para contemplar essas coisas do mundo.
Ele vem de leste, ele vai para oeste. Alto e só.

Ele vai com sua música dentro dos olhos fechados.
Quando chegar ao fim, abrirá os olhos e cantará sua música.
Vasta e só." (1964)

Cecília Meireles (1901-1964). Melhores poemas. 12ª ed. São Paulo: Global, 2000. p. 179

Sei que canto


"Eu canto porque o instante existe
e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste:
sou poeta.

Irmão das coisas fugidias,
não sinto gozo nem tormento.
Atravesso noites e dias
no vento.

Se desmorono ou se edifico,
se permaneço ou me desfaço,
– não sei, não sei. Não sei se fico
ou passo.

Sei que canto. E a canção é tudo.
Tem sangue eterno a asa ritmada.
E um dia sei que estarei mudo:
– mais nada."

Cecília Meireles (1901-1964). Melhores poemas. 12ª ed. São Paulo: Global, 2000. p. 11

Dois e dois



"Mas dois e dois são quatro é, de qualquer modo, uma coisa extremamente insuportável. Dois e dois são quatro, na minha opinião, é pura insolência. Dois e dois são quatro olha para você com ar petulante, fica no meio do seu caminho com as mãos na cintura e cospe pro lado. Concordo que dois e dois são quatro é uma coisa excelente; porém, se é para elogiar tudo, então dois e dois são cinco às vezes é também uma coisinha bem encantadora."

Fiódor Dostoiévski (1821-1881). Notas do subsolo (1864). Porto Alegre: L&PM, 2012. p. 45

Notas do subsolo



"Não aceitarei como triunfo de meus desejos um grande edifício com apartamentos para moradores pobres com contrato por mil anos e, para qualquer eventualidade, com a placa do dentista Wagenheim na entrada. Destruam meus desejos, apaguem meus ideais, mostrem-me alguma coisa melhor, e serei seu seguidor. Talvez os senhores digam que não vale a pena meter-se comigo; nesse caso, posso responder-lhes da mesma forma. Estamos argumentando seriamente, mas, se não quiserem conceder-me sua atenção, não hei de me humilhar. Tenho meu subsolo. (...)

E, ademais, saibam de uma coisa: estou convencido de que é preciso manter esses tipos do subsolo à rédea curta. Embora eles possam passar quarenta anos calados no subsolo, se conseguem sair para a claridade, ficam falando, falando, falando..."

Fiódor Dostoiévski (1821-1881). Notas do subsolo (1864). Porto Alegre: L&PM, 2012. p. 47-8

Foto: São Petersburgo

O edifício de cristal



"Os senhores acreditam no edifício de cristal, para sempre indestrutível, ou seja, acreditam num edifício ao qual ninguém poderá mostrar a língua mesmo às escondidas, nem fazer-lhe uma figa com a mão no bolso. Bom, eu tenho medo desse edifício, talvez porque ele seja de cristal e indestrutível através dos séculos e porque não será possível mostrar-lhe a língua nem às escondidas."

Fiódor Dostoiévski (1821-1881). Notas do subsolo (1864). Porto Alegre: L&PM, 2012. p. 46

Na taverna



"Uma noite, ao passar diante de uma pequena taverna, vi pela janela iluminada uns senhores brigando perto do bilhar, batendo-se com os tacos, e depois vi um deles ser atirado pela janela. Se fosse em outra hora, teria sentido asco, mas estava num momento tal, que comecei a invejar o senhor que foi atirado pela janela, a tal ponto que entrei na taverna, na sala de bilhar. 'Quem sabe não me envolvo numa briga e também me atiram pela janela?'.

Não estava bêbado, mas os senhores querem o quê? A angústia pode levar a esse grau de histeria! Mas não deu em nada. Resultou que eu não era capaz nem de pular pela janela, e fui embora sem ter brigado."

Fiódor Dostoiévski (1821-1881). Notas do subsolo (1864). Porto Alegre: L&PM, 2012. p. 60

Na avenida Névski



"Às vezes, nos feriados, eu costumava ir para a Avenida Névski depois das três horas e ficava passeando no lado ensolarado. Melhor dizendo, eu não fazia propriamente um passeio, e sim sofria inúmeras torturas, humilhações e derrames de bile, mas talvez fosse disso que eu precisasse. Da maneira mais abominável, eu serpenteava como uma enguia entre os transeuntes, cedendo constantemente a passagem ora a generais, ora a oficiais da cavalaria ou dos hussardos, ora às senhoras; nesses instantes, eu sentia dores agudas no coração e um calor nas costas quando me lembrava da miséria de minha vestimenta e da insignificância e vulgaridade de minha serpenteante figurinha. Aquilo era um verdadeiro suplício, uma humilhação constante e insuportável, proveniente da ideia, que se tornava uma sensação insistente e concreta, de que eu era uma mosca no meio de toda aquela gente, uma reles mosca desnecessária — mais inteligente, mais culta e mais nobre do que todos eles, evidentemente —, porém, uma mosca que cede sempre diante de todos, que todos humilham e ofendem. Para que eu buscava tal sofrimento, por que eu ia à avenida Névski? Não sei dizer, mas alguma coisa simplesmente me arrastava para lá a cada oportunidade."

Fiódor Dostoiévski (1821-1881). Notas do subsolo (1864). Porto Alegre: L&PM, 2012. p. 64

Foto: Avenida Névski, São Petersburgo (século XIX)

Andar


"Alta noite, lua quieta,
muros frios, praia rasa.

Andar, andar, que um poeta
não necessita de casa.

Acaba-se a última porta.
O resto é o chão do abandono.

Um poeta, na noite morta,
não necessita de sono.

Andar... Perder o seu passo
na noite, também perdida.

Um poeta, à mercê do espaço,
nem necessita de vida.

Andar... — enquanto consente
Deus que seja a noite andada.

Porque o poeta, indiferente,
anda por andar — somente.
Não necessita de nada."

Cecília Meireles (1901-1964). Melhores poemas. 12ª ed. São Paulo: Global, 2000. p. 39

Morada terrestre



"Habito um castelo de cartas,
Uma casa de areia, um edifício no ar,
E passo os minutos esperando
O desmoronamento do muro, a chegada do raio,
O correio celeste com a última notícia,
A sentença que voa numa vespa,
A ordem como um látego de sangue
Dispersando ao vento uma cinza de anjos.
Então perderei minha morada terrestre
E me encontrarei nu novamente.
Os peixes, os astros,
Remontarão o curso de seus céus inversos.
Tudo o que é cor, pássaro ou nome,
Volverá a ser apenas um punhado de noite, 
E sobre os despojos de cifras e plumas
E o corpo do amor, feito de fruta e música,
Baixará por fim, como o sonho ou a sombra,
O pó sem memória."

Jorge Carrera Andrade (poeta equatoriano, 1903-1978). Morada terrestre. Tradução: Manuel Bandeira. In: Manuel Bandeira. Estrela da vida inteira. Rio de Janeiro: José Olympio, 1970. p. 417

Outrora e hoje



"Meu dia outrora principiava alegre;
No entanto à noite eu chorava. Hoje, mais velho, 
Nascem-me em dúvida os dias, mas
Findam sagrada, serenamente."

Friedrich Hölderlin (poeta alemão, 1770-1843). Outrora e hoje. Tradução: Manuel Bandeira. In: Manuel Bandeira. Estrela da vida inteira. Rio de Janeiro: José Olympio, 1970. p. 444

domingo, 2 de fevereiro de 2014

O poder não é uma cura



"A essa altura já há muitas pessoas temendo por seus empregos, há muitas pessoas comprando carros, aparelhos de tevê, casas, créditos estudantis. Crédito e propriedade e um trabalho de oito horas são grandes amigos do Establishment. Se vocês precisam comprar coisas, usem apenas dinheiro, e só comprem aquilo que tenha real valor — nada de bugigangas ou engenhocas. Tudo o que vocês possuem deve caber dentro de uma mala; só então suas mentes poderão estar livres. E antes que vocês enfrentem as tropas nas ruas, DECIDAM e SAIBAM o que estão fazendo, quem colocarão no lugar dos que aí estão e por quê. Slogans românticos não farão o serviço. Tenham um programa definido, com palavras claras, pois se vocês VENCEREM terão uma forma de governar decente e adequada. Pois tenham em mente que em todos os movimentos há oportunistas, gente ávida de poder, lobos sob vestes revolucionárias. São esses os homens que derrubam uma causa. Estou do lado dos que querem um mundo melhor, para minha filha, para mim mesmo, para vocês, mas é preciso ter cuidado. Uma mudança no poder não significa uma cura. Entregar o poder às pessoas não é uma cura. O poder não é uma cura."

Charles Bukowski (1920-1994). Pedaços de um caderno manchado de vinho. Porto Alegre: L&PM, 2013. p. 122

The Outsider



"Logo minha foto estava na capa da The Outsider — a caneca lascada e gasta, e os poemas e cartas dentro. Eu era o novo conceito poético — bem diferente da poesia culta e meticulosa — eu escrevia visceralmente. Alguns odiavam, outros amavam.Eu não estava nem aí. Apenas bebia mais e escrevia mais poemas. Minha máquina de escrever era uma metralhadora e estava carregada."

Charles Bukowski (1920-1994). Pedaços de um caderno manchado de vinho. Porto Alegre: L&PM, 2013. p. 143

Meus companheiros amados


"Meus companheiros amados,
não vos espero nem chamo:
porque vou para outros lados. 
Mas é certo que vos amo. 

Nem sempre os que estão mais perto 
fazem melhor companhia.
Mesmo com sol encoberto,
todos sabem quando é dia."

Cecília Meireles (1901-1964)