domingo, 29 de dezembro de 2013

Eu sei de muito pouco



"Eu sei de muito pouco. Mas tenho a meu favor tudo que não sei e – por ser um campo virgem – está livre de preconceitos. Tudo o que não sei é a minha parte maior e melhor: é a minha largueza. É com ela que eu compreenderia tudo. Tudo o que não sei é que constitui a minha verdade."

Clarice Lispector (1920-1977). A descoberta do mundo (Crônicas, 1967-1973). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. p. 658

Pedaços de um caderno manchado de vinho



"A força animal e a energia dos meus companheiros humanos me assombravam: que um homem pudesse trocar pneus ao longo de um dia inteiro ou dirigir um caminhão de sorvetes ou concorrer a uma vaga no Congresso ou abrir as entranhas de um homem numa mesa cirúrgica ou cometer assassinato, isso estava além da minha compreensão. Não queria nem começar. E continuo não querendo. Cada dia em que eu conseguia escapar desse modo de vida tinha para mim um sabor de vitória. Eu bebia vinho e dormia em parques e passava fome."

Charles Bukowski (1920-1994). Pedaços de um caderno manchado de vinho. Porto Alegre: L&PM, 2013. p. 65

prever o próprio destino



"Talvez quem não conseguisse prever o seu próprio destino fosse por viver ofuscado com o frívolo da vida. A Matilde ponderava. Talvez só não acedesse ao conhecimento lúcido do destino quem passasse na vida como um charlatão, habituando o pensamento a uma superficialidade que falseava os instintos mais genuínos. Seria um modo de desbaratar, uma leviandade a transformar a fortuna de viver numa participação cínica ou anestesiada na criação."

Valter Hugo Mãe (1971-). O filho de mil homens. São Paulo: Cosac Naify, 2013, p. 163-4

Poesia



"Nossos dias nas cadeias e nos manicômios e nos albergues fazem com que possamos saber melhor onde nasce o sol do que qualquer conhecimento prático de Shakespeare, Keats, Shelley... Fomos contratados e demitidos, pedimos demissão, levamos tiros e apanhamos; fomos arrastados enquanto estávamos bêbados; cuspiram em nós porque não jogamos de acordo com a história deles e porque esperávamos por um momento em nossos cubículos com uma máquina de escrever ou até mesmo sem ela, apenas o papel de nossas peles, claro, e o que havia por baixo, e assim, é claro, quando sentávamos para escrever - espancados e combalidos mas sobreviventes - não escrevíamos com exatidão, como uma poesia pensada deveria ser escrita ou como se qualquer pensamento devesse ser escrito. Não cabíamos, é claro, na forma agradável e entorpecida de suas mortes. Não há nada que provoque maior ódio nos mortos do que ver algo vivo."

Charles Bukowski (1920-1994). Pedaços de um caderno manchado de vinho. Porto Alegre: L&PM, 2013. p. 78-9

Direito ao delírio


"Que tal se delirarmos um pouquinho? Que tal se fixarmos nossos olhos mais além da infâmia para imaginar outro mundo possível? O ar estará limpo de todo veneno que não venha dos medos humanos e das humanas paixões. Nas ruas, os carros serão esmagados pelos cães. As pessoas não serão dirigidas pelos carros, nem serão programadas pelo computador, nem serão compradas pelos supermercados, nem assistidas pela TV. A TV deixará de ser o membro mais importante da família e será tratada como o ferro de passar ou a máquina de lavar roupa. Será incorporado aos códigos penais o delito de estupidez, para aqueles que o cometem vivendo para ter ou para ganhar ao invés de viver por viver simplesmente, assim como canta o pássaro sem saber que canta e brinca a criança sem saber que brinca. Em nenhum país irão prender os rapazes que se recusem a cumprir o serviço militar. Ninguém viverá para trabalhar, mas todos nós trabalharemos para viver. Os economistas não chamarão mais de nível de vida o nível de consumo, nem chamarão de qualidade de vida a quantidade de coisas. Os cozinheiros não acreditarão que as lagostas adoram ser fervidas vivas. Os historiadores não acreditarão que os países adoram ser invadidos. Os políticos não acreditarão que os pobres adoram comer promessas. A solenidade deixará de acreditar que é uma virtude, e ninguém, ninguém levará a sério alguém que não seja capaz de tirar sarro de si mesmo. A morte e o dinheiro perderão seus mágicos poderes, e nem por falecimento, nem por fortuna, se tornará o canalha um virtuoso. A comida não será uma mercadoria, nem a comunicação um negócio, porque a comida e a comunicação são direitos humanos. Ninguém morrerá de fome porque ninguém morrerá de indigestão. As crianças de rua não serão tratadas como se fossem lixo, porque não existirão crianças de rua. As crianças ricas não serão tratadas como se fossem dinheiro, porque não existirão crianças ricas. A educação não será privilégio daqueles que possam pagá-la, e a polícia não será a maldição de quem não possa comprá-la. A justiça e a liberdade, irmãs siamesas, condenadas a viver separadas, voltarão a juntar-se, bem grudadinhas, costas com costas. A Santa Mãe Igreja corrigirá algumas erratas das tábuas de Moisés, e o sexto mandamento ordenará: 'Festejar o corpo'. A Igreja também ditará outro mandamento, que Deus havia esquecido: 'Amarás a Natureza da qual fazes parte'. Serão reflorestados os desertos do mundo e os desertos da alma. Os desesperados serão esperados e os perdidos serão encontrados, porque eles se desesperaram de muito, muito esperar, e se perderam de muito, muito procurar. Seremos compatriotas e contemporâneos de todos os que tenham vontade de beleza e de justiça, sem que importem nem um pouquinho as fronteiras do mapa nem do tempo. Seremos imperfeitos, porque a perfeição continuará sendo o chato privilégio dos deuses, mas neste mundo, neste mundo trapalhão e fodido, seremos capazes de viver cada dia como se fosse o primeiro e cada noite como se fosse a última."

Eduardo Galeano (1940-), escritor uruguaio

O tempo corre



"O tempo corre, o tempo é curto: preciso me apressar, mas ao mesmo tempo viver como se esta minha vida fosse eterna. E depois morrer vai ser o final de alguma coisa fulgurante: morrer será um dos atos mais importantes da minha vida. Eu tenho medo de morrer: não sei que nebulosas e vias-lácteas me esperam. Quero morrer dando ênfase à vida e à morte.

Só peço uma coisa: na hora de morrer eu queria ter uma pessoa amada por mim ao meu lado para me segurar a mão. Então não terei medo, e estarei acompanhada quando atravessar a grande passagem."

Clarice Lispector (1920-1977). A descoberta do mundo (Crônicas, 1967-1973). Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1984, p. 136

domingo, 22 de dezembro de 2013

Livros



"Para entreter curiosidades, o velho Alfredo oferecia livros ao menino e convencia-o de que ler seria fundamental para a saúde. Ensinava-lhe que era uma pena a falta de leitura não se converter numa doença, algo como um mal que pusesse os preguiçosos a morrer. Imaginava que um não leitor ia ao médico e o médico o observava e dizia: você tem o colesterol a matá-lo, se continuar assim não se salva. E o médico perguntava: tem abusado dos fritos, dos ovos, você tem lido o suficiente. O paciente respondia: não, senhor doutor, há quase um ano que não leio um livro, não gosto muito e dá-me preguiça. Então, o médico acrescentava: ah, fique pois sabendo que você ou lê urgentemente um bom romance, ou então vemo-nos no seu funeral dentro de poucas semanas."

Valter Hugo Mãe (1971-). O filho de mil homens. São Paulo: Cosac Naify, 2013, p. 68

Nada vos oferto além destas mortes


"Nada vos oferto
além destas mortes
de que me alimento

Caminhos não há
Mas os pés na grama
os inventarão

Aqui se inicia
uma viagem clara
para a encantação

Fonte, flor em fogo,
que é que nos espera
por detrás da noite?

Nada vos sovino:
com a minha incerteza
vos ilumino"

Ferreira Gullar (1930-). A Luta Corporal e Novos Poemas. Rio de Janeiro: José Álvaro Editor, 1966, p. 14

Sou um homem comum


"Sou um homem comum
de carne e de memória
de osso e esquecimento.
Ando a pé, de ônibus, de táxi e de avião
e a vida sopra dentro de mim
pânica
feito a chama de um maçarico
e pode
subitamente
cessar.

Sou, como você,
feito de coisas lembradas
e esquecidas
rostos e
mãos, o guarda-sol vermelho ao meio-dia
em Pastos Bons,
defuntas alegrias, flores, passarinhos,
facho de tarde luminosa,
nomes que já nem sei,
bocas bafos bacias
bandejas bandeiras bananeiras
tudo
misturado
essa lenha
perfumada que se acende
e me faz caminhar."

Ferreira Gullar (1930-). A Luta Corporal e Novos Poemas. Rio de Janeiro: José Álvaro Editor, 1966, p. 157

Amo os restos


"Não uso das palavras
Fatigadas de informar.
Dou mais respeito
Às que vivem de barriga no chão
Tipo água pedra sapo.
Entendo bem o sotaque das águas.
Dou importância às coisas desimportantes
E aos seres desimportantes
Prezo insetos mais que aviões.
Prezo a velocidade
das tartarugas mais do que as dos mísseis.
Tenho em mim esse atraso de nascença
Eu fui aparelhado
para gostar de passarinhos
Tenho abundância de ser feliz por isso.
Meu quintal é maior do que o mundo.
Sou um apanhador de desperdícios
Amo os restos
Como boas moscas.
Queria que minha voz tivesse formato de canto
Porque não sou da informática
Eu sou da invencionática.
Só uso minhas palavras para compor meus silêncios."

Manoel de Barros (1916-). Memórias inventadas – As Infâncias. São Paulo: Planeta do Brasil, 2010. p. 47

Liberdade


"Ele era um andarilho.
Ele tinha um olhar cheio de sol
de águas
de árvores
de aves.
Ao passar pela Aldeia
Ele sempre me pareceu a liberdade em trapos.
O silêncio honrava a sua vida."

Manoel de Barros (1916-). Poemas Rupestres, 2004

Eternidade


"Ela foi encontrada! 
Quem? A eternidade. 
É o mar misturado 
Ao sol. 

Minha alma imortal, 
Cumpre a tua jura 
Seja o sol estival 
Ou a noite pura. 

Pois tu me liberas 
Das humanas quimeras, 
Dos anseios vãos! 
Tu voas então..." 

Arthur Rimbaud (1854-1891)

sábado, 21 de dezembro de 2013

Ruínas



"Do ponto de vista da eternidade, muito pouco do que nos perturba tem importância.

As ruínas nos convidam a renunciar a nossas lutas e a nossas imagens de perfeição e satisfação. Elas nos lembram de que não podemos desafiar o tempo e de que somos joguetes de forças de destruição que, na melhor das hipóteses, podem ser mantidas ao largo, mas jamais derrotadas. Podemos desfrutar de vitórias locais, alguns anos em que somos capazes de impor alguma ordem no caos, mas tudo está destinado a ser derramado de volta à sopa primordial. Se essa perspectiva tem o poder de consolar, é talvez porque a maior parte de nossas angústias provém de um senso exagerado da importância de nossos projetos e preocupações. Somos torturados por nossos ideais e por um senso punitivamente arrogante da gravidade do que estamos fazendo."

Alain de Botton (1969-). Desejo de status. Porto Alegre: L&PM, 2013, p. 229

Viajar



"Podemos superar o sentimento de que somos insignificantes não nos tornando mais importantes, mas reconhecendo a insignificância relativa de todos. Nossa preocupação com quem é alguns milímetros mais alto do que nós pode dar lugar a uma reverência a coisas um milhão de vezes maiores que nós, uma força que podemos ser levados a chamar de infinito, eternidade – ou simplesmente, e talvez de modo mais útil, Deus. 

Um bom remédio para as angústias relacionadas com a insignificância pode ser viajar – na realidade ou através de obras de arte – pelos espaços gigantescos do mundo."

Alain de Botton (1969-). Desejo de status. Porto Alegre: L&PM, 2013, p. 232-3

Boêmios



"No início do século XIX, um novo grupo de pessoas começou a ser notado na Europa Ocidental e nos Estados Unidos. Com freqüência se vestiam com simplicidade, moravam nas partes mais baratas da cidade, liam muito, pareciam não se importar demais com dinheiro, muitos eram de temperamento melancólico, fiéis à arte e não aos negócios ou ao sucesso material, às vezes tinham uma vida sexual anticonvencional, e algumas das mulheres usavam os cabelos curtos antes que fosse moda – eles passaram a ser descritos como ‘boêmios’. (...) – uma gama de pessoas que não se ajustava, por um motivo ou outro, à concepção burguesa de respeitabilidade."

Alain de Botton (1969-). Desejo de status. Porto Alegre: L&PM, 2013, p. 255

Sua vida é sua vida


"Sua vida é sua vida 
Não deixe que ela seja esmagada na fria submissão. 
Esteja atento. 
Existem outros caminhos. 
E em algum lugar, ainda existe luz. 
Pode não ser muita luz, mas 
ela vence a escuridão.
Esteja atento.
Os deuses vão lhe oferecer oportunidades.
Reconheça-as.
Agarre-as.
Você não pode vencer a morte,
mas você pode vencer a morte durante a vida, às vezes.
E quanto mais você aprender a fazer isso,
mais luz vai existir.
Sua vida é sua vida.
Conheça-a enquanto ela ainda é sua.
Você é maravilhoso.
Os deuses esperam para se deliciar
em você."

Charles Bukowski (1920-1994). The Laughing Heart (O coração risonho)

ausências e silêncios



"Era um rapaz pequeno de catorze anos, deitado à vida depois que o seu avô morrera. Estivera vinte dias fechado em casa sem coragem para sair, disse alguém sobre ele. Ficara vinte dias sem saber o que fazer, como fazer, até que uma vizinha metediça se lembrou dele e foi mandá-lo mexer-se. Uma vizinha que lhe pôs um pão fresco na boca, lhe abriu a água da banheira e lhe disse que o sol estava alto e era como um patrão. Está a ver-te, dizia ela. O sol era que mandava, a significar a vida que se punha a continuar para além até das grandes tristezas. Era um menino pequeno, um corpito de poucos quilos e muito susto, assim o viu o Crisóstomo. Era um menino na ponta do mundo, quase a perder-se, sem saber como se segurar e sem conhecer o caminho. Os seus olhos tinham um precipício. E ele estava quase a cair olhos adentro, no precipício de tamanho infinito escavado para dentro de si mesmo. Um rapaz carregado de ausências e silêncios."


Valter Hugo Mãe (1971-). O filho de mil homens. São Paulo: Cosac Naify, 2013, p. 15

Isaura



"À noite, outra vez deitada em silêncio, a Isaura pensava sempre que o caminho para a liberdade estava no casamento e no meio das pernas. Pensava que, quando pudesse abrir as pernas, o seu rapaz a amaria por muito tempo e a faria feliz. Pensava que por dentro das pernas um anzol se prenderia ao pênis do rapaz. Um anzol imaginário que justificaria a fidelidade e a companhia para a vida inteira. Ser feliz era igual a ter a companhia dele e o sexo. Sobre o sexo ela não sabia mas imaginava muito. O rapaz dizia-lhe: se não me deres a ferida, não vou querer casar contigo. A Isaura morria de medo. Doía-lhe a ferida de tanto esperar. Pensava que tinha um nome bonito e que tinha nascido com sorte. Só precisava de ser merecedora e esperta. Ele também lhe dava a entender isso. Pedia-lhe que não fosse burra ou parva. Para ser melhor, tinha de aceitar."

Valter Hugo Mãe (1971-). O filho de mil homens. São Paulo: Cosac Naify, 2013, p. 42

Filhos



"Um dia, o doutor meteu a anã na sua casa e disse-lhe que ela já não saía dali grávida. Não tinha condições para mais e era preciso fazer o bebê nascer. Era tão cedo no tempo da gestação que havia uma possibilidade enorme de correr tudo mal. Passou palavra por toda a aldeia de que a anã estava em risco absoluto e teria um destino qualquer a cumprir-se nos próximos dias. O doutor tentava acalmar a mulher, e ela queria sobretudo que o seu filho nascesse e que tivesse modo de fazer a vida. Sentia que, se o seu filho vingasse, a sua vida valera a pena. Curava-se da tristeza e prosseguia no insondável que os filhos são. Os filhos, dizia, levam dentro famílias inteiras."


Valter Hugo Mãe (1971-). O filho de mil homens. São Paulo: Cosac Naify, 2013, p. 33

quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

Solidão



"...a solidão não é viver só, a solidão é não sermos capazes de fazer companhia a alguém ou a alguma coisa que está dentro de nós, a solidão não é uma árvore no meio duma planície onde só ela esteja, é a distância entre a seiva profunda e a casca, entre a folha e a raiz".

José Saramago (1922-2010). O Ano da Morte de Ricardo Reis (1984). Bisleya, 2012, p. 214

Estou vivo



"...então sentou-se na cadeira onde Fernando Pessoa passara a noite, traçou a perna como ele, cruzou as mãos sobre o joelho, tentou sentir-se morto, olhar com olhos de estátua o leito vazio, mas havia uma veia a pulsar-lhe na fonte esquerda, a pálpebra do mesmo lado agitava-se, Estou vivo, murmurou, depois em voz alta, sonora, Estou vivo, e como não havia ali ninguém que pudesse desmenti-lo, acreditou."

José Saramago (1922-2010). O Ano da Morte de Ricardo Reis (1984). Bisleya, 2012, p. 221

A morte do general Sanjurjo



"De repente, a tragédia. O general Sanjurjo morreu horrivelmente carbonizado, ia ocupar o seu lugar na diretoria militar do movimento, o avião, ou por levar carga a mais, ou por falta de força do motor, se não é que tudo vai dar à mesma causa, não conseguiu alçar o voo, foi bater numas árvores, depois contra um muro, à vista de toda aquela gente espanhola que acudira ao bota-fora, e ali, sob um sol impiedoso, arderam o avião e o general numa imensa tocha, ainda assim teve sorte o aviador, Ansaldo de seu nome, escapou com ferimentos e queimaduras sem maior gravidade. Dizia o general que não senhor, não pensava em deixar Portugal tão cedo, e era mentira, mas estas falsidades devemos ter a misericórdia de compreendê-las, são o pão da política, embora não saibamos se Deus pensa da mesma maneira, quem nos dirá que não foi punição divina, toda a gente sabe que Deus castiga sem pau nem pedra, do fogo é que já tem uma longa prática. Agora, ao mesmo tempo que o general Queipo de Llano proclama a ditadura militar em toda a Espanha, é o corpo do general Sanjurjo, também marquês de Riff, velado na igreja de Santo António do Estoril, e quando dizemos corpo, é o que dele resta, um tocozinho negro, parece um caixãozinho de criança, homem que tão corpulento era em vida, reduzido ao triste tição, é bem verdade que não somos nada neste mundo, por mais que custa a acreditar."

José Saramago (1922-2010). O Ano da Morte de Ricardo Reis (1984). Bisleya, 2012, p. 356

segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

Observando o Tejo



"...aqui está pois o Tejo, aqui estão os rios que correm pela minha aldeia, todos correndo com esta água que corre, para o mar que de todos os rios recebe a água e aos rios a restitui, retorno que desejaríamos eterno, porém não, durará só o que o sol durar, mortal como nós todos, gloriosa morte será a daqueles homens que na morte do sol morrerem, não viram o primeiro dia, verão o último."

José Saramago (1922-2010). O ano da morte de Ricardo Reis (1984). Bisleya, 2012, p. 106-7

Foto: casal observando o rio Tejo, em Lisboa - Portugal

Perdi os meus fantásticos castelos



"Perdi os meus fantásticos castelos
Como névoa distante que se esfuma...
Quis vencer, quis lutar, quis defendê-los:
Quebrei as minhas lanças uma a uma!
...
Perdi a minha taça, o meu anel,
A minha cota de aço, o meu corcel,
Perdi meu elmo de oiro e pedrarias...

Sobem-me aos lábios súplicas estranhas...
Sobre o meu coração pesam montanhas...
Olho assombrada as minhas mãos vazias..."

Florbela Espanca (1894-1930). Poemas de Florbela Espanca. São Paulo: Martins Fontes, 1997, p. 264

Que Deus me ajude



"Mesmo para os descrentes há a pergunta duvidosa: e depois da morte? Mesmo para os descrentes há o instante de desespero: que Deus me ajude. Neste mesmo instante estou pedindo que Deus me ajude. Estou precisando. Precisando mais do que a força humana. E estou precisando de minha própria força. Sou forte mas também destrutiva. Autodestrutiva. E quem é autodestrutivo também destrói os outros. Estou ferindo muita gente. E Deus tem que vir a mim, já que eu não tenho ido a Ele. Venha, Deus, venha. Mesmo que eu não mereça, venha. Ou talvez os que menos merecem precisem mais. Só uma coisa a favor de mim eu posso dizer: nunca feri de propósito. E também me dói quando percebo que feri. Mas tantos defeitos tenho. Sou inquieta, ciumenta, áspera, desesperançosa. Embora amor dentro de mim eu tenha. Só que não sei usar amor: às vezes parecem farpas. Se tanto amor dentro de mim recebi e continuo inquieta e infeliz, é porque preciso que Deus venha. Venha antes que seja tarde demais."

Clarice Lispector (1920-1977). A descoberta do mundo (Crônicas - 1967/1973). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984, p. 90-1

Jobs



"Estou aqui para os malucos, para aqueles que não se ajustam, para os rebeldes, criadores de problemas, para aqueles que possuem quatro olhos, que vêem as coisas de maneira diferente, que não seguem as regras, que não respeitam o status quo. Você pode humilhá-los, discordar deles, ou tentar atingir seu fogo interior, mas o que você simplesmente não pode fazer é ignorá-los, porque eles mudam as coisas, empurram a raça humana para frente. Embora alguns possam parecer loucos, eles são os melhores. Porque as pessoas que são suficientemente loucas para pensar que podem mudar o mundo são o futuro". Steve Jobs (1955-2011)

Cena final do filme "Jobs" (2013), de Joshua Michael Stern

Desejo de status



"Os moralistas cristãos compreenderam há muito tempo que, para controlar a angústia, pode ser melhor salientar que, ao contrário do que nos ensina uma mentalidade otimista, tudo na verdade se tornará pior: o teto vai desmoronar, o banco vai ficar em ruínas, vamos morrer, todos que amamos desaparecerão e todas as nossas realizações e até nossos nomes estarão enterrados no chão. Se a ideia traz conforto, pode ser porque algo dentro de nós reconheça de modo instintivo que os nossos sofrimentos estão estreitamente ligados à grandiosidade de nossas ambições. Considerar as nossas preocupações insignificantes com status a partir da perspectiva de mil anos à frente é ter a garantia de um vislumbre raro e tranquilizador de nossa própria insignificância."

Alain de Botton. Desejo de status. Porto Alegre: L&PM, 2013, p. 229