quinta-feira, 31 de outubro de 2013

Um vento



"Há um vento 
que vem do futuro
e fende a cascata"

Ban'ya Natsuishi (1955). O Haicai no século XX - Antologia. In: Poesia Sempre. Ano 10, nº 17, Rio de Janeiro, Dezembro/2002, p. 139

Goya



"Goya é sempre um grande artista, com frequência assustador. Ele une à graça, à jovialidade, à sátira espanhola do bom tempo de Cervantes um espírito bem mais moderno ou, pelo menos, que foi bem mais escrutado nos tempos modernos, o amor pelo inapreensível, o sentimento pelos contrastes violentos, pelos espantos da natureza e pelas fisionomias humanas estranhamente animalizadas pelas circunstâncias."

Charles Baudelaire (1821-1867). Alguns caricaturistas estrangeiros. In: Poesia e prosa. Volume único, p. 766. Citado por Jean-Baptiste Baronian. Baudelaire. Porto Alegre, L&PM, 2010, p. 119

Baudelaire



"Ele precisa vibrar, ele precisa se exaltar e se extasiar, ele precisa se pasmar. Ele precisa de Balzac, Poe ou Delacroix e agora de Wagner para viver, para suportar o peso terrível da existência, para atravessar a mediocridade de sua época e de seu país..."

Jean-Baptiste Baronian. Baudelaire. Porto Alegre, L&PM, 2010, p. 119

Morte



"...a Morte, que nos deixa sonhar com a felicidade e a fama e que não diz sim nem não, sai bruscamente da sua emboscada e varre com um golpe de asa os nossos planos, os nossos sonhos e as arquiteturas ideais nas quais abrigávamos em pensamento a glória dos nossos últimos dias."

Charles Baudelaire (1821-1867). Carta a Richard Wagner. In: Poesia e prosa. Volume único, p. 912. Citado por Jean-Baptiste Baronian. Baudelaire. Porto Alegre, L&PM, 2010, p. 137

Death


"Before us great Death stands
Our fate held close within his quiet hands.
When with proud joy we lift Life’s red wine
To drink deep of the mystic shining cup
And ecstasy through all our being leaps —
Death bows his head and weeps."

Rainer Maria Rilke (1875-1926)

sábado, 26 de outubro de 2013

Splash


"the illusion is that you are simply
reading this poem.
the reality is that this is
more than a
poem.
this is a beggar's knife.
this is a tulip.
this is a soldier marching
through Madrid.
this is you on your
death bed.
this is Li Po laughing
underground.
this is not a god-damned
poem.
this is a horse asleep.
a butterfly in
your brain.
this is the devil's
circus.
you are not reading this
on a page.
the page is reading
you.
feel it?
it's like a cobra. it's a hungry eagle circling the room.

this is not a poem. poems are dull,
they make you sleep.

these words force you
to a new
madness.

you have been blessed, you have been pushed into a
blinding area of
light.

the elephant dreams
with you
now.
the curve of space
bends and
laughs.

you can die now.
you can die now as
people were meant to
die:
great,
victorious,
hearing the music,
being the music,
roaring,
roaring,
roaring."

Charles Bukowski (1920-1994)

Fonte: Poem hunter

The genius of the crowd


"there is enough treachery, hatred violence absurdity in the average
human being to supply any given army on any given day

and the best at murder are those who preach against it
and the best at hate are those who preach love
and the best at war finally are those who preach peace

those who preach god, need god
those who preach peace do not have peace
those who preach peace do not have love

beware the preachers
beware the knowers
beware those who are always reading books
beware those who either detest poverty
or are proud of it
beware those quick to praise
for they need praise in return
beware those who are quick to censor
they are afraid of what they do not know
beware those who seek constant crowds for
they are nothing alone
beware the average man the average woman
beware their love, their love is average
seeks average

but there is genius in their hatred
there is enough genius in their hatred to kill you
to kill anybody
not wanting solitude
not understanding solitude
they will attempt to destroy anything
that differs from their own
not being able to create art
they will not understand art
they will consider their failure as creators
only as a failure of the world
not being able to love fully
they will believe your love incomplete
and then they will hate you
and their hatred will be perfect

like a shining diamond
like a knife
like a mountain
like a tiger
like hemlock

their finest art"

Charles Bukowski (1920-1994)

Fonte: Poem hunter

Carson McCullers


"she died of alcoholism
wrapped in a blanket
on a deck chair
on an ocean
steamer 

all her books of
terrified loneliness 

all her books about
the cruelty
of loveless love 

were all that was left
of her 

as the strolling vacationer
discovered her body 

notified the captain 

and she was quickly dispatched
to somewhere else
on the ship 

as everything
continued just
as
she had written it" 

Charles Bukowski (1920-1994)

sexta-feira, 25 de outubro de 2013

Pobres são aqueles que precisam de muito para viver



"O presidente do Uruguai José Mujica afirmou, em entrevista concedida na última sexta-feira à rede estatal chinesa 'Xinhua', que não concorda com o título que lhe foi atribuído pela imprensa internacional de 'presidente mais pobre do mundo', em razão de seu estilo de vida simples. Segundo ele, esse título é incorreto porque 'pobres são aqueles que precisam de muito para viver'. Segundo ele, sua vida austera tem como objetivo 'manter-se livre'.

'Eu não sou pobre. Pobres são aqueles que precisam de muito para viver, esses são os verdadeiros pobres, eu tenho o suficiente', afirmou.

'Sou austero, sóbrio, carrego poucas coisas comigo, porque para viver não preciso muito mais do que tenho. Luto pela liberdade e liberdade é ter tempo para fazer o que se gosta', disse o presidente."

Um velho lago parado



"Um velho lago parado... cerrado... calado...
de águas turvas tranquilas,
realizava, no deslumbramento da noite clara,
seu sonho dourado de ser espelho.
Seu fundo lodoso e sombrio
refletia, cheio de orgulho,
um cortejo relumbrante de estrelas,
quando um sapo asqueroso
saltou sobre ele como um profano,
arrancando de suas águas
um arrepio de pavor
e um gemido estrangulado de agonia..."

Matsuô Bashô (1643-1694). Poética do Japão. In: Poesia Sempre. Ano 10, nº 17, Rio de Janeiro, Dezembro/2002, p. 18

Llamadas telefónicas


"...me subí al Porsche y comencé a recorrer las calles de Los Ángeles que en ese preciso momento comenzaban a caer bajo la noche, bajo el manto de la noche como en una canción de Nicola Di Bari, bajo las ruedas de la noche..." (p. 164)
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"Tony jamás se enfadaba, jamás discutía, como si considerara absolutamente inútil tratar de que otra persona compartiera su punto de vista, como si creyera que todas las personas estaban extraviadas y que era pretencioso que un extraviado le indicara a outro extraviado la manera de encontrar el camino. Un camino que no solamente nadie conocía sino que probablemente ni siquiera existía." (p. 190)

Roberto Bolaño (1953-2003). Llamadas telefónicas. Barcelona: Editorial Anagrama, 1997

quinta-feira, 24 de outubro de 2013

Matinê


"Daqui a 30 anos, digamos,
que alguém leia este poema.
Todos os pequenos laços
que o ligam ao mundo
fora dele e à vida de um
poeta fudido entre milhões
de pessoas lugares motivos não estarão
mais aqui para socorrê-lo.
Daqui a 30 anos a coisa
será somente a coisa mesmo.
Uma cápsula amputada do tempo,
um bife arrancado do amor." (p.10)

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"Às vezes saio do cinema
E me ponho a andar
Cartografias pessoas
Apenas olhar
Ter a leve impressão
De que a cidade está grávida
De um outro lugar" (p.8)

Marcelo Montenegro. Matinê. Coleção Poesia Viva

A sabedoria do escravo



"Era no segundo andar. Abri a porta e eles já estavam lá. Os empregados do Correio Central. Reparei em uma garota, coitadinha, que tinha apenas um braço. Ficaria ali para sempre. Era como ser um velho bebum como eu. Bem, como diziam os rapazes, você tinha que trabalhar em algum lugar. Então aceitavam o que aparecesse. Essa era a sabedoria do escravo."

Charles Bukowski (1920-1994). Cartas na rua (1971). Porto Alegre: L&PM, 2011, p. 177-8

Emprego



"Eu tinha visto o emprego devorar os homens. Eles pareciam derreter. Lá estava Jimmy Potts do Posto Dorsey. Da primeira vez que cheguei lá, Jimmy era um cara musculoso em sua camiseta branca. Agora estava liquidado. Colocava seu banco o mais próximo do chão possível, e se agarrava para não cair. Vivia de tal maneira cansado que já nem cortava o cabelo e usava as mesmas calças há três anos. Trocava as camisas duas vezes por semana e caminhava bem devagar. Tinham-no assassinado. Estava com 55 anos. Faltavam sete para ele se aposentar." 

Charles Bukowski (1920-1994). Cartas na rua (1971). Porto Alegre: L&PM, 2011, p. 167

Não é tua esta morte



"Cuidado! Não é tua
esta morte.
Cuidado! Ela vem disfarçada
de irmã e reparte
moscas e formigas
como se fossem frutas
maduras e espigas.
Cuidado! que vem vestida
de infância
e de vida."

Alberto da Costa e Silva (1931-). Poemas Reunidos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000, p. 174

Imagem: "Caveira" (1887), de Vincent Van Gogh

Descobrir a verdade



"Perdi amigos. Não entendo a morte. Mas não tenho medo de morrer. Vai ser um descanso: um berço enfim. Não a apressarei, viverei até a última gota de fel. Não gosto quando dizem que tenho afinidade com Virginia Woolf (só a li, aliás, depois de escrever o meu primeiro livro): é que não quero perdoar o fato de ela se ter suicidado. O horrível dever é ir até o fim. E sem contar com ninguém. Viver a própria realidade. Descobrir a verdade."

Clarice Lispector (1920-1977). A descoberta do mundo (crônicas - 1967/1973). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984, p. 529

Restos



"Há um resto de noite pela rua
que se dissolve em bruma e madrugada.

Há um resto de tédio inevitável
que se evola na tênue antemanhã.

Há um resto de sonho em cada passo
que antes de ser se foi, já não existe.

Há um resto de ontem nas calçadas
que foi dia de festa e fantasia.

Há um resto de mim em toda a parte
que nunca pude ser inteiramente."

Ildásio Tavares (1940-2010). Restos. In: Poesia Sempre. Ano 10, nº 17, Rio de Janeiro, Dezembro/2002, p. 176

a semente espera


"A escuridão começa pelas bordas
e vai seguindo até chegar ao centro,

lá onde uma semente aguarda a hora,
tranquilamente, sem medo do escuro:
pois é da natureza das sementes

se afastar da luz, mergulhar no úmido,
sepultar-se por toda uma estação.
No entanto, neste caso a escuridão
é de outra espécie, mais seca e mais rasa,

uma que avança devagar e sempre,
alheia a qualquer propósito ou causa,
até só restar pedra sobre pedra.

Mas a semente espera. Ela é insistente,
e acerta mesmo sem saber que erra."

Paulo Henriques Britto (1951-). In: Poesia Sempre. Ano 10, nº 17, Rio de Janeiro, Dezembro/2002, p. 194

sábado, 19 de outubro de 2013

tudo no fundo é uma questão de palavras



"...que tudo no fundo é uma questão de palavras, de combiná-las, de brincar com elas, é o terreno da literatura, que dizem que está acabando por causa do audiovisual, mas isso não cola, é um disparate, as pessoas continuam loucas por inventar escritos que convençam de alguma coisa ou emocionem, mesmo que seja tudo mentira, o que importa é que você acredite, depende de como as palavras são ditas e de como você as escuta. O próprio amor, não é acima de tudo uma questão de palavras? Pelo menos o dos romances, que é o que faz chorar; alguma coisa há de ter a água quando é benta (...). Há muitíssimos anos, recebi um conselho de um professor de literatura do colégio: que nunca deixasse de apanhar palavras com minha rede de caçar borboletas, disse isso depois de ver uma colagem que eu tinha feito, chamada 'O filólogo'. Don Pedro Larroque, esse era o nome dele, e graças a seu conselho continuo em pé, porque a literatura já me salvou de muitos poços escuros."

Carmen Martín Gaite (1925-2000). Nebulosidade Variável (1992). São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 153-4

Cartas na rua



"Certa manhã eu organizava as cartas ao lado de G.G. Era assim que o chamavam: G.G. Seu verdadeiro nome era George Green. Mas há anos que o chamavam simplesmente de G.G., e depois de um tempo o apelido lhe caíra bem. Ele trabalhava como carteiro desde os seus vinte anos e agora estava com sessenta e muitos. Sua voz tinha sumido. Ele não falava. Grasnava. E quando grasnava, não dizia muita coisa. Não gostavam dele, mas também não chegavam a desgostar. Apenas estava ali. Seu rosto tinha se enrugado de modo a formar estranhos vincos e montículos de carne nada atraentes. Nenhuma luz irradiava de seu rosto. Não era mais que um velho camarada, endurecido pelo tempo, que tinha cumprido o seu trabalho: G.G. Os olhos pareciam pedaços mortos de argila socados nos globos oculares. O melhor que se podia fazer era não pensar nele, nem sequer olhá-lo."

Charles Bukowski (1920-1994). Cartas na rua (1971). Porto Alegre: L&PM, 2011, p. 42-3

quinta-feira, 10 de outubro de 2013

As cousas fluem



"Sofrer esta infância, esta morte, este início.
As cousas não param. Elas fluem, inquietas,
como velhos rios soluçantes. As flores
que apenas sonhamos em frutos se tornaram.
Sazonar, eis o destino. Porém não esquecer
a promessa de flores nas sementes dos frutos,
o rosto de teu pai na face do teu filho,
as ondas que voltam sobre as mesmas praias,
noivas desconhecidas a cada novo encontro.
As cousas fluem, não param. As folhas nascem,
as folhas tombam longe, em longínquos jardins.
Em silêncio, vives a infância de teus olhos
e, morto, és tão puro que te tornas menino."

Alberto da Costa e Silva (1931-). Poemas Reunidos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000, p. 19

Nebulosidade Variável



"– Tanta faina, tanto andar de lá para cá, tanto querer abarcar. Para quê, se não há amor? Pode me explicar, a senhora que tem tanto estudo?

Baixei a cabeça

– Não, Brígida – reconheci. – Não posso explicar." (p. 98)
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"Eu precisava imaginá-lo de outra forma para poder suportá-lo e sonhar que o dominava. (...) Não desfrutava dele tal como era, mas das estratégias que eu mesma armava para pôr à prova seu amor, explorá-lo em meu terreno e canalizar sua turbulência. Através desse Guillermo que inventei e que não existia – dobrado e deslumbrado a meus pés, domesticado por uma inteligência serena e superior – eu amava mais do que nunca a mim mesma. Foi meu primeiro fracasso, embora eu tenha levado muito tempo para entendê-lo, o primeiro elo de uma cadeia de bravatas sem outro objetivo senão ocultar minha covardia frente ao erotismo desordenado." (p. 104)
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"...Pedro Larroque já devia saber muito sobre os estragos do tempo, por isso seus olhos se embaçavam quando recitava, fitando a janela. 'Que a ninguém engane o ardil,/ cuidando que há de durar o que espera/ mais que durou o que viu.' Tinhauma voz que fazia estremecer alguma coisa dentro de mim. Às vezes, pensativo, acariciava o escasso cabelo entremeado de branco. E nos perguntávamos se ele era bonito ou feio, velho ou jovem. Até que um dia soubemos, porque ele mesmo o disse em aula, que tinha a mesma idade de Pedro Manrique ao ser atingido por uma flecha quando assaltou o forte de Garci-Muñoz: trinta e nove anos. 'Nossa, tão velho e solteiro', comentei com você, condoída. Agora, se é que ele ainda vive, deve estar beirando os oitenta. Provavelmente nem se lembraria de nós, se nos encontrássemos em algum lugar. E no entanto ele continua falando através de sua boca, Mariana, como Jorge Manrique falava conosco através da dele. Veja você, nós sempre às voltas com a mesma coisa: o tempo." (p. 138-9)
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"Fiquei um tempo mais com os cotovelos apoiados na mesa e o queixo entre as mãos, saboreando as lágrimas que escorriam por meu rosto, como quando a gente acaba de assistir a um filme de amor, sentindo como faz bem chorar assim, sem dor nem desconsolo. Reconheço a sensação, o que indica que não deve ser a primeira vez que choro de um jeito assim tão doce, capaz de esconjurar malefícios e desfazer nós cegos, mas o tempo que me separa dessa outra vez, seja lá qual for, é algo que não sei calcular. Porque eu, Mariana – e quero logo dizer isso, para que você veja que, pelo menos nesse terreno, a vida não pôde comigo –, nunca soube calcular o tempo, nem estou interessada em saber. Só quero que ele me acolha e eu possa entrar sem medo em seu recinto sagrado, em vez de ficar espiando do lado de fora, defendendo-me dele, medindo seus passos. Nisso consiste a bem-aventurança, em dizer, como dizia Guillermo, 'agora é sempre', acreditar nisso e ser capaz de transmiti-lo aos outros. E ao mesmo tempo em que evoco essa frase e os olhos de Guillermo fitando as estrelas enquanto a pronunciava, na noite em que o conheci, ao mesmo tempo a palavra 'sempre' aqui ao meu lado, escrita com seu punho e letra, Mariana, emite sinais de luz como um farol no nevoeiro, levemente borrada por minhas duas lágrimas mais recentes, o que indica que você também continua escrevendo com caneta-tinteiro, mais uma de nossas coincidências." (p. 141-2)
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"...que tudo no fundo é uma questão de palavras, de combiná-las, de brincar com elas, é o terreno da literatura, que dizem que está acabando por causa do audiovisual, mas isso não cola, é um disparate, as pessoas continuam loucas por inventar escritos que convençam de alguma coisa ou emocionem, mesmo que seja tudo mentira, o que importa é que você acredite, depende de como as palavras são ditas e de como você as escuta. O próprio amor, não é acima de tudo uma questão de palavras? Pelo menos o dos romances, que é o que faz chorar; alguma coisa há de ter a água quando é benta (...). Há muitíssimos anos, recebi um conselho de um professor de literatura do colégio: que nunca deixasse de apanhar palavras com minha rede de caçar borboletas, disse isso depois de ver uma colagem que eu tinha feito, chamada 'O filólogo'. Don Pedro Larroque, esse era o nome dele, e graças a seu conselho continuo em pé, porque a literatura já me salvou de muitos poços escuros." (p. 153-4)

Carmen Martín Gaite (1925-2000). Nebulosidade Variável (1992). São Paulo: Companhia das Letras, 1997

terça-feira, 8 de outubro de 2013

Querida, você esteve maravilhosa



"...a desordem, em princípio, não me incomoda. São vestígios da vida. Mas Eduardo torceu o nariz, e aquilo foi a deixa para que voltasse à carga com sua atual obsessão predominante: que esta casa não reúne condições. Condições para quê – eu me pergunto –, se ele mal pára aqui? Mas enfim, ele cismou com isso. No carro já veio martelando no assunto, e eu só me fazendo de besta, porque se você discorda é pior ainda. Mas por trás desse tipo de comentário sempre palpita uma insinuação mais ou menos velada de que quem não reúne condições como dona de casa sou eu. É um tema já bem surrado, que agora volta com mais força por causa da minha recusa a organizar ágapes e demais festinhas como as que dão seus novos amigos. Recuso-me a corresponder a essa expectativa, a representar o papel da esposa de alta classe que disfarça seu cansaço atrás de um sorriso, dedica-se a conversas vazias, passa bandejinhas e vê toda a sua trabalheira recompensada com a frase típica: 'Querida, você esteve maravilhosa', que o marido lhe dedica assim que os convidados saem, sem que nenhum deles tenha se divertido nadinha."

Carmen Martín Gaite (1925-2000). Nebulosidade variável (1992). São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 68