segunda-feira, 29 de julho de 2013

Pergunte ao pó (II)


"Então era aqui que ela morava! Cheirei o quarto, toquei-o com meus dedos, caminhei através dele com meus pés. Era como havia imaginado. Este era o seu lar. De olhos vendados eu podia ter reconhecido o local, pois o cheiro dela o dominava, sua existência perdida o proclamava como parte de um esquema sem esperança. Um apartamento em Temple Street, um apartamento em Los Angeles. Ela pertencia às colinas ondulantes, aos vastos desertos, às altas montanhas, ela arruinaria qualquer apartamento, causaria estrago em qualquer pequena prisão como esta. Era assim, sempre na minha imaginação, sempre parte de meus planos e pensamentos sobre ela. Este era o seu lar, sua ruína, seu sonho disperso." (p. 177)
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"Saí para uma caminhada pelas ruas. Meu Deus, aqui estava eu de novo, perambulando pela cidade. Olhei para os rostos ao meu redor e sabia que o meu era como o deles. Rostos drenados de sangue, rostos tensos, preocupados, perdidos. Rostos como flores arrancadas de suas raízes e enfiadas num vaso bonito, as cores se esvaindo rapidamente. Eu tinha que sair daquela cidade." (p. 200)

John Fante (1909-1983). Pergunte ao pó (1939). 9ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2011

O deserto sempre esteve aqui


"Tudo que era bom em mim me emocionou naquele momento, tudo o que eu esperava do profundo e obscuro significado da minha existência. Aqui estava a placidez interminável e muda da natureza, indiferente à grande cidade; aqui estava o deserto abaixo dessas ruas, ao redor dessas ruas, esperando que a cidade morresse para cobri-la com a areia eterna uma vez mais. Assaltou-me uma sensação aterrorizadora de entender o significado e o destino patético dos homens. O deserto sempre esteve aqui, um animal branco paciente, esperando que homens morressem, que civilizações lampejassem e se apagassem na escuridão. Então os homens me pareceram bravos e fiquei orgulhoso de figurar entre eles. Toda a maldade do mundo não parecia maldade de todo, mas inevitável, boa e parte daquela luta interminável para manter o deserto sob controle."

John Fante (1909-1983). Pergunte ao pó (1939). 9ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2011, p. 149

sábado, 27 de julho de 2013

Rapa-tudo


"Há ocasiões em que não consegues nada, nem um sorriso, outras em que consegues tudo, até cartas de recomendação. Não te queixes, nem te gabes. Era que os anjos estavam brincando de rapa-bota-tira-deixa...

E a tua história quotidiana é tecida ao acaso dos lances.

Até que sobrevenha o R do rapa-tudo.

(Aí então os anjos te recolherão.)"

Mario Quintana (1906-1994). Poesias. Editora Globo, p. 94

Ilusões perdidas


"Meu saco de ilusões, bem cheio tive-o.
Com ele ia subindo a ladeira da vida.
E, no entretanto, após cada ilusão perdida...
Que extraordinária sensação de alívio!"

Mario Quintana (1906-1994). Poesias. Editora Globo, p. 115

no doido afã


"Lida no doido afã!
Vamos! Investe, vai contra os moinhos de vento!
Um dia tu verás que tudo é sombra vã,
Tênue fumo que a morte assopra num momento..."

Mario Quintana (1906-1994). Poesias. Editora Globo, p. 136

quinta-feira, 25 de julho de 2013

Pergunte ao pó


"Uma noite, eu estava sentado na cama do meu quarto de hotel, em Bunker Hill, bem no meio de Los Angeles. Era uma noite importante na minha vida, porque eu precisava tomar uma decisão quanto ao hotel. Ou eu pagava ou eu saía: era o que dizia o bilhete, o bilhete que a senhoria havia colocado debaixo da minha porta. Um grande problema, que merecia atenção aguda. Eu o resolvi apagando a luz e indo para a cama. (...)

Mas a senhoria, a senhoria de cabelos brancos continuava escrevendo aqueles bilhetes: era de Bridgeport, Connecticut, seu marido morrera e ela estava totalmente sozinha no mundo e não confiava em ninguém, não podia se dar ao luxo, ela me disse, e disse que eu teria de pagar. Estava crescendo como a dívida nacional, eu teria de pagar ou sair, cada centavo - cinco semanas de atraso, vinte dólares, e se não pagasse ela prenderia minhas malas; só que eu não tinha malas, eu só tinha uma valise e era de papelão sem nem sequer uma alça, porque a alça estava ao redor da minha barriga segurando minhas calças, e não era grande coisa, porque não sobrava muito das minhas calças."

John Fante (1909-1983). Pergunte ao pó (1939). 9ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2011, p. 11-14

Máscaras


"Escolher a própria máscara é o primeiro gesto voluntário humano. E solitário. Mas quando enfim se afivela a máscara daquilo que se escolheu para representar-se e representar o mundo, o corpo ganha uma nova firmeza, a cabeça ergue-se altiva como a de quem superou um obstáculo. A pessoa é.

Se bem que pode acontecer uma coisa que me humilha contar.

É que depois de anos de verdadeiro sucesso com a máscara, de repente - ah, menos que de repente, por causa de um olhar passageiro ou uma palavra ouvida - de repente a máscara de guerra de vida cresta-se toda no rosto como lama seca, e os pedaços irregulares caem com um ruído oco no chão. Eis o rosto agora nu, maduro, sensível quando já não era mais para ser. E ele chora em silêncio para não morrer. Pois nessa certeza sou implacável: este ser morrerá."

Clarice Lispector. A descoberta do mundo (crônicas, 1967-1973). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984, p. 100-101

Foto: cena do filme "Persona" (1966), de Ingmar Bergman, que Clarice Lispector comenta em uma crônica de 2 de março de 1968 (trecho acima)

Tudo comporta o seu prazer


"Tudo, mesmo a velhice, mesmo a doença,
Tudo comporta o seu prazer...
E até o pobre moribundo pensa
Na maneira mais suave de morrer..."

Mario Quintana (1906-1994). Poesias. Editora Globo, p. 111

segunda-feira, 22 de julho de 2013

eu amo o Nada


"Através de meus graves erros - que um dia eu talvez os possa mencionar sem me vangloriar deles - é que cheguei a poder amar. Até esta glorificação: eu amo o Nada. A consciência de minha permanente queda me leva ao amor do Nada. E desta queda é que começo a fazer minha vida. Com pedras ruins levanto o horror, e com horror eu amo. Não sei o que fazer de mim, já nascida, senão isto: Tu, Deus, que eu amo como quem cai no nada." (p. 206-7)
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"Se o meu mundo não fosse humano, também haveria lugar para mim: eu seria uma mancha difusa de instintos, doçuras e ferocidades, uma trêmula irradiação de paz e luta: se o mundo não fosse humano eu me arranjaria sendo um bicho. Por um instante então desprezo o lado humano da vida e experimento a silenciosa alma da vida animal. É bom, é verdadeiro, ela é a semente do que depois se torna humano." (p. 637-8)

Clarice Lispector. A descoberta do mundo (crônicas, 1967-1973). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984

sexta-feira, 19 de julho de 2013

Vou para o outono


"Vou para o outono, e - ai de mim! - já ouço
o vento a desgrenhar as pobres árvores.
Vou para o outono, para o doce outono,
E em breve o inverno é que virá, e o escuro.

Que fiz, Deus meu, de tudo o que me deste,
Da alegria, das cores e da flama
Que desfrutei na clara mocidade
E tão vil dispersei ingloriamente?

Vou para o outono, para o instante triste,
Para esse tempo que precede ao frio.
Vou para o outono, e sinto a alma vazia...

Ah! Não guardei, do meu verão perdido,
Esse calor, que mesmo à própria morte
Olhar nos faz sem medos nem cuidados."

Augusto Frederico Schmidt (1906-1965). Sonetos. Rio de Janeiro: Rio Gráfica e Editora, 1965, p. 125

Impregnado de morte vou vivendo


"Impregnado de morte vou vivendo.
E enquanto os dias, claros e felizes,
Ou escuros e tristes, vão correndo,
Vou na morte confiando, e nela apenas.

O perfume da morte é o meu perfume:
Sinto-o no coração do grande dia,
Sinto-o também na densa treva enorme,
Sinto-o em tudo o que vive e que palpita.

Só a ideia da morte me consola,
Só a imagem da morte me sossega,
Só a esperança da morte luz em mim.

Só, ao meu grande anseio, a morte aquieta,
Noiva sempre esperada, noiva eterna,
Com quem quero dormir sem despertar."

Augusto Frederico Schmidt (1906-1965). Sonetos. Rio de Janeiro: Rio Gráfica e Editora, 1965, p. 131

A noite é a fonte de tudo


"Chegou a noite primeiro,
Pois no princípio era noite.
Depois, no seio noturno,
É que o dia se criou.

Chegou a noite primeiro,
Antes do tempo reinava,
Depois é que a luz nasceu
Da noturna plenitude.

Do seio da noite fresca
Como flor, a aurora veio
E, aos poucos, a luz jorrou.

A noite é a fonte de tudo,
Fonte do próprio desejo
Onde a vida se gerou."

Augusto Frederico Schmidt (1906-1965). Sonetos. Rio de Janeiro: Rio Gráfica e Editora, 1965, p. 135

No coração do oceano impenetrável


"Depois de longa viagem, de repente
o porto, as tristes luzes a distância.
Depois do mar, tão íntimo, de novo
A terra, o mundo, as ambições mesquinhas.

Depois dos ares puros do mar alto,
O desconsolo de voltar a terra,
Cheia de perigos e traiçoeiros
Enganos e ilusões; de novo o mundo!

Ah! por que não fiquei na sepultura
De frias e fundas águas solitárias
Pelas luzes do céu, tão-só, velado?

Ah! por que não deixei meu ser mesquinho
Descer à pátria nunca descoberta
No coração do oceano impenetrável?"

Augusto Frederico Schmidt (1906-1965). Sonetos. Rio de Janeiro: Rio Gráfica e Editora, 1965, p. 121

águas quietas e escuras


"As águas quietas e escuras guardavam no seio imóvel
a cor dos grandes céus com suas nuvens,
E guardavam um silêncio como não vi maior:
Um silêncio maduro, de coisas se transformando;

Um silêncio fecundo, de natureza crescendo;
Um silêncio inicial, de antes do mundo possuir
Suas formas, o seu ritmo, o seu equilíbrio numeroso;
Um silêncio prestes a se partir num grande grito.

Em torno das águas escuras estava a floresta tropical.
Com a sua exasperada palpitação e o seu denso mistério,
As árvores pareciam esperar um acontecimento inesperado.

Poderíamos, no ermo, sentir os primeiros passos da Noite,
Que vinha com os seus grandes pés escuros
Quebrando frágeis galhos e machucando flores e plantas silvestres."

Augusto Frederico Schmidt (1906-1965). Sonetos. Rio de Janeiro: Rio Gráfica e Editora, 1965, p. 66

naufrágios


“Senhor, que inquieta e triste natureza,
Que alma é esta, a alma que me deste?
Foi um capricho teu, ou foi o acaso
Que assim me fez, que me formou assim?

Só hoje estou consciente do mistério
E dos perigos do meu pobre ser.
E é por isso que vivo e desespero
E desespero e vivo, e sofro tanto.

Senhor, por que tão frágil me fizeste?
Por que me abandonaste nestes mares,
À mercê dos tufões e das tormentas?

Por que, Senhor, nas águas me deixaste,
Lenho tão fraco pra tão rudes ondas
Barco feito tão-só para os naufrágios?”

Augusto Frederico Schmidt (1906-1965). Sonetos. Rio de Janeiro: Rio Gráfica e Editora, 1965, p. 286

sábado, 13 de julho de 2013

perigosos


"não morro de amores
por pessoas sem mistério
quando se é muito transparente
muito risonho e educado
é raro ser levado a sério
prefiro os mais silenciosos
os que abrem a boca de menos
os mais serenos e mais perigosos
aqueles que ninguém define
e que sempre analisam os fatos
por um novo enfoque
prefiro os que têm estoque
aos que deixam tudo à mostra na vitrine"

Martha Medeiros. Poesia reunida. Porto Alegre: L&PM, 2010, p. 132

Solidão


"solidão que tanto temem
que tanto ignoram o bem que faz
sozinha não minto, não finjo
não causo nenhum escarcéu
sozinha não maltrato, não disfarço
não há pesquisa que me sonde
sozinha não retruco, não provoco
não deixo ninguém sem resposta
sozinha não julgo nem condeno
não trato ninguém como réu
sozinha não grito, não rogo praga
não renego meu deleite
sozinha não trapaceio, não peco
não falto nem chego atrasada
sozinha não sumo, não volto
não tenho presença notada
sozinha eu sou quem eu posso
sozinha eu faço o que quero
sozinha não há céu que me rejeite"

Martha Medeiros. Poesia reunida. Porto Alegre: L&PM, 2010, p. 150-1

Stoner (II)


"Remembering his father's failure, or betrayal, he stayed with his first job in a small St. Louis bank; and in his late thirties, secure in a minor vice-presidency, he married a local girl of good family. From the marriage had come only one child; he wanted a son and had a girl, and that was another disappointment he hardly bothered to conceal. Like many men who consider their success incomplete, he was extraordinarily vain and consumed with a sense of his own importance. Every ten or fifteen minutes he removed a large gold watch from his vest pocket, looked at it, and nodded to himself."

John Williams (1922-1994). Stoner (1965). London: Vintage Books, p. 58

quinta-feira, 11 de julho de 2013

Stoner


"William Stoner entered the University of Missouri as a freshman in the year 1910, at the age of nineteen. Eight years later, during the height of World War I, he received his Doctor of Philosophy degree and accepted an instructorship at the same University, where he taught until his death in 1956. (...) Stoner's colleagues, who held him in no particular esteem when he was alive, speak of him rarely now; to the older ones, his name is a reminder of the end that awaits them all, and to the younger ones it is merely a sound which evokes no sense of the past and no identity with which they can associate themselves or their careers."

John Williams (1922-1994). Stoner (1965). London: Vintage Books, p. 3-4

quarta-feira, 10 de julho de 2013

Pulp


"Por que eu não podia simplesmente ser um cara assistindo a um jogo de beisebol? Interessado no resultado. Por que não podia ser um cozinheiro fritando ovos, desligado? Por que não podia ser uma mosca no pulso de alguém, rastejando sublime e interessada? Por que não podia ser um galo num galinheiro, catando milho? Por que aquilo?" (p. 128)
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"Eram três horas da tarde. Peguei um tamborete e me sentei. O garçom apareceu. Cara de solitário. Não tinha sobrancelha nenhuma. Cruzinhas verdes pintadas nas unhas. Um tipo maluco. Não havia como evitá-los. A maior parte do mundo estava doida. E a parte que não era doida era furiosa. E a parte que não era doida nem furiosa era apenas idiota. Eu não tinha chance. Só aguentar e esperar pelo fim. Era trabalho duro. O trabalho mais duro imaginável." (p. 125)

Charles Bukowski. Pulp (1994). Porto Alegre: L&PM, 2012

sábado, 6 de julho de 2013

Amar é pão feito em casa


"ai daqueles
que se amaram sem nenhuma briga
aqueles que deixaram
que a mágoa nova
virasse chaga antiga

ai daqueles que se amaram
sem saber que amar é pão feito em casa
e que a pedra só não voa
porque não quer
não porque não tem asa"

Paulo Leminski (1944-1989). Distraídos venceremos (1987). São Paulo: Brasiliense, 1995, p. 74

Voar


"Mas foi no vôo que se explicaram seus braços compridos e desajeitados: eram asas. E o olho um pouco estúpido, aquele olhar estúpido só combinava com as larguras do pensamento pleno. Andava mal no diário, mas voava. Voava tão bem que até parecia arriscar a vida, o que era um luxo. Andava ridículo, cuidadoso, o pato feio. No chão, ele era um paciente."

Clarice Lispector. A descoberta do mundo (crônicas: 1967-1973). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984, p. 615

terça-feira, 2 de julho de 2013

El túnel


"Creo haber dicho que me he propuesto hacer este relato en forma totalmente imparcial y ahora daré la primera prueba, confesando uno de mis peores defectos: siempre he mirado con antipatía y hasta con asco a la gente, sobre todo a la gente amontonada; nunca he soportado las playas en verano. Algunos hombres, algunas mujeres aisladas me fueron muy queridos, por otros sentí admiración (no soy envidioso), por otros tuve verdadera simpatía; por los chicos siempre tuve ternura y compasión (sobre todo cuando, mediante un esfuerzo mental, trataba de olvidar que al fin serían hombres como los demás); pero, en general, la humanidad me pareció siempre detestable. No tengo inconvenientes en manifestar que a veces me impedía comer en todo el día o me impedía pintar durante una semana el haber observado un rasgo; es increíble hasta qué punto la codicia, la envidia, la petulancia, la grosería, la avidez y, en general, todo ese conjunto de atributos que forman la condición humana pueden verse en una cara, en una manera de caminar, en una mirada. Me parece natural que después de un encuentro así uno no tenga ganas de comer, de pintar, ni aun de vivir. Sin embargo, quiero hacer constar que no me enorgullezco de esta característica: sé que es una muestra de soberbia y sé, también, que mi alma ha albergado muchas veces la codicia, la petulancia, la avidez y la grosería. Pero he dicho que me propongo narrar esta historia con entera imparcialidad, y así lo haré."

Ernesto Sabato. El túnel (1948). Barcelona: Austral, 2011, p. 47-48