sexta-feira, 31 de maio de 2013

ser EU


"Sigo mais contente, mais resolvido, mais firme. Inaugurando novas fases, novas frases, novos sonhos. Hoje eu brindo a alegria que é ser EU. Um brinde a quem me tem. E quando eu digo que sou minha melhor companhia não é pra mostrar pra ninguém o que está perdendo, é pra mostrar pra mim o que eu estava perdendo. Hoje eu gosto mais de mim porque descobri que sou insuportavelmente incrível e só pessoas incríveis conseguem vibrar na mesma frequência."

Dragões


"Dragões, você sabe, são animais mitológicos. Dragões não existem. Como escritores, músicos, pintores, filósofos, ou todas essas pessoas que – loucas – querem sentir num mundo em que é ridículo sentir. Você tem é que ganhar, conquistar poder e glória. Os dragões desprezam esse paraíso. Têm asas e querem voar. Como os anjos."

Caio Fernando Abreu. A vida gritando nos cantos. p.153.

sexta-feira, 24 de maio de 2013

esta viveu


"Fora das vezes em que quase morri para sempre, quantas vezes num silêncio humano - que é o mais grave de todos do reino animal -, quantas vezes num silêncio humano minha alma agonizando esperava por uma morte que não vinha. E como escárnio, por ser o contrário do martírio em que minha alma sangrava, era quando o corpo mais florescia. Como se meu corpo precisasse dar ao mundo uma prova contrária de minha morte interna para esta ser mais secreta ainda. Morri de muitas mortes e mantê-las-ei em segredo até que a morte do corpo venha, e alguém, adivinhando, diga: esta, esta viveu."

Clarice Lispector. A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. p. 178

O Deus Selvagem



"Ouça o choro do recém-nascido no momento em que vem à luz - assista às agonias da morte no momento final - e então diga se o que começa e termina dessa forma pode estar destinado ao prazer.

É bem verdade que nós seres humanos fazemos tudo da forma mais rápida possível para nos afastarmos desses dois pontos, corremos o mais rápido possível para esquecer o choro do nascimento e transformá-lo na alegria de ter dado vida a um ser. E quando alguém morre nós imediatamente dizemos: em paz ele se foi, a morte é um sono, um sono tranquilo - algo que dizemos não pelo bem daquele que morreu, pois as nossas palavras em nada podem ajudá-lo, mas pelo nosso próprio bem, para que não percamos o entusiasmo pela vida, para alterarmos tudo com vistas a um aumento do entusiasmo pela vida durante o intervalo entre o choro do nascimento e o gemido da morte, entre o berro da mãe e a repetição do mesmo berro pelo filho, quando este vem a morrer.

Imagine um belo e esplêndido salão onde tudo é feito para gerar alegria e diversão - mas a entrada para esse lugar é uma escada asquerosa, enlameada, horrível, pela qual é impossível passar sem que se fique repulsivamente sujo, e o preço que se tem de pagar para entrar é a prostituição, e quando o dia amanhece a diversão termina e tudo acaba com você sendo chutado para o lado de fora novamente - mas ao longo de toda a noite tudo é feito para manter e inflamar a diversão e o prazer!

O que é a reflexão? É simplesmente refletir sobre estas duas perguntas: como foi que eu me meti nisso e como é que eu faço para sair dessa novamente, como é que isso termina? O que é a irreflexão? É conjuminar tudo de modo a afogar no esquecimento tudo o que diz respeito à entrada e à saída, é conjuminar tudo para reexplicar e atenuar a entrada e a saída, perdendo-se simplesmente no intervalo entre o grito do nascimento e a repetição desse grito quando aquele que nasce enfim se extingue nas agonias da morte."

Søren Kierkegaard (filósofo dinamarquês, 1813-1855). Citado por A. Alvarez. O Deus Selvagem: um estudo do suicídio. São Paulo: Companhia das Letras, 1999, p. 125

Imagem: A. Alvarez, autor de O Deus Selvagem

domingo, 19 de maio de 2013

Meu jardim



"Meu conceito de jardim
determina 
o que é praga 
ao redor de mim."

Affonso Romano de Sant'Anna. Poesia reunida - Volume 2. Porto Alegre: L&PM, 2007, p. 277

Artesão



"Quero trabalhar a minha morte e não deixam.
Obrigam-me a morrer a morte alheia
e a viver
a entrecortada vida com artigos, orgasmos, aulas
e a asfixiante dispersão urbana.

Minha morte, no entanto, me chama, me espera.
Às vezes, desconfiada, impaciente outras.
Quer dedicação. Preciso trabalhá-la.
Não como o suicida
e seu compulsivo equívoco,
mas como o artesão."

Affonso Romano de Sant'Anna. Poesia reunida - Volume 2. Porto Alegre: L&PM, 2007, p. 217

O ovo e a galinha



"Já me foi dado muito; isto: uma vez ou outra, com o coração batendo pelo privilégio, eu pelo menos sei que não estou reconhecendo! com o coração batendo de emoção, eu pelo menos não compreendo! com o coração batendo de confiança, eu pelo menos não sei."

Clarice Lispector. O ovo e a galinha. In: A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. p. 324

quinta-feira, 16 de maio de 2013

Ser professor



Ser professor, para mim, é um prazer, mas também um sofrimento. Prazer, quando eu consigo fazer contato com meus alunos, mesmo que em meio a discussões e desacordos (é aquele fervilhar de olhares, aquela troca profícua entre espíritos sintonizados, interessados). É bom demais! Sofrimento, quando não há contato (ou se há, é com um ou outro gato pingado), e, nesses casos, a minha vontade é de ir embora, sumir. Ainda bem que na maioria das vezes há contato. Mas quando não há, o sofrimento é demais. A sensação de fracasso é terrível. Uma vez, quando fui dar uma palestra para adolescentes numa escola particular de Pará de Minas, senti um vazio tão grande que era de assustar (nenhuma conexão!). Eu só estava ali em corpo. Foi um horror! De vez em quando isso acontece... Faz parte. Apesar de..., eu amo ser professor.

Na foto, minha turma de História na UFMG – Formandos 1997. Sou o primeiro em pé, à esquerda (aos 22 anos). Minha opção: ser professor

Não há nada para ti lá fora



"onde vais, valter hugo mãe, tão sem ter

com quem, tão precipitado no vazio do
caminho à procura de quê

porque não ficas em casa, resignadamente só,
a ver como a vida se gasta sem culpa nem glória

é um rapaz estranho, valter hugo mãe, aí metido
num amor nenhum que te magoa e esperas ter
lugar no mundo, com tanto que o mundo tem de
distraído

devias morrer no dia dezoito de março de
mil novecentos e noventa e seis, como dizes que
vai acontecer, para que se acabe essa
imprecisa sentença que é a vida

volta a fechar a porta, não há nada para ti lá fora
e está frio, tens reumatismo, dói-te a cabeça, estás
gordo e careca, não faz sentido sequer que
tentes chegar às luzes esbatidas da marginal, ainda
que seja só ao lado menos percorrido pelos banhistas

volta a fechar a porta e talvez durmas, está um
agradável silêncio no prédio, tenho a certeza de que
reparaste nisso"

Valter Hugo Mãe (poeta angolano, 1971-). Mil e setenta e um poemas. Brasília: Thesaurus, 2008

Tempo



"devagar, o tempo transforma tudo em tempo.
o ódio transforma-se em tempo, o amor
transforma-se em tempo, a dor transforma-se
em tempo.

os assuntos que julgámos mais profundos,
mais impossíveis, mais permanentes e imutáveis,
transformam-se devagar em tempo.

por si só, o tempo não é nada.
a idade de nada é nada.
a eternidade não existe.
no entanto, a eternidade existe.

os instantes dos teus olhos parados sobre mim eram eternos.
os instantes do teu sorriso eram eternos.
os instantes do teu corpo de luz eram eternos.

foste eterna até ao fim."

José Luís Peixoto (poeta português, 1974-). In: A casa, a escuridão

Desolation



"À noite, na cama, aquecido e feliz no meu saco de dormir no bom beliche de cânhamo, via minha mesa e minhas roupas à luz do luar e sentia: 'Pobre desse rapaz Raymond, o dia dele é tão cheio de mágoa e preocupação, as razões dele são tão efêmeras, precisar viver é algo tão aterrador e penoso...', e com isso, dormia como um carneirinho. Será que somos anjos caídos que não quiseram acreditar que o nada é nada e portanto nascemos para perder aqueles que amamos e os amigos queridos um por um e afinal nossa própria vida, para ter essa comprovação?... Mas a manhã fria retornava, com nuvens escapando da garganta Lightning como se fossem uma fumaça gigante, o lago lá embaixo sempre de um cerúleo neutro, e o vazio o mesmo de sempre. Ó dentes da terra que rangem, para onde tudo isso nos levaria a não ser para alguma eternidade dourada, para comprovar que sempre estivemos errados, para comprovar que a comprovação em si mesma não valia nada..."

Jack Kerouac. Os vagabundos iluminados (1958). Porto Alegre: L&PM, 2011. p. 246

Imagem: vista de uma trilha em direção ao pico Desolation, onde Jack Kerouac passou 63 dias como observador de incêndios ("fire lookout") no verão de 1956

Para além da curva da estrada



"Para além da curva da estrada
Talvez haja um poço, e talvez um castelo,
E talvez apenas a continuação da estrada.
Não sei nem pergunto.
Enquanto vou na estrada antes da curva
Só olho para a estrada antes da curva,
Porque não posso ver senão a estrada antes da curva.
De nada me serviria estar olhando para outro lado
E para aquilo que não vejo.
Importemo-nos apenas com o lugar onde estamos.
Há beleza bastante em estar aqui e não noutra parte qualquer.
Se há alguém para além da curva da estrada,
Esses que se preocupem com o que há para além da curva da estrada.
Essa é que é a estrada para eles.
Se nós tivermos que chegar lá, quando lá chegarmos saberemos.
Por ora só sabemos que lá não estamos.
Aqui há só a estrada antes da curva, e antes da curva
Há a estrada sem curva nenhuma."

Fernando Pessoa [Alberto Caeiro]. In: Poemas inconjuntos. Ed. Fernando Cabral Martins, 2001

Indiferença


"Ah! Ser indiferente!
É do alto do poder da sua indiferença
Que os chefes dos chefes dominam o mundo.

Ser alheio até a si mesmo!
É do alto do sentir desse alheamento
Que os mestres dos santos dominam o mundo.

Ser esquecido de que se existe!
É do alto do pensar desse esquecer
Que os deuses dominam o mundo.

(Não ouvi o que dizias…
Ouvi só a música e nem essa ouvi…
Tocavas e falavas ao mesmo tempo…
Com quem?
Com alguém em quem tudo acabava no dormir do mundo…)"

Fernando Pessoa [Álvaro de Campos]. In: Poesia. Ed. Teresa Rita Lopes, 2002

quarta-feira, 1 de maio de 2013

Tempo voraz



"Tempo voraz, corta as garras do leão,
E faze a terra devorar sua doce prole;
Arranca os dentes afiados da feroz mandíbula do tigre,
E queima a eterna fênix em seu sangue;
Alegra e entristece as estações enquanto corres,
E ao vasto mundo e todos os seus gozos passageiros,
Faze aquilo que quiseres, Tempo fugaz;
Mas proíbo-te um crime ainda mais hediondo:
Ah, não marques com tuas horas a bela fronte do meu amor,
Nem traces ali as linhas com tua arcaica pena;
Permite que ele siga teu curso, imaculado,
Levado pela beleza que a todos sustém.
Embora sejas mau, velho Tempo, e apesar de teus erros,
Meu amor permanecerá jovem em meus versos."

William Shakespeare (1564-1616). Soneto nº 19. Tradução de Thereza Christina Motta

Estado de graça



"Quem já conheceu o estado de graça reconhecerá o que vou dizer. Não me refiro à inspiração, que é uma graça especial que tantas vezes acontece aos que lidam com arte.

O estado de graça de que falo não é usado para nada. É como se viesse apenas para que se soubesse que realmente se existe. Nesse estado, além da tranquila felicidade que se irradia de pessoas e coisas, há uma lucidez que só chamo de leve porque na graça tudo é tão, tão leve. É uma lucidez de quem não adivinha mais: sem esforço, sabe. Apenas isto: sabe. Não perguntem o quê, porque só posso responder do mesmo modo infantil: sem esforço, sabe-se. (...)

As descobertas nesse estado são indizíveis e incomunicáveis. É por isso que, em estado de graça, mantenho-me sentada, quieta, silenciosa. É como numa anunciação. Não sendo porém precedida pelos anjos que, suponho, antecedem o estado de graça dos santos, é como se o anjo da vida viesse me anunciar o mundo. (...)

Deus sabe o que faz: acho que está certo o estado de graça não nos ser dado frequentemente. Se fosse, talvez passássemos definitivamente para 'o outro lado' da vida, que também é real mas ninguém nos entenderia jamais. Perderíamos a linguagem em comum. (...)

Não, mesmo se dependesse de mim, eu não quereria ter com muita frequência o estado de graça. Seria como cair num vício, iria me atrair como um vício, eu me tornaria contemplativa como os fumadores de ópio. E se aparecesse mais a miúdo, tenho certeza de que eu abusaria: passaria a querer viver permanentemente em graça. E isto representaria uma fuga imperdoável ao destino simplesmente humano, que é feito de luta e sofrimento e perplexidade e alegrias menores."

Clarice Lispector. A descoberta do mundo (crônicas de 1967-1973). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984, p. 119-121

São duas velhas



"São duas velhas, lado a lado, no café.
Não se olham: certezas em cada uma.
A da direita: dedos no ar ao ritmo das queixas.
O ar, dócil, percebe estas velhas: em poucos anos
serão suas companheiras.
Chama-lhes irmãs pequenas, ingênuas.
As velhas prosseguem vivas e a falar de dinheiro.
Deus é interrompido pelo preço do arroz, nas conversas.
Descrevem a doença, a fraqueza e, logo a seguir, acusam
de impiedade quem ainda não é tão doente quanto elas.
Alguém as enganou.
Provavelmente sacrificam a vida pelos filhos;
esperaram pelo futuro.
Agora ele chegou e a única novidade que traz é o cansaço;
a dificuldade de movimentos,
a maneira como facilmente se esquecem do que ainda ontem
consideravam imprescindível.
Não vão morrer, hoje, já, porque não trouxeram o coração.
Voltarão, mais tarde, a casa e às orações,
depois de desejarem intimamente que os filhos se tornem ricos
e que a amiga morra primeiro."

Gonçalo M. Tavares (poeta angolano, 1970-). Poema extraído da revista "Poesia Sempre", n. 26, ano 14, 2007. Edição da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro

ah, para quê?



"Então, por um instante, tive a mais tremenda sensação de pena dos seres humanos, sejam eles o que forem, o rosto, a boca cheia de dor, personalidades, tentativas de ser alegres, pequenas petulâncias, sensação de perda, piadinhas chatas e vazias que logo seriam esquecidas: ah, para quê? Eu sabia que o som do silêncio estava em todo lugar e que portanto tudo em todo lugar era silêncio. Suponha que de repente acordássemos e víssemos que o que achamos ser isto ou aquilo na verdade não é nada disto nem daquilo?"

Jack Kerouac. Os vagabundos iluminados (1958). Porto Alegre: L&PM, 2011, p. 204

Foto: Jack Kerouac (1922-1969) e Allen Ginsberg (1926-1997)

Não sei por onde vou


...

"Ah, que ninguém me dê piedosas intenções,
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: 'vem por aqui'!
A minha vida é um vendaval que se soltou.
É uma onda que se alevantou.
É um átomo a mais que se animou…
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
— Sei que não vou por aí!"

José Régio (poeta português, 1901-1969). In: Poemas de Deus e do Diabo. 4ª ed., Lisboa: Portugália, 1955, pp. 108-110

Um problema realmente sério



"No dia seguinte os jornais já não davam destaque à morte de Marly. Tudo cansa, meu anjo, como dizia o poeta inglês. Os mortos têm que ser renovados, a imprensa é uma necrófila insaciável. Uma notícia nas colunas sociais chamou minha atenção: o casamento de Eva Cavalcante Méier com Luís Vieira Souto não mais se realizaria naquela semana. Alguns colunistas lamentavam que o enlace tivesse sido cancelado. Um deles exclamava: o que será feito com a imensidão de presentes que o ex-futuro casal já recebeu de todos os cantos do Brasil? Um problema realmente sério."

Rubem Fonseca. O cobrador (1979). 3ª ed. São Paulo: Cia das Letras, 1989, p. 90.

D. Palma



"Ficou severo na morte o pobre corpo,
o rosto ancestralmente conhecido.
Olhei-a no caixão durante horas.
Depois da oração fúnebre,
da água benta aspergida,
depois do hino do mártir
cantado em sua memória,
vai suavizar-se o rosto, pensei,
a boca vai conformar-se
à alegria de quem sempre soube:
a vida é uma dor contínua, mas Deus é pai amoroso.
Em vão.
Chegou o filho de longe, o último,
a neta bastarda
por quem seus peitos velhos renasceram,
em vão.
D. Palma não abriu os olhos,
não ameaçou sorrir, os lábios colados.
Só uma pessoa falou: 'Que semblante sereno!'
Mas não era verdade, eu não tive o sinal."
...

Adélia Prado. A faca no peito (1988). In: Poesia reunida. São Paulo: Arx, 1991, p. 381

A pressão da alegria



"O pai cavando o chão mostrou pra nós,
com o olho da enxada, o bicho bobo,
a cobra de duas cabeças.
Saía dele o cheiro de óleo e graxa,
cheiro-suor de oficina, o brabo cheiro bom.
Nós tínhamos comido a janta quente
de pimenta e fumaça, angu e mostarda.
Pisando a terra que ele desbarrancava aos socavões,
catava tanajuras voando baixo,
na poeira de ouro das cinco horas.
A mãe falou pra mim: 'Vai na sua avó buscar polvilho,
vou fritar é uns biscoitos pra nós'.
A voz dela era sem acidez. 'Arreda, arreda',
o pai falava com amor.
As tanajuras no sol, a beira da linha,
o verde do capim espirrando entre os tijolos
da beirada da casa descascada, a menina embaraçada
com a opressão da alegria, o coração doendo,
como se triste fosse."

Adélia Prado. Bagagem (1976). In: Poesia reunida. São Paulo: Arx, 1991, p. 131