sexta-feira, 26 de abril de 2013

Noite de inverno no deserto



"Voltei para o acampamento e estendi o saco de dormir e agradeci ao Senhor por tudo que Ele me oferecia. Agora a lembrança de toda aquela tarde diabólica fumando maconha com mexicanos de mãos leves em uma sala cheirando a mofo iluminada por velas era um sonho, um sonho ruim, como um dos sonhos que tive sobre a esteira de palha no Riacho do Buda, na Carolina do Norte. Meditei e rezei. Realmente não existe nenhum tipo de noite de sono no mundo que possa se comparar à noite de sono que se tem em uma noite de inverno no deserto, desde que se esteja bem acomodado e aquecido em um saco de dormir de pena de pato. O silêncio é tão intenso que dá para ouvir o próprio sangue rugindo nos ouvidos, mas mais alto do que isso, de longe, é o bramido misterioso que eu sempre identifico com o bramido do diamante da sabedoria, o misterioso bramido do próprio silêncio, que é um magnífico Shhhh que serve como lembrete de algo que a gente parece ter esquecido em meio à estafa dos dias desde que nascemos. Gostaria de explicar isso às pessoas que eu amo, à minha mãe, ao Japhy, mas simplesmente não existem palavras que possam descrever o nada e a pureza daquilo."

Jack Kerouac. Os vagabundos iluminados (1958). Porto Alegre: L&PM, 2011. p. 162

Eu consisto, eu consisto



"Estou sentindo uma clareza tão grande que me anula como pessoa atual e comum: é uma lucidez vazia, como explicar? assim como um cálculo matemático perfeito do qual, no entanto, não se precise. Estou por assim dizer vendo claramente o vazio. E nem entendo aquilo que entendo: pois estou infinitamente maior do que eu mesma, e não me alcanço. Além do quê: que faço dessa lucidez? Sei também que esta minha lucidez pode-se tornar o inferno humano — já me aconteceu antes. Pois sei que — em termos de nossa diária e permanente acomodação resignada à irrealidade — essa clareza de realidade é um risco. Apagai, pois, minha flama, Deus, porque ela não me serve para viver os dias. Ajudai-me a de novo consistir dos modos possíveis. Eu consisto, eu consisto, amém."

Clarice Lispector (1920-1977). Aprendendo a viver. Rio de Janeiro: Rocco, 2004

sexta-feira, 19 de abril de 2013

Os vagabundos iluminados



"O quintal era cheio de pés de tomate prestes a amadurecer, e hortelã, hortelã, tudo cheirava a hortelã, e uma bela árvore antiga sob a qual eu adorava me sentar para meditar naquelas noites frescas estreladas e perfeitas de outubro na Califórnia, incomparáveis às de qualquer lugar do mundo. Tínhamos uma cozinhinha perfeita com fogão a gás, mas sem geladeira, mas não fazia mal. Também tínhamos um banheirinho perfeito com banheira e água quente, e um cômodo principal, coberto com almofadas e esteiras de palha e colchões para dormir, e livros, livros, centenas de livros, tudo desde Catulo até Pound incluindo Blyth e discos de Bach e Beethoven (e até mesmo um disco bem animadinho de Ella Fitzgerald com Clark Terry tocando trompete de maneira muito interessante) e um bom fonógrafo Webcor de três velocidades que tocava alto o bastante para mandar o telhado pelos ares: e o telhado não passava de compensado, as paredes também; certa noite, em uma de nossas bebedeiras zen-lunáticas, exultante, enfiei o punho através da parede, e Coughlin viu o que eu tinha feito e enfiou uns dez centímetros da cabeça ali."

Jack Kerouac. Os vagabundos iluminados (1958). Porto Alegre: L&PM, 2011. p. 21

A descoberta do mundo


"Eu ia andando pela Avenida Copacabana e olhava distraída edifícios, nesga de mar, pessoas, sem pensar em nada. Ainda não percebera que na verdade não estava distraída, estava era de uma atenção sem esforço, estava sendo uma coisa muito rara: livre." (p. 484)
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"Se recebo um presente dado com carinho por pessoa de quem não gosto - como se chama o que sinto? A saudade que se tem de pessoa de quem a gente não gosta mais, essa mágoa e esse rancor - como se chama? Estar ocupada - e de repente parar por ter sido tomada por uma súbita desocupação desanuviadora e beata, como se uma luz de milagre tivesse entrado na sala: como se chama o que se sentiu?" (p. 11)
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"O resto do dia poderia ter sido chamado de horrível, se o menino tivesse a tendência de pôr as coisas em termos de horrível ou não horrível. Ou poderia se chamar de 'deslumbrante', se ele fosse daqueles que esperam que as coisas o sejam ou não." (p. 470)
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"Morrer deve ser assim: por algum motivo estar-se tão cansado que só o sono da morte compensa. Morrer às vezes parece um egoísmo. Mas quem morre às vezes precisa muito." (p. 205)
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"São José é o símbolo da humildade. Ele sabia que não era o pai da Criança e cuidava da virgem grávida como se ele a tivesse germinado.

São José é a bondade humana. É o auto-apagamento no grande momento histórico. Ele é o que vela pela humanidade." (p. 233)
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"- Vinícius de Morais e eu - o poetinha me deu autorização expressa para dizer isso - Vinícius e eu gostaríamos de ser cremados depois que tudo terminasse. O poeta, porque sofre de claustrofobia, e eu porque acho mais higiênico. Mas como só se cremam corpos em São Paulo, temos medo de morrer antes de pegar o avião que nos leve até lá.

E mais tarde:

- Sou um existencialista, Clarice. Aceito cada momento como se fosse o último. Resultado: sou um drama permanente. A cada minuto consulto o meu coração e ajo em consequência." (p. 714)
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"A busca do prazer me tem sido água ruim: colo a boca e sinto a bica enferrujada, escorrem dois pingos de água morna: é a água seca. Não, antes o sofrimento legítimo que o prazer forçado." (p. 637)

Clarice Lispector. A descoberta do mundo (crônicas de 1967-1973). Editora Nova Fronteira.

Não tenho centro, cetro ou direção



soníferos eu lanço contra as feras
que me devoram a solidez do sono.
a solidão em si não me apavora.
os outros são o inferno, o purgatório
e às vezes são também o paraíso.
não sei do inverno que virá ou não
virá, ainda não formei juízo.
aliás, juízo sempre me faltou
e há de faltar, espero, até a morte,
esse capítulo da história natural,
contra o qual não farei rebelião.
amparo metafísico? não tenho.
invejo o céu, a dança das esferas,
morro de inveja do Ptolomeu,
vagando a salvo nas cosmologias
com Deus no centro, o resto ao seu redor.
não tenho centro, cetro ou direção.
a mim só não me falta coração

Geraldo Carneiro (1952-). Poemas reunidos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2010. p. 162

As pequenas burguesas de Tchecov



adoro as pequenas burguesas de Tchecov
com suas vidas suspensas,
como coaguladas, vagando entre
cristais e coisa nenhuma,
no circo das circunvoluções do nada
enquanto paira sempre no ar o segredo
não revelado, a palavra impronunciada
o eterno adiamento da aventura
o desejo de ir a Moscou
o eco de um baile em São Petersburgo
e essas criaturas sempre confinadas
entre nada e coisa nenhuma
em suas ânsias e insignificâncias
até depois do fim do fim do mundo
quando o provável deus ex machina
decreta que haverá outro princípio
e elas voltam a vagar como fantasmas
em meio à mediocridade do infinito

Geraldo Carneiro (1952-). Poemas reunidos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2010. p. 126

Na montanha



"Foi lindo. O tom rosado desapareceu e então um anoitecer arroxeado se impôs e o bramir do silêncio parecia o murmúrio de uma maré de diamantes que atravessava as camadas líquidas dos nossos ouvidos, suficiente para acalmar um homem durante mil anos. Rezei por Japhy, por sua segurança e felicidade futuras e para que ele se tornasse um Buda no final. Tudo aquilo era completamente sério, tudo completamente alucinado, tudo completamente feliz. (...)

Todos os músculos doloridos e a fome na minha barriga já estavam bem ruins, e as pedras escuras que nos rodeavam, o fato de que não havia nada ali para acalmar você com beijos e palavras gentis, mas bastava estar ali meditando e orando pelo mundo acompanhado de outro jovem intenso - já estava bom demais ter nascido só para morrer, como todos nós. Algo resultará disso nas vias lácteas da eternidade que se estendem à frente de nossos olhos espectrais nada amarelados, meus amigos. Tive vontade de dizer a Japhy tudo que estava pensando mas sabia que não fazia diferença e além disso ele já sabia mesmo e o silêncio é a montanha dourada."

Jack Kerouac. Os vagabundos iluminados (1958). Porto Alegre: L&PM, 2011. p. 75-6