sexta-feira, 20 de julho de 2012

The Humbling

'Do one moment. We're only dealing with the single moment. Play the moment, play whatever plays for you in that moment, and then go on to the next moment. It doesn't matter where you're going. Don't worry about that. Just take it moment, moment, moment, moment. The job is to be in that moment, with no concern about the rest and no idea where you're going next. Because if you can make one moment work, you can go anywhere.'

Philip Roth, The Humbling. Vintage books,2009, p. 34

A paixão segundo G.H.


Durante as horas de perdição tive a coragem de não compor nem organizar. E sobretudo a de não prever. Até então eu não tivera a coragem de me deixar guiar pelo que não conheço e em direção ao que não conheço: minhas previsões condicionavam de antemão o que eu veria. Não eram as antevisões da visão: já tinham o tamanho de meus cuidados. Minhas previsões me fechavam o mundo. (p. 21)

(...)

Abri um pouco a porta estreita do guarda-roupa, e o escuro de dentro escapou-se como um bafo. Tentei abri-lo um pouco mais, porém a porta ficava impedida pelo pé da cama, onde esbarrava. Dentro da brecha da porta, pus o quanto cabia de meu rosto. E, como o escuro de dentro me espiasse, ficamos um instante nos espiando sem nos vermos. Eu nada via, só conseguia sentir o cheiro quente e seco como o de uma galinha viva. Empurrando, porém, a cama para mais perto da janela, consegui abrir a porta uns centímetros a mais.

Então, antes de entender, meu coração embranqueceu como cabelos embranquecem. (p. 49-50)

(...)

- Porque, vê, eu sabia que estava entrando na bruta e crua glória da natureza. Seduzida, eu no entanto lutava como podia contra as areias movediças que me sorviam: e cada movimento que eu fazia para “não, não!”, cada movimento mais me empurrava sem remédio; não ter forças para lutar era o meu único perdão. (p. 68)

(...)

A barata é um ser feio e brilhante. A barata é pelo avesso. Não, não, ela mesma não tem lado direito nem avesso: ela é aquilo. O que nela é exposto é o que em mim eu escondo: de meu lado a ser exposto fiz o meu avesso ignorado. (p. 81)

(...)

Eu começava a sentir que meu passo mal-assombrado seria irremediável, e que eu estava pouco a pouco abandonando a minha salvação humana. Sentia que o meu de dentro, apesar de matéria fofa e branca, tinha no entanto força de rebentar meu rosto de prata e beleza, adeus beleza do mundo. Beleza que me é agora remota e que não quero mais – estou sem poder mais querer a beleza – talvez nunca a tivesse querido mesmo, mas era tão bom! (p. 87)

(...)

O neutro é inexplicável e vivo, procura me entender: assim como o protoplasma e o sêmen e a proteína são de um neutro vivo. E eu estava toda nova, como uma recém-iniciada. Era como se antes eu estivesse estado com o paladar viciado por sal e açúcar, e com a alma viciada por alegrias e dores – e nunca tivesse sentido o gosto primeiro. E agora sentia o gosto do nada. Velozmente eu me desviciava, e o gosto era novo como o do leite materno que só tem gosto para boca de criança. Com o desmoronamento de minha civilização e de minha humanidade – o que me era um sofrimento de grande saudade – com a perda da humanidade, eu passava orgiacamente a sentir o gosto da identidade das coisas. 

(...)

Meu amor, é assim como o mais insípido néctar – é como o ar que em si mesmo não tem cheiro. Até então meus sentidos viciados estavam mudos para o gosto das coisas. Mas a minha mais arcaica e demoníaca das sedes me havia levado subterraneamente a desmoronar todas as construções. A sede pecaminosa me guiava – e agora eu sei que sentir o gosto desse quase nada é a alegria secreta dos deuses. É um nada que é o Deus – e que não tem gosto. (p. 107)

(...)

O que ainda me assustava era que até mesmo o horror impunível ia ser generosamente reabsorvido pelo abismo do tempo interminável, pelo abismo das alturas intermináveis, pelo profundo abismo do Deus: absorvido pelo seio de uma indiferença. (p. 125)

(...)

A barata e eu somos infernalmente livres porque a nossa matéria viva é maior que nós, somos infernalmente livres porque minha própria vida é tão pouco cabível dentro de meu corpo que não consigo usá-la. Minha vida é mais usada pela terra do que por mim, sou tão maior do que aquilo que eu chamava de “eu” que, somente tendo a vida do mundo, eu me teria. (p. 126)

(...)

Eu estava em pleno seio de uma indiferença que é quieta e alerta. E no seio de um indiferente amor, de um indiferente sono acordado, de uma dor indiferente. De um Deus que, se eu amava, não compreendia o que Ele queria de mim. Sei, Ele queria que eu fosse o seu igual, e que a Ele me igualasse por um amor de que eu não era capaz.

Por um amor tão grande que seria de um pessoal tão indiferente – como se eu não fosse uma pessoa. Ele queria que eu fosse com Ele o mundo. Ele queria minha divindade humana, e isso tivera que começar por um despojamento inicial do humano construído.



E eu dera o primeiro passo: pois pelo menos eu já sabia que ser um humano é uma sensibilização, um orgasmo da natureza. E que, só por uma anomalia da natureza, é que, em vez de sermos o Deus, assim como os outros seres O são, em vez de O sermos, nós queríamos vê-Lo, se fôssemos tão grandes quanto Ele. Uma barata é maior que eu porque sua vida se entrega tanto a Ele que ela vem do infinito e passa para o infinito sem perceber, ela nunca se descontinua. (p. 130)

(...)

A curiosidade me expulsara do aconchego – e eu encontrava o Deus indiferente que é todo bom porque não é ruim nem bom, eu estava no seio de uma matéria que é a explosão indiferente de si mesma. (p. 131)

(...)

O que é Deus estava mais no barulho neutro das folhas ao vento que na minha antiga prece humana.

A menos que eu pudesse fazer a prece verdadeira, e que aos outros e a mim mesma pareceria a cabala de uma magia negra, um murmúrio neutro.

Esse murmúrio, sem nenhum sentido humano, seria a minha identidade tocando na identidade das coisas. Sei que, em relação ao humano, essa prece neutra seria uma monstruosidade. Mas em relação ao que é Deus, seria: ser. (p. 136)

(...)

Estar vivo é uma grossa indiferença irradiante. Estar vivo é inatingível pela mais fina sensibilidade. Estar vivo é inumano – a meditação mais profunda é aquela tão vazia que um sorriso se exala como de uma matéria. E ainda mais delicada serei, e como estado mais permanente. Estou falando da morte? estou falando de depois da morte? Não sei. Sinto que “não humano” é uma grande realidade, e que isso não significa “desumano”, pelo contrário: o não humano é o centro irradiante de um amor neutro em ondas hertzianas. (p. 175)

(...)

Enfim, enfim quebrara-se realmente o meu invólucro, e sem limite eu era. Por não ser, eu era. Até o fim daquilo que eu não era, eu era. O que não sou eu, eu sou. Tudo estará em mim, se eu não for; pois “eu” é apenas um dos espasmos instantâneos do mundo. Minha vida não tem sentido apenas humano, é muito maior – é tão maior que, em relação ao humano, não tem sentido. Da organização geral que era maior que eu, eu só havia até então percebido os fragmentos. (p. 182)

Clarice Lispector, A paixão segundo G.H. (1964). 14ª ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1990

o humilde herdou

se eu sofro assim diante dessa
máquina de escrever
pense em como eu me sentiria
entre os colhedores
de alface em Salinas?

penso nos homens
que conheci nas
fábricas
sem qualquer chance de
escapar -
sufocados enquanto riem
de Bob Hope ou Lucille
Ball enquanto
2 ou 3 crianças jogam
bolas de tênis contra
as paredes.

alguns suicídios jamais são
registrados.

Charles Bukowski, O amor é um cão dos diabos (1977)

quarta-feira, 18 de julho de 2012

Deslimites

A menina apareceu grávida de um gavião.
Veio falou para a mãe: o gavião me desmoçou.
A mãe disse: Você vai parir uma árvore para
a gente comer goiaba nela.
E comeram goiaba.
Naquele tempo de dantes não havia limites
para ser.
Se a gente encostava em ser ave ganhava o
poder de alçar.
Se a gente falasse a partir de um córrego
a gente pegava murmúrios.
Não havia comportamento de estar.
Urubus conversavam sobre auroras.
Pessoas viravam árvore.
Pedras viravam rouxinóis.
Depois veio a ordem das coisas e as pedras
têm que rolar seu destino de pedra para o resto
dos tempos.
Só as palavras não foram castigadas com
a ordem natural das coisas.
As palavras continuam com seus deslimites.

Manoel de Barros, Retrato do artista quando coisa (1998)

À Morte


Morte, minha Senhora Dona Morte,
Tão bom que deve ser o teu abraço!
Lânguido e doce como um doce laço
E como uma raiz, sereno e forte.

Não há mal que não sare ou não conforte
Tua mão que nos guia passo a passo,
Em ti, dentro de ti, no teu regaço
Não há triste destino nem má sorte.

Dona Morte dos dedos de veludo,
Fecha-me os olhos que já viram tudo!
Prende-me as asas que voaram tanto!

Vim da Moiramo, sou filha de rei,
Má fada me encantou e aqui fiquei
À tua espera,... quebra-me o encanto!

Florbela Espanca, Reliquiae (1931, póstuma). In: Poemas de Florbela Espanca. São Paulo: Martins Fontes, 1996, p. 301

O visconde partido ao meio

- Está procurando caranguejos? - disse Medardo -, estou atrás de polvos. - E me mostrou sua presa.

Eram grandes polvos marrons e brancos. Estavam cortados em dois com um golpe de espada, mas continuavam a mover os tentáculos.

- Que se pudesse partir ao meio toda coisa inteira - disse meu tio, de bruços no rochedo, acariciando aquelas metades convulsivas de polvo -, que todos pudessem sair de sua obtusa e ignorante inteireza. Estava inteiro e para mim as coisas eram naturais e confusas, estúpidas como o ar: acreditava ver tudo e só havia a casca. Se você virar a metade de você mesmo, e lhe desejo isso, jovem, há de entender coisas além da inteligência comum dos cérebros inteiros. Terá perdido a metade de você e do mundo, mas a metade que resta será mil vezes mais profunda e preciosa. E você há de querer que tudo seja partido ao meio e talhado segundo sua imagem, pois a beleza, sapiência e justiça existem só no que é composto de pedaços.

Italo Calvino, O visconde partido ao meio (1952). São Paulo: Cia das Letras, 2011, p. 50

segunda-feira, 16 de julho de 2012

a aranha

então houve um tempo em
New Orleans
em que eu vivia com uma gorda,
Marie, no Bairro Francês
e fiquei bastante doente.
enquanto ela estava no trabalho
ajoelhei-me
naquela tarde
na cozinha e
rezei. não sou um homem religioso
mas era uma tarde escura demais
e eu rezei:
"caro Deus: se você me poupar,
prometo-lhe nunca mais tomar
outro trago".
fiquei ali de joelhos e foi como estar
num filme -
ao terminar minha oração
as nuvens se abriram e o sol
rasgou as cortinas
e deitou sobre mim.
então me ergui e fui dar uma cagada.
havia uma aranha enorme no banheiro da Marie.
mas caguei do mesmo jeito.
uma hora depois comecei a me sentir muito
melhor. dei uma volta pelo bairro
e sorri para as pessoas.
parei na mercearia e comprei
uma dúzia de cervejas para Marie.
comecei a me sentir tão bem que uma hora depois
me sentei na cozinha e abri
uma das cervejas.
esvaziei-a e depois outra
e então fui lá e
matei a aranha.
quando Marie voltou do trabalho
eu lhe dei um beijo daqueles,
depois sentei na cozinha e conversamos
enquanto ela preparava o jantar.
ela me perguntou o que eu tinha feito naquele dia
e eu lhe disse que tinha matado uma
aranha. ela não ficou
braba. era uma boa
pessoa.

Charles Bukowski, O amor é um cão dos diabos (1977). Porto Alegre, L&PM, 2011, p. 41

sexta-feira, 13 de julho de 2012

Paz


Ah, não me tragam originais
para ler, para corrigir, para louvar
sobretudo para louvar.
Não sou leitor do mundo nem espelho
de figuras que amam refletir-se
no outro
à falta de retrato interior.
Sou o Velho Cansado
que adora o seu cansaço e não o quer
submisso ao vão comércio da palavra.
Poupem-me, por favor ou por desprezo,
se não querem poupar-me por amor.
Não leio mais, não posso, que este tempo
a mim distribuído
cai do ramo e azuleja o chão varrido,
chão tão limpo de ambição
que minha só leitura é ler o chão.

(...)

O senhor saiu. Hora que volta? Nunca.
Nunca de corvo, nunca de São Nunca.
Saiu pra não voltar.
Tudo esqueceu: responder
cartas; sorrir
cumplicemente; agradecer
dedicatórias; retribuir
boas-festas; ir ao coquetel e à noite
de autógrafos-com-pastorinhas.

(...)

Vocês, garotos de colégio, não perguntem ao poeta
quando nasceu.
Ele não nasceu.
Não vai nascer mais.
Desistiu de nascer quando viu que o esperavam
garotos de colégio de lápis em punho
com professores na retaguarda comandando:
Cacem o urso-polar,
tragam-no vivo para fazer uma conferência.

(...)

Quero a paz das estepes
a paz dos descampados
a paz do pico de Itabira quando havia pico de Itabira
a  paz de cima das Agulhas Negras
a paz de muito abaixo da mina mais funda e esboroada
de Morro Velho
a paz
da paz.

Carlos Drummond de Andrade, Antologia Poética (1962)

Morte de Clarice Lispector

Enquanto te enterravam no cemitério judeu
de S. Francisco Xavier
(e o clarão de teu olhar soterrado
resistindo ainda)
o táxi corria comigo à borda da Lagoa
na direção de Botafogo
E as pedras e as nuvens e as árvores
no vento
mostravam alegremente
que não dependem de nós

Ferreira Gullar (1977)

Cinzas do Norte


Passei semanas no sobrado da Villa Road, sem sair, pintando dia e noite, destruindo e pintando outra vez, tentando encontrar a imagem em seu instante de plenitude. Não sei quanta coisa veio do acaso, quanta coisa veio dos estudos e esboços, esse difícil equilíbrio entre o acaso e a intenção. O que sei é que trabalhei de maneira exasperada, alucinada às vezes, às vezes rindo da minha própria desgraça. Formas mais ou menos figurativas, decompondo o retrato da família, até chegar à roupa e aos dejetos de Jano. Idéias e emoções que nos movem. Me livrei de um peso quando terminei esse trabalho, mas não me considero um artista, Lavo. Só quis dar algum sentido a minha vida. Tinha medo de morrer com os meus esboços, teria sido uma vida esvaziada...

(...)

Pensei em reescrever minha vida de trás para frente, de ponta-cabeça, mas não posso, mal consigo rabiscar, as palavras são manchas no papel, e escrever é quase um milagre... Sinto no corpo o suor da agonia. Amigo... Esse teto baixo, paredes vazias, ausência de cor e de céu... O sol e o céu do Rio e do Amazonas... nunca mais... Só essas paredes, e esse cheiro insuportável... Agora a minha própria voz zunindo e sinto fagulhas na cabeça, e a voz zunindo, fraca, dentro de mim... Não posso mais falar. O que restou de tudo isso? Um amigo, distante, no outro lado do Brasil. Não posso mais falar nem escrever. Amigo... sou menos que uma voz...

Milton Hatoum, Cinzas do Norte (2005). São Paulo, Companhia das Letras, 2010.

sábado, 7 de julho de 2012

Stupeur et tremblements

Comme l'a remarqué le commun des mortels, les toilettes sont un endroit propice à la méditation. Pour moi qui y étais devenue carmélite, ce fut l'occasion de réfléchir. Et j'y compris une grande chose: c'est qu'au Japon, l'existence, c'est l'entreprise.

Certes, c'est une vérité qui a déjà été écrite dans nombre de traités d'économie consacrés à ce pays. Mais il y a un mur de différence entre lire une phrase dans un essai et la vivre. Je pouvais me pénétrer de ce qu'elle signifiait pour les membres de la compagnie Yumimoto et pour moi.

Mon calvaire n'était pas pire que le leur. Il était seulement plus dégradant. Cela ne suffisait pas pour que j'envie la position des autres. Elle était aussi misérable que la mienne.

Les comptables qui passaient dix heures par jour à recopier des chiffres étaient à mes yeux des victimes sacrifiées sur l'autel d'une divinité dépourvue de grandeur et de mystère. De toute éternité, les humbles ont voué leur vie à des réalités qui les dépassaient: au moins, auparavant, pouvaient-ils supposer quelque cause mystique à ce gâchis. A présent, ils ne pouvaient plus s'illusionner. Ils donnaient leur existence pour rien.

Le Japon est le pays où le taux de suicide est le plus élevé, comme chacun sait. Pour ma part, ce qui m'étonne, c'est que le suicide n'y soit pas plus fréquent.

Et en dehors de l'entreprise, qu'est-ce qui attendait les comptables au cerveau rincé par les nombres? La bière obligatoire avec des collègues aussi trépanés qu'eux, des heures de métro bondé, une épouse déjà endormie, des enfants déjà lassés, le sommeil qui vous aspire comme un lavabo qui se vide, les rares vacances dont personne ne connaît le mode d'emploi: rien qui mérite le nom de vie.

Le pire, c'est de penser qu'à l'échelle mondiale ces gens sont des privilégiés.

(...)

Pauvre monsieur Saito! C'était à moi de le réconforter. Malgré sa relative ascension professionnelle, il était un Nippon parmi des milliers, à la fois esclave et bourreau maladroit d'un système qu'il n'aimait sûrement pas mais qu'il ne dénigrerait jamais, par faiblesse et manque d'imagination.

Amélie Nothomb, Stupeur et tremblements. Éditions Albin Michel, 1999