sábado, 31 de dezembro de 2011

Felizes acima do peso

Na festinha de aniversário da filha de um conhecido advogado na cidade, o jovem professor e sua esposa dividem a mesa com um casal de amigos. Eles não têm filhos, mas vieram assim mesmo, por vir. Para cumprir o social.

O prato com coxinhas, empadas e canapés acaba de chegar.

As crianças brincam no parquinho longe dos pais, que nas dezenas de mesas espalhadas pelo enorme salão colorido conversam ao som de Xuxa e Balão Mágico.

O professor olha para a sua linda e jovem esposa: os cabelos negros, lisos e brilhantes, a pele clara, de uma palidez de conto de fadas – e sente no peito uma dor difícil de explicar, porque não dói: algo como uma nuvem densa e fria, quase gelada, preenchendo os espaços entre o coração e os pulmões, indo até a garganta e voltando, indo e voltando, lentamente.

É a angústia.

A esposa não conversa. Observa os amigos do marido com desprezo. Não sabe o que está fazendo ali, nem por que está casada com um professor pobre e acima do peso. Justo ela, que é tão magra, linda e saudável, e ainda por cima de estirpe nobre, pois seu pai, embora falido, é tataraneto do Marquês de Itamaracá.

Na opinião de algumas colegas de trabalho do jovem professor (professoras como ele no Colégio São Francisco), aquela barriga levemente inflada esticando a camisa de malha tamanho M, que a esposa insiste em fazê-lo vestir (quando está claro para todos que a G é a única possibilidade), é um charme a mais, tornando-o até mais bonito e sexy. Mas sua mulher não concorda com isso de jeito nenhum. Quer vê-lo magro, sem barriga, sem bunda, sem coxa, sem aquele harmonioso preenchimento de gordura que disfarça os ossos salientes do rosto, tornando sua face mais redonda – e mais atraente, na opinião das colegas. Quer vê-lo na balança digital do quarto todos os dias, anotando o peso, calculando o índice de massa corporal e as calorias ingeridas.

A caminhada é um ritual diário sagrado na vida do casal. Pelo menos para a mulher. Porque para ele é uma tortura das mais difíceis de suportar. Ele simplesmente odeia cada segundo passado na avenida, onde caminham todos os dias, faça chuva, sol ou tempestade, morra parente, morra quem quer que seja, acabe o mundo: eles estão lá, no mesmo ritmo, a passos largos, rápidos, em silêncio. Um silêncio pesado e triste que ele preenche conversando baixinho consigo mesmo, preparando aulas, imaginando-se longe dali, em qualquer outro lugar, comendo um pastel, um crepe ou uma torta de limão.

Mas, como eu disse, o pratinho com coxinhas, empadas e canapés acaba de chegar.

Com um olhar fulminante, a esposa faz o marido se lembrar do pacto selado entre eles há duas semanas: nada de gordura, nada de fritura e nada de açúcar. Discretamente ela lhe faz um sinal com a mão, mostrando-lhe a bolsa de couro que ela traz no colo, onde duas barras de cereal se encontram sequinhas, durinhas, com seu gostinho inconfundível de capim seco. Como é sábado, os nomes dos sabores podem variar: trufa e torta de morango (mas no fundo no fundo é tudo a mesma coisa).

O combinado era que, quando a fome apertasse, ele pegaria discretamente uma das barras e se dirigiria ao banheiro para comê-la. Simples e prático.

Mas nesse momento a nuvem densa e fria que cresce em seu peito fica mais pesada e escura (de um cinza quase preto), cheia de ódio e desilusão. E nela surgem raios e relâmpagos, que aos poucos vão quebrando a crosta que serve de fachada para esse casamento infeliz, sacudindo a alma faminta de vida desse jovem quase gordo.

E ele toma uma decisão.

Olha desafiador para a esposa (que o encara com determinação e frieza) e lentamente pega uma coxinha. Não é daquelas coxinhas vagabundas, frias e emborrachadas, que viram uma pasta sem gosto antes mesmo de se misturarem à saliva. Não. É coxinha frita na hora, firme, sequinha por fora, com recheio abundante de frango e catupiry.

Ele dá a primeira mordida. Sente seus dentes quebrarem a fina capa crocante e penetrarem lentamente a maciez tenra da deliciosa massa recheada. E nesse momento de sublime deleite, um pouco de catupiry escorre pelo seu queixo. Ele sorri e passa o dedo no creme, que leva à boca com sofreguidão, sorvendo tudo com um estalar de língua molhada que faz a esposa tremer de indignação e ódio no mais íntimo do seu ser.

Os olhos da mulher estão em chamas.

Mas ele continua.

Um canapé inteiro desaparece na sua boca de uma só vez. E outro. E mais outro. Mais uma coxinha. Uma empada. Um copo de coca-cola bem gelada (da legítima, com açúcar). E outro. E mais outro. E mais uma coxinha. E depois dos parabéns, uma mão cheia de doces, sob o olhar atônito da esposa (que não acredita no que vê). Do bolo ele come dois pedaços, saboreando-os com uma alegria de dar gosto.

O olhar resoluto e frio da esposa diz tudo. Ela se levanta e, sem se despedir de ninguém, desaparece da festa.

Ao chegar em casa, o professor descobre que a mulher foi embora levando todas as suas roupas e objetos pessoais. Dois dias depois ele recebe a visita de um advogado, que lhe explica todos os detalhes do divórcio. Ele aceita tudo sem reclamar.

Finalmente está livre.

O divórcio deixa-o mais pobre e um pouco mais gordo, mas muito mais feliz.

Três semanas depois ele começa a namorar a nova professora de História do Colégio São Francisco, uma mulata linda de morrer, cheia de carne para pegar e de amor para dar. Comem de tudo, reservando as guloseimas mais calóricas para os finais de semana, e exercitam-se na cama quase todas as noites, o que ajuda a manter o excesso de peso num nível aceitável.

Ele adora suas ancas largas, sua bunda redonda e volumosa e até suas celulites.

Formam um casal perfeito...

Acima do peso...

Mas felizes...

Muito felizes.

Flávio Marcus da Silva

segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

Friends within the Darkness

I can remember starving in a
small room in a strange city
shades pulled down, listening to
classical music
I was young I was so young it hurt like a knife
inside
because there was no alternative except to hide as long
as possible--
not in self-pity but with dismay at my limited chance:
trying to connect.

the old composers -- Mozart, Bach, Beethoven,
Brahms were the only ones who spoke to me and
they were dead.

finally, starved and beaten, I had to go into
the streets to be interviewed for low-paying and
monotonous
jobs
by strange men behind desks
men without eyes men without faces
who would take away my hours
break them
piss on them.

now I work for the editors the readers the
critics

but still hang around and drink with
Mozart, Bach, Brahms and the
Bee
some buddies
some men
sometimes all we need to be able to continue alone
are the dead
rattling the walls
that close us in.

Charles Bukowski (1920-1994)

No avesso de mim

Hoje estou pelo avesso e não é feio.
A solidão está na carne aberta viva e não é feia.
A indiferença em mim pelo que é de aparência e artifício está no meu avesso em grito mudo e não é feia.
Tudo que é parte do que em mim sou eu pelo avesso não é feio.
Nem belo.

- É

Sou eu pelo avesso o avesso de mim,
que sou mais eu ainda do que o não avesso de mim.
Sou eu na mais pura verdade de mim –
na mais pura solidão escura e vibrante e alegre de mim.

Meu coração dói de ser eu pelo avesso e vivo e sofro.
Sozinho eu sofro
e alegre vivo o ser
que pelo avesso me sou e me faz de mim algo
que dentro de mim sou eu.

Sou eu pelo avesso
quando digo Sim
ao que vem do mais fundo
do avesso em mim:
um grito
uma dor no escuro
uma luz:

Liberdade –

O não-medo da morte
O não-medo da vida

No quarto escuro do meu avesso de mim
não há planos nem projetos,
nem vitórias nem derrotas
não há nada que não sou eu –
no escuro iluminado e puro de mim

Sou pura aceitação de mim no avesso

- Sou

E só

Flávio Marcus da Silva

quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

Subindo na vida

Pulando os degraus de dois em dois, o jovem Teo subia quente o morro da Penha, onde morava com a mãe e três irmãos pequenos. Pai ele não tinha. Nem sabia o nome. De vez em quando aparecia um pretendente, um fodido na vida que se instalava no barraco com sua tralha, mas só ficava uma ou duas semanas – tempo mais do que suficiente para ver o tamanho da encrenca em que se metera e sair, esmurrando portas e mandando mãe e filhos para as putas que os pariram, para nunca mais voltar.

Teo bufava de alegria e cansaço. Parecia um touro satisfeito. Queria chegar logo em casa para contar o dinheiro. Seiscentas pratas limpinhas. Ralou muito para conseguir juntar. Lavou carro, engraxou sapato, vendeu picolé e todo domingo ia para a feira ajudar na barraca de acarajé da negra Eulália, uma baiana que de baiana não tinha nada, nem a roupa, comprada de segunda mão no bazar das putas, no alto do morro.

Teo entrou correndo em casa. A mãe surrava um dos moleques, que gritava sem parar, com a bunda já cheia de vergões vermelhos da vara de marmelo arrancada às pressas no quintal do vizinho (se é que podemos chamar de quintal dois metros quadrados de terra encharcada de esgoto fedendo a merda vinte e quatro horas por dia).

Teo nem ligou. Entrou no quartinho que dividia com os irmãos, e de dentro de um buraco que ele mesmo havia cavado no chão de terra batida, atrás do guarda-roupa, tirou um saco plástico todo amarrotado. Seu dinheiro estava lá, dobradinho. Cinco notas de cem. Às quais, satisfeito, ele acrescentou outra novinha. Quem trocava para ele era o dono de uma padaria no centro. Moedas e notas miúdas por uma nota de cem. Levou quase dois anos para conseguir as seis. Teria conseguido em um ano se não tivesse que ajudar nas despesas de casa. Mas...

Mas ali estavam elas. E ele sentia o seu cheiro, tocava-as levemente com os lábios, acariciava-as, os olhos brilhando de contentamento.

E com a mesma alegria com que subira minutos antes, ele desceu, correndo, pulando de dois em dois, de três em três, os degraus imundos e escalavrados do morro da Penha. Nem sentia que estava no morro. Parecia nas nuvens. E em menos de meia hora já estava na loja experimentando o tênis.

Era o seu sonho aquele tênis. Todos os dias ele passava ali para se certificar de que o preço continuava 599 reais. Respirava aliviado quando via que sim, pois tivera que adiar a compra duas vezes em um ano por causa dos aumentos. Quando o Ronaldinho começou a aparecer na televisão usando-o, o preço pulou de 470 para 550 reais em um dia. Foi um choque para Teo. “Mas é o Ronaldinho”, pensara ele na época, triste pelos meses a mais de ralação que aquilo significaria, mas ao mesmo tempo feliz pelo fato de alguém tão importante para o Brasil colocar nos pés (e que pés!) o objeto de seus sonhos.

Ficou quarenta minutos se olhando no espelho da loja, maravilhado. (É que no barraco não tinha espelho de corpo inteiro e ele queria aproveitar). Enquanto isso o dono da loja mantinha o dedo encostado no botão do alarme, pronto para apertá-lo a qualquer momento, se precisasse.

Mas não foi preciso. Teo pagou pelo par de tênis (em dinheiro e à vista) e foi embora, feliz da vida.

Voltou para o barraco, sentindo-se um rei, o dono do pedaço. Na subida reparou os olhares de respeito e admiração quando cruzava com amigos e conhecidos. Estava muito feliz.

Ele era importante.

Ele era alguém...

Flávio Marcus da Silva

sábado, 17 de dezembro de 2011

Descendo do salto

A bela professora universitária entrou na sala de aula como se estivesse na passarela de um desfile de modas em Paris ou Milão. Era sexta-feira à noite e, embora já estivesse com o atestado médico em mãos, assinado por uma prima ginecologista, ela resolvera, de última hora, abandonar o marido e os amigos no refinado restaurante francês Le Bistrot e ir direto para a universidade. Fez isso pelos alunos, que queriam muito a sua presença durante a realização da atividade que ela havia preparado para aquela noite, e que seria aplicada por uma estagiária.

Quando ela entrou na sala, irradiando beleza e simpatia, havia em seus intestinos meia garrafa de um vinho francês da Borgogne, já completamente absorvido pelo maravilhoso Cassoulet que ela havia comido antes de sair. (E ao distribuir os exercícios aos alunos, ela fez questão de referir-se a esse jantar requintado, que prosseguia sem a sua presença encantadora no restaurante mais caro da cidade).

Enquanto ela desfilava pelos corredores da sala, fazendo soar no piso de madeira o leve toc toc dos seus belos saltos importados, uma enorme quantidade de bactérias atacava os carboidratos da mistura de iguarias francesas que se movimentava no interior de suas tripas. Desse processo de fermentação é perfeitamente natural que surjam gases, como o metano, o sulfeto de hidrogênio ou o dióxido de carbono. Se os componentes da mistura vêm da França, da Alemanha ou do quintal de um pequeno roceiro do interior de Minas Gerais não interessa às bactérias que produzem tais gases. E quanto mais enxofre tiver na mistura, mais fedidas serão as ventosidades produzidas, não fazendo qualquer diferença neste processo a nacionalidade das iguarias presentes nos intestinos.

Enquanto a professora dizia algumas frases decoradas em francês para impressionar os alunos, tentando imitar os sons ouvidos no filme Piaf ou em Coco avant Chanel, uma pequena bolha de gás, contendo uma quantidade considerável de sulfeto de hidrogênio (rico em enxofre), aumentava de tamanho entre as paredes do seu intestino grosso. Ela circulava em torno de um bolo fecal de aspecto uniforme e cor marrom parda (devido ao ganso presente no Cassoulet) que se movimentava lentamente em direção ao ânus da mulher.

A bolha aumentava de tamanho a cada minuto, e às vezes a professora sentia o seu movimento, que se não fosse o constante toc toc de seus saltos sobre o piso da sala, poderia ser ouvido até pelo aluno que estivesse mais próximo. E, aos poucos, outras bolhas vinham se aproximando da bolha maior, pois no tempo em que esteve no restaurante, antes de servirem a refeição, a professora conversou muito enquanto bebia, a maior parte do tempo criticando colegas de trabalho que ela considerava inferiores, e enquanto ria e falava, uma enorme quantidade de ar entrava pela sua boca. O ar não absorvido pelo organismo ou eliminado pelos arrotos discretíssimos que ela soltava se misturou ao Cassoulet e ao vinho tinto, e acompanhou a mistura em direção aos intestinos.

Enquanto isso, alguns ácaros iniciavam uma pequena reação alérgica nas mucosas nasais da mulher. Um leve corrimento teve início, o que fez com que ela tirasse do bolso um lenço bordado a mão por artesãos indianos, comprado na última viagem que ela havia feito com o marido à Ásia. Levou o lenço ao nariz e, discretamente, limpou um excesso de mucosidade nasal que se acumulava na narina esquerda e que estava prestes a pingar. Uma leve irritação nos olhos e uma coceira em ambas as narinas começavam a incomodá-la.

Mesmo assim, a professora continuava o seu desfile pelos corredores da sala, respondendo às questões feitas pelos alunos como se ela fosse a maior autoridade em Psicologia Social do Brasil.

De repente, uma bolha de ar que se movimentava no seu intestino grosso se juntou a uma pequena bolha de dióxido de carbono e sulfeto de hidrogênio, produzida por um grupo de bactérias famintas, o que fez surgir uma bolha muito maior. Essa bolha forçou a parede do intestino, que pressionava de um lado, enquanto o bolo fecal pressionava do outro, o que fez com que ela se deslocasse rapidamente em direção à outra bolha, a mais fedida de todas, que já se aproximava do ânus da professora. Ao se encontrarem, as duas bolhas formaram uma bolha só, de proporções devastadoras.

Um espirro.

Em pânico, a professora respirou fundo o ar ao seu redor, com medo de que alguma coisa tivesse escapado. Nada. Nenhum cheiro desagradável. Ela tinha que sair dali o mais rápido possível.

Outro espirro, e mais um, e mais outro. A bolha estava quase lá, a mulher podia sentir, e enquanto caminhava lentamente em direção à porta, percebeu uma pressão nas paredes do seu ânus – como um inchaço interno – que só podia significar uma coisa: uma enorme quantidade de gases já tinha chegado ali e estava pronta para explodir.

Imediatamente a mulher parou. Qualquer movimento podia ser fatal. Um novo espirro seria a tragédia completa. E ali ela ficou, entre duas fileiras de alunos, quase no meio da sala, à espera de um milagre, de uma intervenção divina que fizesse desaparecer todo aquele gás acumulado bem na saída, que ela trancava com todas as forças que sua bem trabalhada musculatura glútea e anal permitia.

Enquanto isso, os ácaros não davam trégua e provocavam mais coceira no nariz da desesperada professora, que já não falava mais, apenas aguardava, em pânico, o que o destino lhe reservava.

Foi quando veio o espirro, o mais forte de todos, que vibrou a abertura anal com a rapidez de um raio: um único segundo, o tempo de uma pequena piscadela do esfíncter, mas que foi suficiente para que uma parte dos gases acumulados sob pressão escapasse com um enorme estrondo, tão alto, que a tentativa da professora de abafá-lo com o som do espirro foi em vão.

Tragédia.

Todos os alunos escutaram o som e perceberam de imediato de onde ele tinha vindo e do que se tratava. E os que estavam mais próximos da professora sentiram um cheiro tão fedido, que alguns fizeram vômito, e outros chegaram a vomitar no chão, próximo aos pés da desesperada mulher, que não sabia onde enfiar a cara. E antes que ela raciocinasse sobre o que fazer numa situação dessas, um novo espirro, e um novo estrondo, ainda mais alto e fedido que o primeiro.

O cheiro estava por toda a sala. Alguns alunos pediram licença e se retiraram. Outros foram para a janela. E a professora ficou lá, parada que nem uma estátua, com o pensamento em branco, sentindo o cheiro dos gases produzidos pelas bactérias dos seus intestinos: um cheiro de corpo, de carne, de vida e morte, um cheiro de existir, de ser e estar no mundo, vivendo, comendo e morrendo, como eu, como você, como qualquer um.

Flávio Marcus da Silva

sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

Viver é recriar-se

Viver, como talvez morrer, é recriar-se: a vida não está aí apenas para ser suportada nem vivida, mas elaborada. Eventualmente reprogramada. Conscientemente executada. Muitas vezes, ousada.

Parece fácil: "escrever a respeito das coisas é fácil", já me disseram. Eu sei. Mas não é preciso realizar nada de espetacular, nem desejar nada excepcional. Não é preciso nem mesmo ser brilhante, importante, admirado.

Para viver de verdade, pensando e repensando a existência, para que ela valha a pena, é preciso ser amado; e amar; e amar-se. Ter esperança; qualquer esperança.

Questionar o que nos é imposto, sem rebeldias insensatas mas sem demasiada sensatez. Saborear o bom, mas aqui e ali enfrentar o ruim. Suportar sem se submeter, aceitar sem se humilhar, entregar-se sem renunciar a si mesmo e à possível dignidade.

Sonhar, porque se desistimos disso apaga-se a última claridade e nada mais valerá a pena. Escapar, na liberdade do pensamento, desse espírito de manada que trabalha obstinadamente para nos enquadrar, seja lá no que for.

E que o mínimo que a gente faça seja, a cada momento, o melhor que afinal se conseguiu fazer.

Lya Luft, Pensar é transgredir. Rio de Janeiro: Record, 2004, p. 23

domingo, 11 de dezembro de 2011

Mineirinho

É, suponho que é em mim, como um dos representantes do nós, que devo procurar por que está doendo a morte de um facínora. E por que é que mais me adianta contar os treze tiros que mataram Mineirinho do que os seus crimes. Perguntei a minha cozinheira o que pensava sobre o assunto. Vi no seu rosto a pequena convulsão de um conflito, o mal-estar de não entender o que se sente, o de precisar trair sensações contraditórias por não saber como harmonizá-las. Fatos irredutíveis, mas revolta irredutível também, a violenta compaixão da revolta. Sentir-se dividido na própria perplexidade diante de não poder esquecer que Mineirinho era perigoso e já matara demais; e no entanto nós o queríamos vivo. A cozinheira se fechou um pouco, vendo-me talvez como a justiça que se vinga. Com alguma raiva de mim, que estava mexendo na sua alma, respondeu fria: “O que eu sinto não serve para se dizer. Quem não sabe que Mineirinho era criminoso? Mas tenho certeza de que ele se salvou e já entrou no céu”. Respondi-lhe que “mais do que muita gente que não matou”.

Por quê? No entanto a primeira lei, a que protege corpo e vida insubstituíveis, é a de que não matarás. Ela é a minha maior garantia: assim não me matam, porque eu não quero morrer, e assim não me deixam matar, porque ter matado será a escuridão para mim.

Esta é a lei. Mas há alguma coisa que, se me faz ouvir o primeiro e o segundo tiro com um alívio de segurança, no terceiro me deixa alerta, no quarto desassossegada, o quinto e o sexto me cobrem de vergonha, o sétimo e o oitavo eu ouço com o coração batendo de horror, no nono e no décimo minha boca está trêmula, no décimo primeiro digo em espanto o nome de Deus, no décimo segundo chamo meu irmão. O décimo terceiro tiro me assassina — porque eu sou o outro. Porque eu quero ser o outro.

Essa justiça que vela meu sono, eu a repudio, humilhada por precisar dela. Enquanto isso durmo e falsamente me salvo. Nós, os sonsos essenciais. Para que minha casa funcione, exijo de mim como primeiro dever que eu seja sonsa, que eu não exerça a minha revolta e o meu amor, guardados. Se eu não for sonsa, minha casa estremece. Eu devo ter esquecido que embaixo da casa está o terreno, o chão onde nova casa poderia ser erguida. Enquanto isso dormimos e falsamente nos salvamos. Até que treze tiros nos acordam, e com horror digo tarde demais – vinte e oito anos depois que Mineirinho nasceu – que ao homem acuado, que a esse não nos matem. Porque sei que ele é o meu erro. E de uma vida inteira, por Deus, o que se salva às vezes é apenas o erro, e eu sei que não nos salvaremos enquanto nosso erro não nos for precioso. Meu erro é o meu espelho, onde vejo o que em silêncio eu fiz de um homem. Meu erro é o modo como vi a vida se abrir na sua carne e me espantei, e vi a matéria de vida, placenta e sangue, a lama viva. Em Mineirinho se rebentou o meu modo de viver. Como não amá-lo, se ele viveu até o décimo terceiro tiro o que eu dormia? Sua assustada violência. Sua violência inocente – não nas consequências, mas em si inocente como a de um filho de quem o pai não tomou conta. Tudo o que nele foi violência é em nós furtivo, e um evita o olhar do outro para não corrermos o risco de nos entendermos. Para que a casa não estremeça. A violência rebentada em Mineirinho que só outra mão de homem, a mão da esperança, pousando sobre sua cabeça aturdida e doente, poderia aplacar e fazer com que seus olhos surpreendidos se erguessem e enfim se enchessem de lágrimas. Só depois que um homem é encontrado inerte no chão, sem o gorro e sem os sapatos, vejo que esqueci de lhe ter dito: também eu.

Eu não quero esta casa. Quero uma justiça que tivesse dado chance a uma coisa pura e cheia de desamparo em Mineirinho – essa coisa que move montanhas e é a mesma que o fez gostar “feito doido” de uma mulher, e a mesma que o levou a passar por porta tão estreita que dilacera a nudez; é uma coisa que em nós é tão intensa e límpida como uma grama perigosa de radium, essa coisa é um grão de vida que se for pisado se transforma em algo ameaçador – em amor pisado; essa coisa, que em Mineirinho se tornou punhal, é a mesma que em mim faz com que eu dê água a outro homem, não porque eu tenha água, mas porque, também eu, sei o que é sede; e também eu, que não me perdi, experimentei a perdição. A justiça prévia, essa não me envergonharia. Já era tempo de, com ironia ou não, sermos mais divinos; se adivinhamos o que seria a bondade de Deus é porque adivinhamos em nós a bondade, aquela que vê o homem antes de ele ser um doente do crime. Continuo, porém, esperando que Deus seja o pai, quando sei que um homem pode ser o pai de outro homem. E continuo a morar na casa fraca. Essa casa, cuja porta protetora eu tranco tão bem, essa casa não resistirá à primeira ventania que fará voar pelos ares uma porta trancada. Mas ela está de pé, e Mineirinho viveu por mim a raiva, enquanto eu tive calma. Foi fuzilado na sua força desorientada, enquanto um deus fabricado no último instante abençoa às pressas a minha maldade organizada e a minha justiça estupidificada: o que sustenta as paredes de minha casa é a certeza de que sempre me justificarei, meus amigos não me justificarão, mas meus inimigos que são os meus cúmplices, esses me cumprimentarão; o que me sustenta é saber que sempre fabricarei um deus à imagem do que eu precisar para dormir tranquila e que outros furtivamente fingirão que estamos todos certos e que nada há a fazer. Tudo isso, sim, pois somos os sonsos essenciais, baluartes de alguma coisa. E sobretudo procurar não entender.

Porque quem entende desorganiza. Há alguma coisa em nós que desorganizaria tudo – uma coisa que entende. Essa coisa que fica muda diante do homem sem o gorro e sem os sapatos, e para tê-los ele roubou e matou; e fica muda diante do São Jorge de ouro e diamantes. Essa alguma coisa muito séria em mim fica ainda mais séria diante do homem metralhado. Essa alguma coisa é o assassino em mim? Não, é desespero em nós. Feito doidos, nós o conhecemos, a esse homem morto onde a grama de radium se incendiara. Mas só feito doidos, e não como sonsos, o conhecemos. É como doido que entro pela vida que tantas vezes não tem porta, e como doido compreendo o que é perigoso compreender, e só como doido é que sinto o amor profundo, aquele que se confirma quando vejo que o radium se irradiará de qualquer modo, se não for pela confiança, pela esperança e pelo amor, então miseravelmente pela doente coragem de destruição. Se eu não fosse doido, eu seria oitocentos policiais com oitocentas metralhadoras, e esta seria a minha honorabilidade.

Até que viesse uma justiça um pouco mais doida. Uma que levasse em conta que todos temos que falar por um homem que se desesperou porque neste a fala humana já falhou, ele já é tão mudo que só o bruto grito desarticulado serve de sinalização. Uma justiça prévia que se lembrasse de que nossa grande luta é a do medo, e que um homem que mata muito é porque teve muito medo. Sobretudo uma justiça que se olhasse a si própria, e que visse que nós todos, lama viva, somos escuros, e por isso nem mesmo a maldade de um homem pode ser entregue à maldade de outro homem: para que este não possa cometer livre e aprovadamente um crime de fuzilamento. Uma justiça que não se esqueça de que nós todos somos perigosos, e que na hora em que o justiceiro mata, ele não está mais nos protegendo nem querendo eliminar um criminoso, ele está cometendo o seu crime particular, um longamente guardado. Na hora de matar um criminoso - nesse instante está sendo morto um inocente. Não, não é que eu queira o sublime, nem as coisas que foram se tornando as palavras que me fazem dormir tranquila, mistura de perdão, de caridade vaga, nós que nos refugiamos no abstrato.

O que eu quero é muito mais áspero e mais difícil: quero o terreno.

Clarice Lispector, Mineirinho. In: Para não esquecer (crônicas, 1978). Rio de Janeiro: Rocco.

sábado, 10 de dezembro de 2011

Antes do fim

Setenta anos de idade
sozinho em casa num dia frio e escuro
sentado na privada ele começou a puxar os pêlos do peito e do saco
a puxar e arrancar os pêlos com raiva
uma raiva que explodiu de repente, assim, sem mais
enquanto o cheiro das fezes se espalhava pelo ar, de dentro para fora
um cheiro de repolho podre, de carne podre
e os pêlos caíam na água, no chão, na borda da privada
e ele continuava puxando e arrancando com ferocidade –

arrancando –

Até que um pequeno vaso de sangue arrebentou
próximo à virilha
– um vasinho de nada, roxo
que parecia estar preso ao pêlo que ele arrancou do saco murcho e comprido
– uma artéria pequena, mas que sangrou
e o sangue começou a escorrer, a pingar
a pingar sem parar na água marrom
que ficou mais escura na parte onde pingava
mais escura de um vermelho vivo de sangue ruim
de sangue azedo –

pingando –

E enquanto pingava ele puxava com mais fúria os pêlos
e olhava as unhas dos pés nos chinelos pretos, que ele só usava em casa
– chinelos baratos, um deles rachado na frente, sujo
e uma das unhas encravada, trincada, de um marrom pardo escuro
que doía todos os dias dentro do seu sapato caro de ir ao centro
de ir cobrar as dívidas
de ir maquinar
e fofocar como ninguém
e matraquear:
‘Como sou bom, como sou honrado, como sou competente
veja como tenho razão
eu só quero o bem, só quero o que é certo: isso é certo, aquilo é errado
e olha o meu filho, que beleza
ele fala inglês e é o melhor executivo da empresa
foi o melhor aluno da universidade’ –

o melhor –

E o sangue escorrendo pelo saco murcho, comprido e velho
– os pêlos no chão, na água
pêlos pretos e brancos
– quase todos brancos
contrastando com o cabelo pintado
que o fazia sorrir de orgulho e estufar o peito na frente do espelho
antes de se enfiar no terno e sair para cobrar e fofocar
matraquear e maquinar

E saía de peito erguido pelas ruas
com sua honra e respeitabilidade de chefe de família bem casado e feliz
– tudo certo, do jeito que tinha que ser:
‘Lá em casa é assim, comigo é desse jeito’
– uma felicidade embrulhada em papel de seda e fitas de ouro
o dia seguindo o seu curso, tudo planejado desde o início

E enquanto o sangue pingava sem parar
ele pensava no jogo que terminava:
rei, peão, rainha, cavalo, torre e bispo deitados na mesma caixa
na mesma caixa de madeira escura
E a tampa, ah a tampa...

O fim do jogo se aproximava
e só naquele momento, sentado na privada
arrancando os pêlos do peito e do saco
ele se deu conta disso

Continuar para quê?

Onde estava o garotinho que brincava no quintal de casa
cheio de alegria e prazer
vivendo o instante?

Estava no topo, no ápice, aposentado
– mas na ativa, maquinando, maquinando
rico
muito rico
filhos brilhantes
um casamento respeitável
respeitabilíssimo
com uma fachada construída em pedra maciça impenetrável
por onde não passava nem a luz do sol numa manhã quente de verão:
e a vida era como se o sol não brilhasse
mas respeitável e próspera
de dar inveja
– era isso que importava

Mas o jogo terminava e ele sentia o seu fim
foi um choque
um tremor súbito que o fez soltar o último tufo de pentelhos no chão
e esfregar a mão trêmula no peito quase despelado e no saco quase nu
– triste (uma tristeza pesada e fria)
e ao erguê-la viu o sangue
ah aquele sangue vermelho e quente, escuro
sangue dele

E de repente uma ânsia de beber o próprio sangue lhe tomou o corpo e o espírito
uma fissura, uma fome de seu próprio corpo, de sua fonte de vida
uma vontade incontrolável de buscar nela vestígios do seu eu perdido
de arrancar as cascas, as máscaras
de enfiar as unhas no peito e vasculhar por dentro até encontrar...
o quê?
onde estava? onde estava?

E sem pensar foi bebendo o sangue
lambendo a mão empapada de vermelho molhado e quente
que voltava ao saco para buscar mais e mais
sangue dele, ácido, com gosto de ferro, de cinza pardo
ferroso

– e mais e mais e mais e mais

E o saco não parava de pingar
e ele bebendo, de olhos fechados
sentindo, sentindo
e de repente o cheiro podre desapareceu
e a criança voltou gritando ‘Nada importa, nada disso importa’
e do fundo de seu túmulo Fernando Pessoa gritou ‘Fazes falta?
Ó sombra fútil chamada gente!
Ninguém faz falta; não fazes falta a ninguém...
Sem ti correrá tudo sem ti’

E ele também gritou
caiu de joelhos
e começou a arrancar os cabelos da cabeça, dos cílios, das sobrancelhas
e sentiu sua doença de pele descamando atrás das orelhas
e arrancou as cascas
as placas de casca branca e seca
e na cabeça descobriu uma ferida que também descamava
e que ele coçou
coçou até sangrar

E o saco pingando no chão
formando uma poça escura no piso branco do banheiro
e sua boca vermelha
vermelha do seu próprio sangue
da sua própria vida quente que pulsava fundo
bem fundo
sem ele saber
perdida por trás das crostas secas
das máscaras duras e frias da respeitabilidade
de tudo que tem que ser, de tudo que é certo

E ele gritou de novo, de joelhos
a boca cuspindo sangue num vômito de libertação
e esfregou no corpo o seu próprio vômito, o seu próprio sangue
e gritou
‘Meus filhos, meus filhos, venham até mim
venham aqui e me escutem
não sou o que vocês pensam
roubei, humilhei, menti, oh como menti:
muitas dessas pessoas que vocês desprezam
só porque eu as culpei de terem me atacado
a mim, o inocente, o bom
– essas pessoas não são culpadas nem inocentes
o que vocês sabem é o que eu disse, o que tem que ser
o que deve ser dito para sustentar a imagem pura e boa do pai
do senhor
do respeitável
do marido fiel e honrado
do profissional brilhante
pai dos filhos brilhantes’

E a poça de sangue crescia logo abaixo do seu saco
e ele de joelhos gritando ‘Perdão, perdão’
as mãos levantadas em súplica
e uma nova ânsia de vômito lhe tomava o estômago em espasmos de dor
os músculos se contraindo, apertando, apertando
– espasmos que expeliram uma água rala, vermelha e fétida
de um fedor ardente e seco

E de repente ele se jogou no chão, deitado, com as mãos no rosto
banhado em sangue, fezes e vômito
imaginando-se na frente do espelho, todo importante
e não havia nada ali
era um espelho vazio
nada
ele não estava ali

E a poça aumentou ainda mais e ele desmaiou
desmaiou de exaustão e dor, quase sem fôlego de tanto gritar
quase sem vida
mas limpo, purificado...
foi salvo pelo vizinho, que o levou a um hospital
onde os filhos e a esposa o encontraram vivo
mas diferente: um outro homem...
preparado para partir

As peças já estavam na caixa...

‘O jogo acabou’

Flávio Marcus da Silva

sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

A graça

- e sem poder mais mentir, chorei rezando no escuro, rezando assim "nunca mais isso, oh Deus nunca mais me deixe ser tão audaciosa, nunca mais me deixe ser tão feliz, tire para sempre a minha coragem de viver; que eu nunca vá tão adiante em mim mesma, que eu nunca me permita, tão sem piedade, a graça", porque eu não quero a graça, pois antes morrer sem ter jamais visto que ter visto uma só vez! porque Deus com sua bondade permite, ouviu, permite e aconselha que as pessoas sejam covardes e se protejam, seus filhos prediletos são os que ousam mas Ele é severo com quem ousa, e é benevolente com quem não tem coragem de olhar de frente e Ele abençoa os que abjetamente tomam cuidado de não ir longe demais no arrebatamento e na procura da alegria, desiludido Ele abençoa os que não têm coragem. Ele sabe que há pessoas que não podem viver com a felicidade que há dentro delas, e então Ele lhes dá uma superfície de que viver, e lhes dá uma tristeza, Ele sabe que tem pessoas que precisam fingir, porque a beleza é árida, por que é tão árida a beleza? e então eu disse para mim "tenha medo, Vitória, porque ter medo é a salvação". Porque as coisas não devem ser vistas de frente, ninguém é tão forte assim, só os que se danam é que têm força. Mas para nós a alegria tem que ser como uma estrela abafada no coração, a alegria tem que ser apenas um segredo, a natureza da gente é o nosso grande segredo, a alegria deve ser como uma irradiação que a pessoa jamais, jamais deve deixar escapar. Sente-se um estilhaço e não se sabe onde: é assim que tem que ser a alegria: não se deve saber porque, deve-se sentir assim: "mas que é que eu tenho?" - e não saber. Embora quando se toque em alguma coisa, essa coisa brilhe por causa do grande segredo que se abafou - eu tive medo, porque quem sou eu sem contenção?

Clarice Lispector, A maçã no escuro (1961). Rio de Janeiro: Rocco, 1998, p. 268-9

quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

Cansado

Estou cansado de me esforçar para ser agradável.

(...)

Tem dias que levanto com o firme propósito de pular o dia. Ainda não estou preparado para viver. Quero trabalhar sem ser notado. Invisível. Por favor, que ninguém puxe conversa, que nenhuma reunião seja marcada, que ninguém olhe nos meus olhos e pergunte se estou bem. Deixem eu causar o mínimo de impacto e voltar. Saio já esperando a noite: vou jantar, ver algum filme que já vi e dormir. Muito. Talvez amanhã eu esteja pronto. Talvez eu continue encolhido por um mês.

Gustavo Gitti, Confissões

sábado, 3 de dezembro de 2011

A maçã no escuro

Mas que se sabe do que se passa numa pessoa? Porque ele, que estava fracassando, não poderia chamar seu fracasso de sofrimento, mesmo que a desilusão e a ofensa recebida tivessem aflorado a seu rosto, tão poucos sentimentos a carne permite. Mas como chamar de sofrimento o fato dele estar passando pela verdade da Proibição como pelo buraco de uma agulha. Como poderia ele sequer revoltar-se com a verdade. Ele era a sua própria impossibilidade. Ele era ele. A esse ponto de grande angústia tranquila ele chegou: aquele homem era a sua própria Proibição.

Sofrimento? pensou com o rosto irreparavelmente ofendido a encarar o papel branco. Mas como não amar mesmo a Proibição? se ela o empurrara até onde ele podia ir? se o empurrara até aquela resistência última onde... Onde a única solução irrazoável era o grande amor? Quando o homem é acuado só o grande amor lhe ocorre. Sofrimento? Só não podendo é que um homem sabia. Um homem afinal se media pela sua carência. E tocar na grande falta era talvez a aspiração de uma pessoa. Tocar na falta seria a arte? Aquele homem gozava sua impotência assim como um homem se reconhece. Estava espantadamente fruindo o que ele era. Pois pela primeira vez na vida sabia quanto era. O que doía como a raiz de um dente.

Uma grande doçura o envolveu, como quando se sofre. Não conseguia encarar sem dor o papel vazio. Onde sua ação falhara.

Mas falhara? Porque a compreensão também era fatal. Ele não conseguia deixar de admirar a perfeição da Proibição. Pois, num equilíbrio perfeito, acontecia que se ele não tinha as palavras, tinha o silêncio. E se não tinha a ação, tinha o grande amor. Um homem podia não saber nada; mas sabia como se virar, por exemplo, para o lado do poente: um homem tinha o grande recurso da atitude. Se não tivesse medo de ser mudo.

Oh, não sofrimento. Porque na sua impossibilidade de criar ele não tinha tido o pior: não tinha sido espoliado. Em tudo o mais aquele homem enganara ou fora trapaceado, haviam-no roubado ou ele espertamente roubara. Mas na sua passagem pelo grande vazio, pela primeira vez na sua vida, ele não enganara ou fora enganado. A coisa era limpa: como se tratava de uma pessoa, então o limpo resultado fora cumprir a experiência de não poder. Pois, numa sensação genial, nascida talvez de sua dor, ele soube que o resultado mais acertado era falhar. Sofrimento? pensou com o rosto ofendido. Mas como não amar a Proibição, se cumpri-la é a nossa tarefa? refletiu em dor o escritor involuntário.

Martim começara agora a se emaranhar numa curiosa sensação de ter conseguido alguma coisa extraordinária. Tinha passado pelo mistério de querer. Como se tivesse tocado no pulso da vida. Ele que sempre se deslumbrara com o milagre espontâneo de seu corpo ser bastante corpo para querer uma mulher, e seu corpo ser bastante corpo para querer comida - ele agora tocara na fonte de tudo isso, e do viver: ele quisera... De um modo geral e profundo, ele quisera.

Clarice Lispector, A mação no escuro (1961). Rio de Janeiro: Rocco, 1998, p. 174-5