terça-feira, 31 de maio de 2011

Solidão

A solidão é uma tragada (crônica de Rogério Pereira):

Gosto da solidão. Não bebo. Não fumo. Agora, por azar, descubro que estou muito perto da morte. Parei de fumar e beber por motivos distintos. O cigarro consumia-me as últimas golfadas de ar ao arriscar risíveis dribles nos campinhos de pelada. A bebida cozinhava-me as vísceras e sapecava-me o pouco juízo. Não fumo há 15 anos. Não bebo há 115 meses e 14 dias. No entanto, a abstinência etílica e de tragadas longas e saborosas não me possibilitará algumas horas a mais de vida. Estou com os dias contados. Maldição. Há uma saída, mas reluto em tomar um caminho que me parece assustador. Talvez a companhia da escuridão, a exalar o adocicado aroma dos crisântemos, seja uma alternativa mais honrosa e menos traumática.

Tenho poucos, pouquíssimos amigos. Minha vida social está envolta de poucas palavras, nenhuma festa e demonstrações tímidas de carinho. Alguns dizem que sou misantropo. Longe disso. Apenas abomino a aglomeração de afetos e manifestações exasperantes de amor coletivo. Não sirvo para sindicalista, piqueteiro ou swinger. Agora, se eu quiser viver mais alguns segundos do que o previsto (quanto?), terei de rever toda a minha vida. Pelo menos é isso que me alerta um dos poucos amigos. Abro o e-mail e leio a matéria enviada, cujo título causa-me certo incômodo: “Não ter amigos é tão perigoso quanto fumar ou beber em excesso”. Penso de imediato: não é comigo. Tenho amigos. Poucos, é verdade. Muito poucos. Pouquíssimos. Caramba! Logo abaixo do título, uma informação infiltra-se pelo meu abdome, aloja-se em alguma parte do corpo, uma parte desconhecida, e espeta-me as costelas: “Estudos revelam que pessoas com menos relações sociais morrem até 50% antes das que convivem mais”. A frase, confusa e mal escrita, tenta me alertar para a necessidade de aumentar minhas relações sociais. O que isso significa?

A reportagem começa de maneira amedrontadora: “Não ter amigos pode ser tão perigoso para a saúde como fumar ou consumir álcool em excesso, diz um estudo de cientistas americanos publicado no site da revista PLoS Medicine”. A coisa parece séria. Especialistas da Universidade Brigham Young, em Utah, e do Departamento de Epidemiologia da Universidade da Carolina do Norte, nos Estados Unidos, analisaram como o isolamento excessivo pode afetar a saúde. E provam em números. A morte é um número. Os pesquisadores recorreram a 148 estudos prévios com dados sobre a mortalidade de indivíduos em função de suas relações sociais, diz o texto.

Eu, com certeza, revestido de uma carcaça falsamente normal, devo me encaixar em algum exemplo analisado. Ao todo, foram acompanhadas quase 309 mil pessoas por cerca de 7 anos e meio. Convenhamos: pesquisador americano tem tempo à beça. Aí, chegaram à fatídica (pelos menos para mim) conclusão de que “as pessoas com mais relações sociais têm 50% mais chances de sobrevivência do que quem se relaciona menos com outros”. Mas quem seriam estes outros? Humanos? Vale animal? Pônei, cachorro, cobra ou minhoca? As relações homem-animal são válidas para a longevidade? Pouco importa. Nunca tive animal de estimação. Tampouco minha iniciação sexual ocorreu com as galinhas que ciscavam no terreiro da vizinha.

Nada me traz esperança. O estudo mostra que “a importância de ter uma boa rede de amigos e boas relações familiares é comparável a deixar de fumar e supera muitos fatores de risco como a obesidade e a inatividade física”. Mas o que é uma boa rede de amigos? Quantidade? Não serve uma rede de três ou quatro? Com quantos amigos se faz uma rede? De relações familiares, melhor não falar. Há um abismo entre as convenções assustadoras, alimentadas por ruidosos almoços aos domingos, regados a sorrisos, abraços e lágrimas, e aquilo que considero uma família.

Mas do que morrem os solitários, os misantropos, os reclusos, os tímidos, os estranhos? Infarto, câncer, tédio ou suicídio? O estudo, ao que parece, não indica as principais causas. Isso não importa. O que importa é que você, sujeito recluso, de poucos amigos, vai pra cova com mais rapidez. Não adianta largar o cigarro e a bebida. Não adianta corridinhas no parque, pedaladas na esteira. Abdominais diários não te salvarão. Não se matricule na melhor academia. A não ser que tenha o objetivo de fazer amigos. Não contrate um personal trainer. Não. Contrate um personal stylist. Ou contrate ambos. E se matricule na melhor academia. Melhore sua aparência. Compre roupas bacanas. Borrife um perfume importado nas ancas do pescoço, no peito, na virilha, sei lá. E vá à luta. Busque amigos. Seja simpático. Faça um clareamento dentário. Deixe os molares, os incisivos brilhando. Corte o cabelo. Faça as unhas. Decore boas frases de efeito. Leia um livro do Augusto Cury e outro do Machado de Assis. Pareça inteligente. E descolado. Tente impressionar muitas pessoas. Seja querido. Seja querida. Seja bacana. Não faça cara feia. Não fique deprimido, nem nostálgico, nem melancólico. Um botox aqui, um silicone ali. Alegria, sempre. Afinal, é a sua vida, a sua longa vida, que está em jogo. Entre no Facebook, no Twitter, no Orkut, em tudo. Aumente a sua rede. Pesque peixes gigantes. Grandes amigos. Amigos para sempre. Amigos instantâneos feito miojo. Faça as pazes com mãe, pai, irmãos, cunhados, tios, tias, cachorro, papagaio. Muita maionese e coca-cola no domingo. Só não vale aquele arrotinho camuflado na coxa do frango assado. Em paz com a família toda. Vamos lá. Bola pra frente. Xô, caixão. Pra lá, crisântemos. A vida é bela. Eu mereço uma vida longa. Você também. Uma vida feliz, com muitos e muitos anos de vida.

Mas não esqueça: não exagere na bebida, abandone o cigarro, pratique esportes, faça check-up periódico (coração, seios e próstata, principalmente), não abuse dos doces, do sal, das drogas, do glúten, não engorde, não se estresse, não tenha um trabalho deprimente, faça yoga (se possível), pilates (se possível), respire ar puro, evite o excesso de café, coma só produtos orgânicos, beije na boca (parece que ativa dezenas de músculos), brinque com os filhos, não discuta com o vizinho, sorria bastante, faça sexo com muita frequência, tome vitaminas, hidrate o corpo, proteja a pele do sol, evite se afogar no mar, olhe para os dois lados da rua ao atravessá-la, pegue avião somente quando inevitável, não fale com estranhos, proteja-se de bala perdida, não dê mole para sequestradores, evite os pedófilos, tenha momentos de lazer, reze para que um piano não caia na sua cabeça, reze para Deus e similares, não coma pastel de rodoviária, não tome café em aeroportos, torça para não se deparar com um cão raivoso, evite encontrar torcedores adversários na saída do estádio… Acredite na sorte.

E, se possível, tenha alguns minutos de solidão.

Fonte: A solidão é uma tragada, de Rogério Pereira (crônica publicada no site vidabreve.com, reproduzida aqui na íntegra)

domingo, 29 de maio de 2011

Lições de abismo

Deixara para trás, pendurados em invisíveis cabides, os meus títulos exteriores. Que me importava a mim, nessa expedição decisiva, ser professor da Faculdade de Filosofia, padrão O? Que me importava toda a série de pequenas conquistas e de grandes malogros que fazem a fisionomia exterior de minha vida? Sou brasileiro, eleitor, vacinado, autor de um trabalho sobre as integrais de Bessel, membro do clube de Engenharia, proprietário, meio poeta, e agora canceroso. Todos esses predicados juntos não dão um sujeito. Cercam-no, penduram-se nele, ou melhor, realizam-se nele. Mas o sujeito oculto, o sujeito que se procura, e que às vezes inventaria suas exterioridades com um olhar melancólico de velho fidalgo meio desmemoriado, que percorresse de uma sacada do solar os seus domínios invadidos pela erva e desfigurados pelo abandono - onde está ele, esse sujeito? Machuquei ontem o meu dedo. Mas o meu dedo, com todas as suas ligações vivas, parece-me distante, exterior, como um pau-de-cerca derrubado, que o triste dono deste solar arruinado calcula como e quando consertará.

Recuando, descendo cada vez mais fundo, abrindo caminho entre as disparatadas coisas exteriores, pergunto em voz alta: "Onde está a sala do trono no castelo encantado de mim mesmo?". De escuridão em escuridão, de silêncio em silêncio, atravesso com medo os meus recessos. (p.212-213).

Gustavo Corção, Lições de abismo. 15ª ed., Rio de Janeiro: Agir, 2004. (1ª ed.: 1950).

sexta-feira, 20 de maio de 2011

Sobre a bajulação

É dia de festa em casa do general. Explicou Jandira, a cozinheira, que sua excelência faz anos; e concluo eu que os mimos e as flores que incessantemente chegam ao portão do general-ministro vêm dos empreiteiros em dificuldades e dos fornecedores esperançosos.

Logo pela manhã, vi chegar o primeiro portador com uma vistosa cesta de flores. Havia para mais de cinquenta rosas. Depois, no correr do dia, chegaram dálias, gladíolas, estrelícias, gérberas e agapantos. Ao anoitecer, chegou ainda uma comionete carregada de rosas. (...)

O general, quando chegar, dirá com prazer: "Bonita cesta"; mas não verá as rosas, não saberá que têm nomes, (...) e muito menos saberá que elas dançam, lentissimamente, dentro da noite. Sua excelência, vendo o cesto, o conjunto, o aglomerado, não vê as rosas; como também não vê os rostos, não adivinha os nomes, não suspeita as aflições, os segredos, quando vê a praça apinhada de gente, nos dias de vibração cívica, do alto do palanque presidencial. A praça cheia de gente é também uma cesta, um mimo para seus olhos de ministro.

Agora, na intimidade, o general é um demagogo de rosas. Recebe-as aos montes, em comissões, em manifestações coletivas. E a impudicícia das flores ainda me parece mais chocante do que a dos míseros papalvos que se apinham em torno do palanque. Vejam aquelas estrelícias, complicadas e pedantes, como se alçam, como se torcem, para agradar ao homem de Estado! Vejam os agapantos: parece que empurram um deles, magricela, espevitado e melancólico, para saudar o homem de prestígio. É o orador da turma. "Nós, os agapantos desta cidade maravilhosa..." E as dálias? Oferecidas, inchadas, pavoneiam-se nas cestas para que a mão gorda do ministro vá buscar, no colo delas, o cartão do galante empreiteiro. E as próprias rosas, as pérfidas! Enchem o ar de perfume. Qual é a relação que pode existir entre a lisonja de um fornecedor e o perfume das rosas?

Disse eu que o general, não vendo as rosas, via a cesta? Disse mal. Ele não vê a cesta, como não vê as rosas. O próprio conjunto arrumado na cesta não tem existência própria, significação própria. É um sinal. Pertence à categoria dos telegramas, dos distintivos e das condecorações. É um mero sinal. Poderiam os áulicos enviar o recibo estampilhado com o preço das flores, e o efeito seria o mesmo. Porque não é a flor, nem o monte, nem o arranjo, nem a combinação de cores nem o capricho das pétalas que o general apreende quando lhe trazem o presente. Não. O que ele vê, na transparência do sinal, é a subserviência. Atrás da rosa estão as espinhas encurvadas, os sorrisos subalternos. No perfume das flores, o incenso da lisonja interesseira e abjeta. É isso que o ministro vê naquele luxo de pétalas e de cores. É a esperteza, a hipocrisia, a elementar astúcia do bajulador.

Mas se assim é, como se explica a satisfação do homem de Estado diante de tão feio espetáculo? Ele sabe, evidentemente, e até por experiência própria, que a bajulação é uma coisa feia, uma coisa abjeta. Melhor do que ninguém o homem de Estado conhece o exato valor da lisonja. Como se pode então compreender seu gordo sorriso satisfeito diante de tão repugnante significação que as rosas escondem?

Creio que poderei explicar o fenômeno com mais uma retificação. Disse há pouco que o ministro vê atrás das flores os sorrisos da subserviência. Corrijo agora. Não. Ainda não é aí, nas figuras dos empreiteiros e fornecedores que se detém o olhar satisfeito do aniversariante poderoso. A bajulação é também um sinal. Sinal em segunda instância, ainda não é aí que descansa o olhar do general. Não. O que ele vê nesse jogo de espelhos, rosas aqui, fornecedores acolá, é a sua própria importância, a sua própria face, a grande, a única realidade, em torno da qual o mundo inteiro é uma enorme moldura.

Gustavo Corção, Lições de abismo. Rio de Janeiro, Agir, 2004, p. 85-86. (1ª ed.: 1950).

domingo, 1 de maio de 2011

Kerouac

Sobre o livro Big Sur e seu autor, Jack Kerouac (1922-1969):

Fiel a seu modo de escrita paroxístico, chegará ao final do relato de seu apocalipse em Big Sur em dez dias, em Orlando, em outubro de 1961. Em nenhum momento se permitirá fazer papel bonito. Restituirá sem artifícios aqueles dias sem alegria exaltados por bebidas ordinárias, pelo abuso de tokay, um vinho açucarado, a bebida assassina dos pobres, naqueles dias anunciadores da separação dos "irmãos de sangue": Neal e ele, nos dias de miséria sexual e esterelidade. É o livro da coragem e da autenticidade (de uma rara autenticidade) de Kerouac, o não-herói. O fato de não sair engrandecido o faz grande, justamente. Ele descreve sua sordidez, seus embates medíocres, sua dependência. A descrição do delirium é de uma exatidão clínica notável, sob um fundo de memória que sabemos ser fenomenal e de um lirismo contido. Não se esqueceu de nada, não faltou sequer um detalhe. Precisou de um ano de decantação.

Quando sai o livro, em setembro de 1962, a crítica é, paradoxalmente, como sublinha Gerald Nicosia, menos rude, talvez porque diga sem rodeios, tanto a Saturday Review quanto o New York Times, que o beatnik Kerouac, como era de se esperar, terminou enlouquecendo. (p. 209).

(...)

Com Big Sur terminado no outono de 1961, Kerouac pensa nessa ocasião ter concluído sua obra. Aproxima-se dos quarenta anos e não terá mais do que dois livros em preparação - a última parte de Desolation Angels foi escrita no verão precedente na Cidade do México -, Vanity of Duluoz, que acabamos de citar, e Pic, que ele completará pouco antes de morrer. Por hora, ele entra numa longa fase de esterelidade e de relativa sobrevida de aproximadamente dez anos. Será para ele como o percurso em uma terra de desolação, com todos os estigmas de retirada do mundo doloroso, marcado de invectivas, de mal-entendidos, de encolhimento do espaço social e da comunicação. Kerouac estará cada vez mais sozinho, acentuando o vazio à sua volta e o desgosto do isolamento, tentando desajeitadamente remediá-los. Todos os traços de sua personalidade, que ele chama de paranóica, e de seu "comportamento esquizo", segundo sua expressão, que o tornam insuportável agravam-se somados ao alcoolismo inveterado e debilitante. Então ele vitupera, acusa, se insurge, interpela ou tenta infelizes e lacrimosas efusões. Progressivamente, vai se desligando de todos os elos históricos e passa a gravitar em uma solidão total na qual é um injustiçado, uma vítima eletiva. Está imerso na incompreensão de um mundo que o elouquece. (p. 234-235)

Kerouac, de Yves Buin. Porto Alegre: L&PM, 2007.