quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

A morte do poeta

O poeta jamais aceitou que a vida possa ser um script pronto, a ser recitado na ponta da língua. Ao contrário: apostou sempre na própria capacidade de se superar, de se surpreender consigo mesmo, de driblar os próprios medos e preconceitos - de se ultrapassar.

Viver intensamente tem seu preço e Vinicius agora o paga. É no mínimo perigoso, porém, encarar esse momento (como fazem muitos amigos mais contidos e escrupulosos) como a "decadência" do poeta. Vinicius, provavelmente, nunca se elevou tanto. É um homem para quem a vida deve ser usada, sorvida - com requinte e avidez - até a última gota: para quem a vida existe para queimar. Cumpriu essa crença à risca. Se agora parece esgotado, se agora paga o preço de sua determinação em não deixar a vida escapar, deve ser visto não como um homem decadente, falido, mas como um homem coerente e saciado. A morte - a "última musa" que ele persegue desde a juventude - se aproxima. Nem o medo da morte, porém, o leva a qualquer sentimento parecido com o remorso, a culpa ou o arrependimento. A proximidade da morte é, simplesmente, o sinal de que um destino se cumpriu. O poeta está em paz consigo mesmo. O dr. Younis, com sua formação profissional requintada e suas boas intenções, de fato, tem muito pouco a fazer. O generoso Vinicius, provavelmente, se apieda dele.


José Castello, Vinicius de Moraes: o Poeta da Paixão. Uma biografia. São Paulo: Companhia das Letras, 1994, p. 416.

terça-feira, 28 de dezembro de 2010

Desespero da Piedade

Meu senhor, tende piedade dos que andam de bonde
E sonham no longo percurso com automóveis, apartamentos...
Mas tende piedade também dos que andam de automóvel
Quando enfrentam a cidade movediça de sonâmbulos, na direção.

Tende piedade das pequenas famílias suburbanas
E em particular dos adolescentes que se embebedam de domingos
Mas tende mais piedade ainda de dois elegantes que passam
E sem saber inventam a doutrina do pão e da guilhotina.

Tende muita piedade do mocinho franzino, três cruzes, poeta
Que só tem de seu as costeletas e a namorada pequenina
Mas tende mais piedade ainda do impávido forte colosso do esporte
E que se encaminha lutando, remando, nadando para a morte.

Tende imensa piedade dos músicos dos cafés e casas de chá
Que são virtuoses da própria tristeza e solidão
Mas tende piedade também dos que buscam silêncio
E súbito se abate sobre eles uma ária da Tosca.

Não esqueçais também em vossa piedade os pobres que enriqueceram
E para quem o suicídio ainda é a mais doce solução
Mas tende realmente piedade dos ricos que empobreceram
E tornam-se heróicos e à santa pobreza dão um ar de grandeza.

Tende infinita piedade dos vendedores de passarinhos
Que em suas alminhas claras deixam a lágrima e a incompreensão
E tende piedade também, menor embora, dos vendedores de balcão
Que amam as freguesas e saem de noite, quem sabe onde vão...

Tende piedade dos barbeiros em geral, e dos cabeleireiros
Que se efeminam por profissão mas que são humildes nas suas carícias
Mas tende mais piedade ainda dos que cortam o cabelo:
Que espera, que angústia, que indigno, meu Deus!

Tende piedade dos sapateiros e caixeiros de sapataria
Que lembram madalenas arrependidas pedindo piedade pelos sapatos
Mas lembrai-vos também dos que se calçam de novo
Nada pior que um sapato apertado, Senhor Deus.

Tende piedade dos homens úteis como os dentistas
Que sofrem de utilidade e vivem para fazer sofrer
Mas tende mais piedade ainda dos veterinários e práticos de farmácia
Que muito eles gostariam de ser médicos, Senhor.

Tende piedade dos homens públicos e em particular dos políticos
Pela sua fala fácil, olhar brilhante e segurança dos gestos de mão
Mas tende mais piedade ainda dos seus criados, próximos e parentes
Fazei, Senhor, com que deles não saiam políticos também.

E no longo capítulo das mulheres, Senhor, tende píedade das mulheres
Castigai minha alma, mas tende piedade das mulheres
Enlouquecei meu espírito, mas tende piedade das mulheres
Ulcerai minha carne, mas tende piedade das mulheres!

Tende piedade da moça feia que serve na vida
De casa, comida e roupa lavada da moça bonita
Mas tende mais piedade ainda da moça bonita
Que o homem molesta – que o homem não presta, não presta, meu Deus!

Tende piedade das moças pequenas das ruas transversais
Que de apoio na vida só têm Santa Janela da Consolação
E sonham exaltadas nos quartos humildes
Os olhos perdidos e o seio na mão.

Tende piedade da mulher no primeiro coito
Onde se cria a primeira alegria da Criação
E onde se consuma a tragédia dos anjos
E onde a morte encontra a vida em desintegração.

Tende piedade da mulher no instante do parto
Onde ela é como a água explodindo em convulsão
Onde ela é como a terra vomitando cólera
Onde ela é como a lua parindo desilusão.

Tende piedade das mulheres chamadas desquitadas
Porque nelas se refaz misteriosamente a virgindade
Mas tende piedade também das mulheres casadas
Que se sacrificam e se simplificam a troco de nada.

Tende piedade, Senhor, das mulheres chamadas vagabundas
Que são desgraçadas e são exploradas e são infecundas
Mas que vendem barato muito instante de esquecimento
E em paga o homem mata com a navalha, com o fogo, com o veneno.

Tende piedade, Senhor, das primeiras namoradas
De corpo hermético e coração patético
Que saem à rua felizes mas que sempre entram desgraçadas
Que se crêem vestidas mas que em verdade vivem nuas.

Tende piedade, Senhor, de todas as mulheres
Que ninguém mais merece tanto amor e amizade
Que ninguém mais deseja tanto poesia e sinceridade
Que ninguém mais precisa tanto de alegria e serenidade.

Tende infinita piedade delas, Senhor, que são puras
Que são crianças e são trágicas e são belas
Que caminham ao sopro dos ventos e que pecam
E que têm a única emoção da vida nelas.

Tende piedade delas, Senhor, que uma me disse
Ter piedade de si mesma e de sua louca mocidade
E outra, à simples emoção do amor piedoso
Delirava e se desfazia em gozos de amor de carne.

Tende piedade delas, Senhor, que dentro delas
A vida fere mais fundo e mais fecundo
E o sexo está nelas, e o mundo está nelas
E a loucura reside nesse mundo.

Tende piedade, Senhor, das santas mulheres
Dos meninos velhos, dos homens humilhados – sede enfim
Piedoso com todos, que tudo merece piedade
E se piedade vos sobrar, Senhor, tende piedade de mim!

Vinicius de Moraes (1913-1980)

Ouça Vinicius recitando este poema

A velhice do poeta

Década de 70:

Depois de se separar de Cristina Gurjão, uma longa viagem à Europa é vivida como uma iniciação. Vinicius, já acompanhado de Gesse Gessy, parte para uma temporada de rupturas que são tomadas como sinais de decadência, de isolamento tido como esquisitice, de revitalização vista como decrepitude. Nenhum desses enganos o impressiona, nem o faz mudar seu rumo. Vinicius desarruma todos os clichês a respeito da arte de envelhecer. Serenidade, introspecção, ponderação, equilíbrio, prudência, bom senso, enfim, atributos clássicos de um envelhecimento saudável, não o seduzem. Mais do que nunca, ele deseja agarrar a vida, enfrentá-la, e isso significa optar pelo inesperado, pelo estranho, pelo descabido. Isso choca - e muitos amigos conservadores se melindram. Gesse é estranha, aquele menino magrelo chamado Toquinho, montado num violão e posto ao seu lado, é estranhíssimo, aquela nova vida metida numa bata branca e envolvida por cordões místicos, sessões espíritas no candomblé de Mãe Menininha, a companhia de garotos mal saídos da adolescência, shows em diretórios acadêmicos perseguidos pela ditadura militar, e descaso, quase desprezo pela poesia erudita, tudo isso é extravagante e muito, muito estranho. Mas é justamente estranhamento, surpresa, espanto que ele passa a desejar.

José Castello, Vinicius de Moraes: o poeta da Paixão. Uma biografia. São Paulo: Companhia das Letras, 1994, p. 320-21.

segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

Poema enjoadinho

Filhos...Filhos?
Melhor não tê-los!
Mas se não os temos
Como sabê-lo?
Se não os temos
Que de consulta
Quanto silêncio
Como o queremos!
Banho de mar
Diz que é um porrete...
Cônjuge voa
Transpõe o espaço
Engole água
Fica salgada
Se iodifica
Depois, que boa
Que morenaço
Que a esposa fica!
Resultado: filho.
E então começa
A aporrinhação:
Cocô está branco
Cocô está preto
Bebe amoníaco
Comeu botão.
Filho? Filhos
Melhor não tê-los
Noites de insônia
Cãs prematuras
Prantos convulsos
Meu Deus, salvai-o!
Filhos são o demo
Melhor não tê-los...
Mas se não os temos
Como sabê-los?
Como saber
Que macieza
Nos seus cabelos
Que cheiro morno
Na sua carne
Que gosto doce
Na sua boca!
Chupam gilete
Bebem xampu
Ateiam fogo
No quarteirão
Porém, que coisa
Que coisa louca
Que coisa linda
Que os filhos são!

Vinicius de Moraes (1913-1980)

domingo, 19 de dezembro de 2010

A infância do poeta

A infância transcorre serena e cheia de pequenos mistérios. Vinicius tem, constantemente, sua imaginação posta à prova pelos tios mais velhos. A matéria bruta da infância, sem que a família tenha consciência disso, começa a ser talhada. É um menino endiabrado, que não consegue ficar quieto e gosta de mandar. Está sempre imerso, entretanto, num turbilhão de fantasias que, seguramente, começam a servir como o pântano disforme de sustos, impressões e imagens imprecisas em que, aos poucos, a poesia desabrochará.

José Castello, Vinicius de Moraes: O Poeta da Paixão. Uma biografia. São Paulo: Cia das Letras, 1994. p. 35.

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

A man went before a strange God

A man went before a strange God --
The God of many men, sadly wise.
And the deity thundered loudly,
Fat with rage, and puffing.
"Kneel, mortal, and cringe
And grovel and do homage
To My Particularly Sublime Majesty."

The man fled.

Then the man went to another God --
The God of his inner thoughts.
And this one looked at him
With soft eyes
Lit with infinite comprehension,
And said, "My poor child!"

Stephen Crane (1871-1900)

Solenidade de Formatura ou ensaio de escola de samba?

Todo semestre, na faculdade, é a mesma coisa: os formandos combinam com os coordenadores de curso que só vão começar a bagunça no intervalo (“para não prejudicar os outros alunos”, explicam os coordenadores, “que estarão fazendo prova ou tendo as últimas aulas do semestre”), mas raramente cumprem o combinado. Muito antes do intervalo, eles começam a soprar apitos e cornetas com toda a força de seus pulmões, tornando impossível a continuidade de qualquer atividade nas salas próximas às suas; e em seguida começam a circular pelos corredores da faculdade ao som dos mesmos apitos e cornetas, enquanto, do lado de fora, explodem os foguetes. Se um professor, coordenador ou outro funcionário reclamar, na maioria das vezes os formandos ignoram os apelos, são irônicos, desrespeitosos e continuam a comemorar.

Não sou contra as comemorações dos formandos (embora eu ache que eles deveriam encontrar alguma coisa mais criativa para fazer nesse dia do que simplesmente circular pelos corredores tocando apitos e cornetas). Eu não concordo é com o desrespeito aos direitos dos outros alunos e professores que estão em aula ou em avaliação – muitos alunos, inclusive, já foram prejudicados nos resultados das provas de final de semestre pelas confusões nos corredores e foguetes. Quando são formandos em Direito, então, a contradição é ainda mais marcante. Terminar um curso de Direito desrespeitando os direitos dos outros? Não pega bem.

Mas o que mais me incomoda é a “solenidade” de formatura. Coloquei a palavra “solenidade” entre aspas porque aquilo para mim pode ser tudo, menos uma solenidade. A palavra solenidade, no dicionário, é definida assim: “Formalidades que tornam importante um fato”. No caso da formatura no Ensino Superior, o fato importante é a conclusão daquele curso com sucesso, permitindo ao formando o exercício de uma profissão, reconhecida pela sociedade. É, ao mesmo tempo, um rito de passagem que simboliza um novo começo, uma nova vida.

Infelizmente, na maioria das cerimônias de formatura da atualidade, o formalismo deu lugar à bagunça; e o rito, que deveria simbolizar o início de uma trajetória profissional ancorada em valores como a ética e o respeito ao próximo, parece querer simbolizar justamente o contrário: o desrespeito, a ausência de certo e errado, o “tudo pode”.

Familiares e amigos dos formandos entram no auditório ou salão com faixas, bandeiras, apitos, cornetas, tambores, confetes, e com todo esse material em mãos, desde o início da cerimônia, fazem uma verdadeira arruaça (um batuque ensurdecedor que não deve nada a um ensaio de escola de samba, daqueles bem desorganizados). Não deixam ninguém falar, interrompem todo mundo, e as autoridades sentadas à mesa mais parecem seres extraterrestres, objetos decorativos fora do lugar, no ambiente errado, o que faz com que a maioria delas se sinta ridícula, como se uma força superior as empurrasse para os bastidores, para trás das cortinas – sensação que fica ainda mais forte quando alguns formandos dirigem a elas olhares de desprezo e/ou ironia, a maioria das vezes acompanhados por sorrisos zombeteiros que parecem querer dizer: “Bem feito para você. Está aí ‘pagando mico’ na frente de todo mundo, com esse sorrisinho sem graça (ou ar superior – vai depender da autoridade), fingindo que está gostando da baderna só para não pegar mal (ou sentindo-se muito acima de nós e doido para ir embora), não é?”.

Com muita propriedade, o advogado Jorge Ferreira Filho chamou, em um artigo recente, essas solenidades de “Solenidades de (Des)formatura”. A ele preocupa o fato de que muitas instituições de Ensino Superior do Brasil têm se empenhado mais em “informar” do que em “formar” (construir um cidadão apto à moderna sociedade democrática de direito, capaz de refletir e analisar a realidade e construir conhecimento visando ao bem da coletividade): “O aluno passou a ser um consumidor – um centro de direitos. O professor transformado num ‘Sílvio Santos’ – aquele que deve agradar a platéia; dar à platéia o que ela quer e não o que ela precisa receber”.

Será que é isso? Será que falta formação cidadã a esses alunos que transformam uma solenidade de formatura em ensaio de escola de samba? Será que temos que repensar nossa postura enquanto educadores e gestores da Educação?

Flávio Marcus da Silva

Publicado originalmente na minha coluna Crônicas de um patafufo, no site GRNews, em 13 de julho de 2010